Registrei uma vez aqui no blog - não estou bem certo onde - que só escrevo sobre livros dos quais gosto ou sobre aqueles que tiveram papel determinante na minha trajetória de leitor. Bem, pelo menos na maioria dos casos. Um critério bem mixuruca, obviamente, mas é assim que a banda toca no Besta Quadrada , o único lugar em que posso experimentar uma sensaçãozinha de autonomia. Há uma imensidão de textos a serem lidos, o tempo de que disponho não é infinito e, ano após ano, o meu entusiasmo pelas coisas em geral vem decrescendo. É preciso, pois, fazer escolhas.
Assim sendo, como foi difícil escrever a postagem atual!
A chegada de uma adaptação do Cem anos de solidão na Netflix me fez relê-lo algumas semanas atrás: não me lembrava da última vez que o fiz. Foi difícil, simplesmente, porque não gosto desse romance. Além disso, Gabriel García Márquez não é um escritor de minha particular estima; com exceção de Relato de um náufrago e, por razões diferentes, Crônica de uma morte anunciada, sua obra me interessa bem pouco.
Acontece, porém, que estamos falando do Cem anos de solidão , um livro não só amado por um montão de gente mundo afora, particularmente na América Latina e Caribe, mas também reputado como uma grandiosa façanha literária: Pablo Neruda, por exemplo, considerava-o a maior revelação em língua espanhola desde o Dom Quixote. Então, às favas com meu critério ordinário.
Para começar a conversa, devo dizer que achei a adaptação da Netflix muito boa e isso me surpreendeu. Parte das produções da empresa sempre me pareceram pasteurizadas demais e não foi o caso dessa, embora os roteiristas tenham recorrido aqui e ali a alguns recursos um tanto gastos da teledramaturgia - afinal, uma companhia de streaming tão grande nunca deixará a preocupação com os índices de audiência de lado e precisa atrair o maior número possível de espectadores.
Os principais méritos, a meu ver, estão nas movimentações de câmera e na concepção cenográfica tanto de Macondo quanto a da casa da família Buendía (acompanhar, a cada episódio, as mudanças na arquitetura do imaginário povoado/município e, sobretudo, na residência foi muito prazeroso). O trabalho dos atores também merece ser destacado: Susana Morales Cañas (que interpreta Úrsula Iguarán, enquanto jovem) e Janer Villarreal (que interpreta o Arcadio adulto, o filho de José Arcadio e Pilar Ternera) são meus preferidos. A narração em off - recurso geralmente não muito apreciado em trabalhos audiovisuais - ficou na medida certa.
Cem anos de solidão, como se sabe, é daqueles romances profusos, conjugando diversas historietas ramificadas, casando muito bem com o formato seriado (se fizessem um filme a partir da narrativa literária, é bastante provável que não daria certo, mesmo que tivesse, sei lá, quatro horas de duração). Entretanto, concordo com Rodrigo García Barcha, cineasta e um dos filhos de García Márquez, que a série "é uma experiência diferente e deve ser apreciada pelo que é, sem comparar constantemente com o livro. Para mim, são projetos-irmãos que se complementam".
Às vezes, porém, a comparação é incontornável. Penso, por exemplo, num dos momentos mais marcantes (pelo menos para mim) : a morte de José Arcadio - não o patriarca, mas seu filho primogênito de mesmo nome - e como a fatídica notícia chegou à sua mãe. Reproduzo o trecho abaixo ¹:
"Uma tarde de setembro, diante da ameaça de uma tempestade, [José Arcadio] voltou para casa mais cedo que de costume. Cumprimentou Rebeca na copa, amarrou os cachorros no quintal, pendurou os coelhos na cozinha, para salgá-los mais tarde, e foi para o quarto trocar de roupa. Rebeca declarou depois que quando o marido entrou no quarto, ela se fechou no banheiro e não percebeu nada. Era uma versão difícil de acreditar, mas não havia outra mais verossímil, e ninguém pôde conceber um motivo para que Rebeca assassinasse o homem que a tinha feito feliz. Este foi talvez o único mistério que nunca se esclareceu em Macondo. Logo que José Arcadio fechou a porta do quarto, o estampido de um tiro retumbou na casa. Um fio de sangue passou por debaixo da porta, atravessou a sala, saiu para a rua, seguiu reto pelas calçadas irregulares, desceu degraus e subiu pequenos muros, passou de largo pela Rua dos Turcos, dobrou uma esquina à direita e outra à esquerda, virou em ângulo reto diante da casa dos Buendía, passou por debaixo da porta fechada, atravessou a sala de visitas colado às paredes para não manchar os tapetes, continuou pela outra sala, evitou em curva aberta a mesa da copa, avançou pela varanda das begônias e passou sem ser visto por debaixo da cadeira de Amaranta, que dava uma aula de Aritmética a Aureliano José, e se meteu pela despensa e apareceu na cozinha onde Úrsula se dispunha a partir trinta e seis ovos para o pão.
