terça-feira, 26 de junho de 2012

O "esconderijo" dos acadêmicos ou Culpa e vida intelectual (III)




"Digamos que ele [o intelectual] se caracteriza por não ter o mandato de ninguém e por não ter recebido seu estatuto de nenhuma autoridade. É, enquanto tal, não o produto de alguma decisão - como são os médicos, os professores, etc. enquanto agentes do poder - mas o monstruoso produto de sociedades monstruosas".

Jean-Paul Sartre - Em defesa dos intelectuais*


Duvido que Sartre se importasse com o sentimento de culpa (principalmente no sentido cristão do termo). Mesmo assim, creio que intelectuais  - não todos, é claro - costumam sentir-se culpados (Sartre diria que eles experimentam um "mal-estar"). Donde ou como surge esse sentimento?

Bem, não é habitual que intelectuais integrem o proletariado; ou já nasceram num ambiente burguês (ainda que pequeno-burguês**)  ou ascenderam a este por meio mesmo de suas atividades no campo da cultura formalizada, escolarizada. Não fazer parte do proletariado - em que predominam as atividades alienadas e alienantes - acaba sendo um privilégio. E esse privilégio é, talvez, vivenciado com culpa.

Horácio González*** considera que "[...] o intelectual vive a contradição de origem com o 'não-trabalho'. Cada um a toma de forma diferente. Alguns com remorso, outros com orgulho, alguns sem temor de [ser] 'punidos por seu aristocratismo', outros com a tentação de abandonar tudo à espreita de algum surto populista". 

Pensemos apenas nos que sentem remorso: por que o sentem? Porque suspeitam que aquilo que fazem - seja lá o que for - não pode ser considerado propriamente um trabalho...

Mas o sentimento de culpa talvez seja decorrente da maneira como o intelectual lida com as instâncias de poder.

"A força do intelectual" - escreve González - "é seu relativo distanciamento das lutas sociais diretas. Mas essa é também a fonte de sua debilidade. Se ele pode ser crível porque, ao nos falar do poder, o faz desprendido de paixões imediatas e afastado de práticas pouco enaltecedoras, isso mesmo é o que também o faz inocente, inócuo e, por vezes, até falaz. As contradições entre suas problemáticas teóricas e a realidade que diz desejar servir motivam sempre diversas respostas. Ou se expõe ao isolamento na torre de marfim [...] ou deve viver de contínuas 'autocríticas' [...]".

Tanto o isolamento quanto as repetidas autocríticas enfraquecem o intelectual e suas manifestações - no geral calcadas em valores transcendentes ou, pelo menos, não atreladas a particularismos casuístas - perante o restante da sociedade. E por não terem "mandato de ninguém", atualmente, a maioria dos intelectuais prega no deserto.

Se poucos querem ouvi-los, onde então se "entocam" esses "técnicos do saber****? Falo disso na próxima postagem, retornando ao artigo de Hans Ulrich Gumbrecht que motivou esta série de postagens.
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* SARTRE, Jean-Paul. Em defesa dos intelectuais. São Paulo: Ática, 1994 [tradução de Sérgio Goes de Paula]

** As palavas proletariado e burguês  estão meio "fora de moda", mas foram aqui mencionadas porque estão em acordo com a terminologia usada por J. P. Sartre, de fortíssima inspiração marxista. O pensador francês argumenta que o intelectual deve contestar os princípios da classe dominante mas, ao mesmo tempo, este não deixa de ser "um pequeno-burguês que se liberta", sendo "todo o tempo solicitado a formar os pensamentos de sua classe".

*** GONZÁLEZ, Horácio. O que são intelectuais. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1981 [Coleção Primeiros Passos]

**** A expressão é de Sartre

BG de Hoje 

Sempre fui mais adepto da crueza do que da elaboração, quando o assunto é rock. Mas se ouço algo excepcional, como o som do ARCADE FIRE, tenho que "rever meus conceitos". No vídeo versão ao vivo de My body is a cage.