terça-feira, 3 de julho de 2012

Álvaro de Campos, o terrível




Há um belíssimo poema de Fernando Pessoa/Álvaro de Campos* cujo tema (um deles) remete àquela sensação que, acredito, todas as pessoas experimentam, experimentaram ou vão experimentar ao longo da vida: o arrependimento por ter agido (ou deixado de agir) de tal ou qual maneira. Eis:

Na noite terrível, substância natural de todas as noites,
Na noite de insónia, substância natural de todas as minhas noites,
Relembro, velando em modorra incómoda,
Relembro o que fiz e o que podia ter feito na vida.
Relembro, e uma angústia
Espalha-se por mim todo como um frio do corpo ou um medo.
O irreparável do meu passado – esse é que é o cadáver.
Todos os outros cadáveres pode ser que sejam ilusão.
Todos os mortos pode ser que sejam vivos noutra parte.
Todos os meus próprios momentos passados pode ser que existam algures.
Na ilusão do espaço e do tempo,
Na falsidade do decorrer.

Mas o que eu não fui, o que eu não fiz, o que nem sequer sonhei;
O que só agora vejo que deveria ter feito,
O que só agora claramente vejo que deveria ter sido -
Isso é que é morto para além de todos os Deuses,
Isso – e foi afinal o melhor de mim – é que nem os Deuses fazem viver...

Se em certa altura
Tivesse voltado para a esquerda em vez de para a direita;
Se em certo momento
Tivesse dito sim em vez de não, ou não em vez de sim;
Se em certa conversa
Tivesse tido as frases que só agora, no meio-sono elaboro -
Se tudo isso tivesse sido assim,
Seria outro hoje, e talvez o universo inteiro
Seria insensìvelmente levado a ser outro também.

Mas não virei para o lado irreparàvelmente perdido,
Não virei nem pensei em virar, e só agora o percebo;
Mas não disse não ou não disse sim, e só agora vejo o que não disse;
Mas as frases que faltou dizer nesse momento surgem-me todas,
Claras, inevitáveis, naturais,
A conversa fechada concludentemente,
A matéria toda resolvida...
Mas só agora o que nunca foi, nem será para trás, me dói.

O que falhei deveras não tem esperança nenhuma
Em sistema metafísico nenhum.
Pode ser que para outro mundo eu possa levar o que sonhei,
Mas poderei eu levar para outro mundo o que me esqueci de sonhar?
Esses sim, os sonhos por haver, é que são o cadáver.
Enterro-o no meu coração para sempre, para todo o tempo, para todas as conversas,

Nesta noite em que não durmo, e o sossego me cerca
Como uma verdade de que não partilho,
E lá fora o luar, como a esperança que não tenho, é invisível p'ra mim”.

O melhor de mim foi o que deveria ter feito, não o que fiz efetivamente; é duro viver com essa sensação. De maneira amarga, noutro poema (Canção à inglesa), o poeta escreve: “Falhei no que fui, falhei no que quis, falhei no que soube./ Não tenho já alma que a luz me desperte ou a treva me roube,/ Não sou senão náusea, não sou senão cisma, não sou senão ânsia,/ Sinto em ânsia que fui a uma grande distância/ E vou, só porque o meu ser é imundo e profundo,/ Colado como um escarro a uma das rodas do mundo”.

Como é terrível – e isso é positivo – ler Fernando Pessoa/Álvaro de Campos!
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* PESSOA, Fernando. Poemas de Álvaro de Campos: obra poética IV. Porto Alegre: L&PM, 2006


BG de Hoje

Algumas das melhores canções dos DOORS são variações em torno de um blues, que serve como linha melódica. É o caso de Riders on the storm. O teclado de Ray Manzarek e os efeitos sonoros, simulando uma tempestade, tornam a gravação inesquecível.