Certa vez, no extinto blog Ração das Letras, fiz referência a um artigo do sociólogo Zygmunt Bauman*
a respeito do papel do livro - e tudo o que este representa em termos
de conhecimento e cultura - nos nossos tempos globalizados. Reli o
texto nesse "período de hibernação" e, mais uma vez, me rendo à
sabedoria do pensador polonês.
O artigo é inspirado por um debate bastante frequente na atualidade: qual será o futuro do livro?
Diante
dos novos recursos tecnológicos e engenhocas eletrônicas, este objeto
tornar-se-á peça de museu, simplesmente obsoleto - ou pior - traste a
ser lançado nas latas de lixo da história? Veremos diminuir
aceleradamente o número de leitores (principalmente de Literatura) até
não restar mais nenhum? Ou, ao contrário, presenciaremos um incremento
sem precedentes da leitura e o livro apenas mudará de suporte,
transferindo-se do papel para as telas dos PCs, Kindles, iPads e outros
aparelhos?
O sociólogo, sem deixar seduzir-se pela enganosa futurologia, acredita que "não
é a tecnologia da edição e da distribuição que determinará se o livro
vai tecer (ou, em um mesmo ímpeto, desfazer) vínculos entre comunidades
humanas, nem qual será seu lugar em nossas culturas compartilhadas ou
separadas na forma e no conteúdo de nossa humanidade". Ele considera que o livro "tem sido, acima de tudo, uma narrativa relatada em perpétuo diálogo com a experiência humana",
desde que chegou à forma física com a qual nos habituamos. Se queremos
especular sobre o futuro desse produto de nossa cultura, é na sua
relação mais profunda com a trajetória existencial da humanidade que
devemos tentar encontrar mais esclarecimentos.
No
último século, o mundo modificou-se consideravelmente, do ponto de
vista político, econômico e social. Por isso Zygmunt Bauman pergunta: "Quais são os serviços que o livro é suscetível de prestar ao nosso tipo de sociedade?". Para responder a isso deve-se
"pensar menos nas mudanças tecnológicas da produção e da distribuição
do livro do que seria desejável para os profetas da revolução
eletrônica; talvez convenha examinar mais de perto a natureza mutável
do mundo em que vivemos, assim como as mudanças na maneira de
experimentá-la".
. . . . . .
Este
nosso mundo globalizado não é flor que se cheire: inseguro, instável,
marcado por um apreço quase irracional pela velocidade e pela
simultaneidade absolutas e por um desprezo mal dissimulado pela
reflexão aprofundada e pela História.
Nos
dias de hoje, convive-se com muita informação e esta é sempre
fragmentada, além de esgotar-se rapidamente, logo sendo substituída por
outra, mais "quente" e "atual". Segundo Bauman, "o
mundo nos é oferecido como um contêiner repleto de acontecimentos para
consumo imediato, sob os holofotes e de uma só vez. Em tal mundo, o
sentido da vida aparece como uma série de episódios, em que cada um
deve ser consumido de modo semelhante".
O
livro, durante séculos, cumpriu a importante e nobre missão de tentar
lançar alguma luz na turbulenta existência humana e sua força, como nos
lembra Bauman, sempre residiu
"na capacidade totalmente específica de ligar a biografia à história, o privado ao público, o individual ao social, os momentos vivenciados ao sentido da vida. Este trabalho de síntese é difícil de apreender em um mundo que renunciou ao pensamento consistente e de longo prazo: sua significação (de fato seu caráter indispensável) tende a escapar dos habitantes deste mundo. Nossa atenção desloca-se depressa demais para nos permitir fazer uma pausa e refletir; donde o fato de que a demanda por textos que ofereçam tal possibilidade não cessa de diminuir".
"A prática da narrativa alimentou a experiência comum do mundo que, por sua vez, alimentou a narrativa",
lemos no artigo aqui discutido. Entretanto, como vimos, parece haver um
divórcio entre o que buscam os cidadãos globalizados contemporâneos e o
que oferecem os livros que se negam a ser somente mercadoria. Bauman
encerra afirmando que
"Os livros estão condenados a compartilhar a sorte das sociedades das quais fazem parte. Quando estivermos inquietos com o futuro dos livros, consideremos, antes de tudo, com mais atenção a sociedade e suas tendências. Para tornarmos os livros mais adaptados à sociedade em que vivemos, estejamos vigilantes para evitar que a sociedade se torne inadaptada aos livros".
Na próxima postagem, será a vez de Alberto Manguel falar sobre a importância da leitura e dos livros.
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* BAUMAN, Zygmunt. O livro no diálogo global entre culturas. In: PORTELLA, Eduardo (Org.). Reflexões sobre os caminhos do livro. São Paulo: UNESCO/Moderna, 2003. p. 15-33
BG de Hoje
Nesse "período de hibernação", passei a valorizar ainda mais o "conselho" de LUIZ MELODIA, na sua canção Congênito: "Se a gente falasse menos, talvez compreendesse mais".