- Ave Maria Puríssima! - gritou Úrsula.
Seguiu o fio de sangue em sentido contrário, e em busca da sua origem atravessou a despensa, passou pela varanda das begônias onde Aureliano José cantava que três e três são seis mais três são nove, e atravessou a copa e as salas e seguiu em linha reta pela rua, e em seguida dobrou à direita e depois à esquerda até a Rua dos Turcos, sem se lembrar que ainda trazia vestidos o avental de cozinha e as chinelas caseiras, e saiu para a praça e se meteu pela porta de uma casa onde não havia estado nunca, e empurrou a porta do quarto e quase se sufocou com o cheiro de pólvora queimada e encontrou José Arcadio caído de bruços no chão, sobre as polainas que acabava de tirar, e viu a fonte original do fio de sangue que já havia deixado de fluir do seu ouvido direito. Não encontraram nenhuma ferida no seu corpo nem puderam localizar a arma"
Estou convencido de que o percurso do fio de sangue não se tornará, visualmente falando, uma das sequências memoráveis da série; isso me desagradou um pouco, para ser sincero. Penso também que a pungência do relato escrito foi perdida, ainda que a voz em off tenha repetido quase textualmente essas frases do livro: "Era uma versão difícil de acreditar, mas não havia outra mais verossímil, e ninguém pôde conceber um motivo para que Rebeca assassinasse o homem que a tinha feito feliz. Este foi talvez o único mistério que nunca se esclareceu em Macondo". No episódio televisivo, Úrsula não gritou "Ave Maria Puríssima!" e, ao chegar à "a casa onde não havia estado nunca", encontrou o filho caído de costas e não de bruços.
OK, OK, pode ser apenas um descabido excesso de rigor ou um purismo artístico bobo da minha parte, mas, ao cabo, o que estou querendo ressaltar nada mais é do que um fenômeno conhecido por todos nós: a impossibilidade de um trabalho audiovisual reproduzir fielmente um trabalho literário.
A primeira temporada encerrou-se com a morte do fundador de Macondo (a chuva de flores amarelas ficou muito bonita) e o avanço da tropa de Aureliano para recuperar o controle da localidade. A segunda temporada provavelmente mostrará o crescimento e a queda da cidade, após a passagem da Companhia Bananeira (não dá para esquecer aquela célebre frase do Coronel Buendía: "Olhem a confusão em que nos metemos só por termos convidado um americano para comer banana" ). Curioso para ver como será o retrato da alucinada e insuportável carola Fernanda del Carpio e como mostrarão o paulatino crescimento da amargura e do rancor inesgotáveis de Amaranta.
Nada mais a fazer senão aguardar.
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¹ MÁRQUEZ, Gabriel García. Cem anos de solidão. Rio de Janeiro: O Globo; São Paulo: Folha de S. Paulo, 2003 [Tradução de Eliane Zagury]. Essa é, atualmente, a única edição do livro que tenho em casa, para acesso rápido e direto.
BG de Hoje
ZIZI POSSI nunca fez uma aparição nesta seção do blog. Um vacilo sem tamanho da minha parte, pois é das minhas intérpretes favoritas. A cantora tem uma sólida formação musical: é pianista e cursou regência e composição na UFBA. Mas, besta quadrada que sou, só fui saber disso há poucos anos, assistindo sua participação no célebre Ensaio (TV Cultura) e no bom programa do Charles Gavin no Canal Brasil, O Som do Vinil (tudo disponível no Youtube). Poderia ter se tornado concertista ou seguido carreira acadêmica. Felizmente, preferiu não nos privar de sua lindíssima voz. Escolho É a vida que diz, do disco Asa Morena, o álbum que a fez conhecida nacionalmente. Gosto demais dessa canção, uma das muitas resultantes da parceria entre os irmãos Marina Lima e Antonio Cicero, falecido recentemente (um terceiro autor - Pisca - também assina a composição). A própria Marina a gravou, mas a versão de Zizi Possi é excelente.