terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Dinheiro (1)

Pedir dinheiro está, sem dúvida alguma, entre os atos mais desagradáveis e vexatórios que existem. Tal situação só não se torna mais humilhante se dispomos da cara-de-pau, por exemplo, de um Custódio, personagem do conto O empréstimo*, de Machado de Assis. "Esse Custódio nascera com a vocação da riqueza, sem a vocação do trabalho", informa-nos o narrador. O clima é de humor, mas não deixa de causar certo desconforto em quem lê a progressiva redução no valor do empréstimo - que implica a diminuição moral da personagem - até chegar a uma quantia ínfima. Insistente, de posse pelo menos do "jantar certo", Custódio, ao final da história, "apertava amorosamente os cinco mil-réis, resíduo de uma grande ambição, que ainda há pouco saíra contra o sol, num ímpeto de águia, e ora batia modestamente as asas de frango rasteiro."

Acaba sendo também engraçada - apesar de desesperadora - a cena em que Dimitri Karamazov suplica 3.000 rublos à Sra. Khokhlakova, para restituí-los à sua ex-noiva, e assim recuperar parte de sua honra. Sem poder verbalizar adequadamente seu pedido, já que era interrompido a todo instante pela tagarelice da mulher, o mais velho d'Os Irmãos Karamazov** recebe o despropositado conselho para ir trabalhar nas minas de ouro da Sibéria. Dostoiévski conduz a cena contrapondo, por meio do diálogo, a intensa agonia de Dimitri à cômica incompreensão da Sra. Khokhlakova.

Em A Idade da Razão***, Jean-Paul Sartre nos apresenta o pior tipo de pedido de empréstimo que pode ser feito: aquele que ocorre entre parentes; no caso, entre irmãos. O professor de filosofia Mathieu Delarue procura o irmão, Jacques, para que este lhe conceda 4.000 francos, a fim de poder pagar por um aborto, já que a namorada de Mathieu, Marcelle, estava grávida e, aparentemente, nenhum dos dois desejava que a gravidez prosseguisse. No romance, o professor de filosofia defende que o valor mais importante é a liberdade. Só que nessa passagem, pode-se perceber que essa liberdade tem diversos condicionantes, entre eles, possuir ou não dinheiro. Jacques chega a ser irônico diante das convicções de Mathieu: " - E há pior, você, que cospe na família, você se aproveita do parentesco para dar facadas. Sim, porque afinal não virias a mim se eu não fosse teu irmão." Nem preciso dizer que Jacques recusa o empréstimo, convicto de que faz um favor ao parente.

Mas é no comovente conto O pedido****, de Rubem Fonseca, que essa relação entre quem pode emprestar e quem necessita pedir é retratada de forma mais humanamente triste. Entre as duas personagens - Joaquim Gonçalves e Amadeu Santos - havia um desentendimento surgido por motivo banal e que será suficiente para que um decida acabrunhar ainda mais o outro, ambos homens já idosos. O empréstimo é recusado, por causa de uma pergunta inofensiva. Assim Fonseca termina o excelente conto:

"Eu não sabia... disse Amadeu tristemente. Antes um filho morto, ele pensou. E uma lágrima seca, feita quase somente de sal, escorregou do seu olho, uma lágrima pelo filho dele e pelo filho de Joaquim.
Quando viu a lágrima brilhante escorrendo lentamente pela face de Amadeu, Joaquim calou-se constrangido. Lentamente Amadeu levantou-se e, antes de sair caminhando com dificuldade, disse, adeus.
Joaquim ficou sentado um instante curto. Eu não sou essa pessoa, ele pensou envergonhado com a sua mesquinhez, e correu em direção à porta da rua gritando, Amadeu! Volta, eu te dou o dinheiro, volta!
Mas ao chegar à rua, ela estava deserta. Joaquim ainda gritou o nome do amigo algumas vezes, enquanto escorriam pelo seu rosto lágrimas abundantes e úmidas de homem gordo e forte."

Poucas coisas distanciam tanto um ser humano do outro quanto a quantidade de dinheiro que se tem ou que não se tem.

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ASSIS, Machado de. Papéis avulsos. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2005

** DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os Irmãos Karamazov. (trad. Natália Nunes e Oscar Mendes). São Paulo: Abril Cultural, 1970 (Coleção Os imortais da literatura universal)

*** SARTRE, Jean-Paul. A Idade da Razão. (trad. Sérgio Milliet) São Paulo: Abril Cultural, 1979

**** FONSECA, Rubem. Contos reunidos. São Paulo: Companhia das Letras, 1994