segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Arquipélago Gulag: o valor de um testemunho



"Que feche aqui o livro o leitor que espera que ele continue sendo uma acusação política.
Ah, se as coisas fossem assim tão simples! Se num dado lugar houvesse pessoas de alma negra, tramando maldosamente negros desígnios, e se se tratasse somente de diferenciá-las das restantes e aniquilá-las! Mas a linha que separa o bem do mal atravessa o coração de cada pessoa. E quem destrói um pedaço do seu próprio coração?..."

Alexander Soljenítsin - Arquipélago Gulag 


Fala-se bastante em dialética (aliás, já se falou mais; é preciso reconhecer que o momento histórico é outro). Mas, por incrível que possa parecer (ou não), o pensamento de esquerda, ao qual me alinho, tem-se recusado, muitas vezes, a utilizar esse necessário instrumento de crítica e reflexão - a dialética - quando o objeto de discussão é o chamado socialismo real ou comunismo real.

Digo isso porque, até hoje, intelectuais brasileiros, em virtude de seu posicionamento ideológico - denunciando as desigualdades sociais provocadas pelo capitalismo (denúncia, diga-se de passagem, com a qual concordo, obviamente) - deixam de condenar as violências cometidas por regimes...ahn... de "partido único". E, nesse ponto, já não concordamos . O que resulta disso? Em nome das convicções ideológicas, sacrifica-se a constatação das contradições inerentes a todos os processos históricos ou movimentos sociais e que acabam condicionando as existências individuais e/ou coletivas. Para o "bem" ou para o "mal".

Durante muito tempo, a (extinta) União Soviética, vista representativamente como o único contraponto à selvageria capitalista, foi defendida, de maneira acrítica, por milhões de pessoas em todo mundo. Descobriu-se, entretanto, que o Soviete Supremo produzira seus próprios mecanismos de selvageria...

Arquipélago Gulag*, escrito por Alexander Soljenítsin durante décadas e publicado pela primeira vez em 1973, ajuda a compreender um pouco quais são os métodos repressivos típicos adotados pelas ditaduras (qualquer ditadura). Embora Soljenítsin tenha ficado preso por "apenas" 11 anos, no final da 2ª Grande Guerra, o livro afirma que muitas das arbitrariedades e ações brutais do Estado soviético começaram bem antes da chegada de Stálin ao poder.

Em meio às "epidemias de detenção", num ambiente policialesco, de desconfiança e medo, no qual se recompensa o ato de delatar e a corrupção (contrariando a opinião imbecil de que as ações corruptas diminuem nos regimes ditatoriais), Arquipélago Gulag relata os espancamentos, torturas e maus-tratos praticados pelos famigerados "Órgãos", mas não exclui de seu texto a passividade, submissão e covardia da população em geral durante o período "contrarrevolucionário".

Para a composição da obra, Soljenítsin valeu-se, além das memórias pessoais, dos depoimentos de mais de 200 ex-detentos. Segundo o escritor, "as mais grosseiras aventuras da literatura policial e das operetas de bandoleiros foram levadas à pratica na escala de um grande Estado".

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Uma certeza vem se formando em mim, nos últimos anos: a nossa brutalidade atávica não se dissipou - e nunca se dissipará - em nenhum momento da trajetória evolutiva humana. E o exercício do poder (político, mas também econômico) é campo fértil para a crueldade e a estupidez que nos são próprias. Não custa lembrar que o livro Arquipélago Gulag descreve situações que ocorreram numa considerável porção do planeta, do Báltico aos limites com a Mongólia.

Soljenítsin faz um questionamento  válido, atualmente, para cada um de nós:

"Como surgiu essa raça de lobos em meio do nosso povo? É da nossa raiz? É do nosso sangue?
Sim, é.
Para não vestir sem motivo o manto alvo dos justos, interroguemo-nos: se a minha vida se tivesse apresentado diferentemente, ter-me-ia eu convertido num carrasco assim?
É uma pergunta terrível, se quisermos responder a ela honestamente".

Um testemunho como esse, mesmo afastado no tempo e tratando de um lugar distante, geograficamente falando, tem muito a dizer a qualquer cidadão do mundo contemporâneo.
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* SOLJENÍTSIN, Alexander. Arquipélago Gulag. São Paulo: DIFEL, 1975 [ tradução de Francisco A. Ferreira, Maria M. Llistó e José A. Seabra]

BG de Hoje

I´d love to change the world, bela canção do TEN YEARS AFTER, em seu refrão, dá o "conselho" que eu transmitiria a qualquer um (caso alguém me pedisse, é claro):

"I'd love to change the world
But I don't know what you do
So I'll leave it up to you"