Falei de Montaigne no início da semana e acabei tendo de voltar a ele após a leitura de um romance de José Saramago. Explico.
Em As intermitências da morte*, no terceiro capítulo, relatando o debate ocorrido na "comissão interdisciplinar" formada por religiosos e filósofos, um dos últimos afirma: "Porque a filosofia precisa tanto da morte como as religiões, se filosofamos é por saber que morreremos, monsieur de montaigne já tinha dito que filosofar é aprender a morrer".
Saramago está fazendo referência direta a um texto do ensaísta francês**, assim iniciado:
A seguir, Montaigne estabelece inusitada relação entre o prazer e a virtude (considerando esta bom auxílio para a aceitação do fato de que vamos morrer); argumenta que, diante da inevitabilidade da morte, devemos aprender "a esperá-la de pé firme e lutar"; e acredita que a consciência do fim pode nos tornar menos servis: "meditar sobre a morte é meditar sobre a liberdade; quem aprendeu a morrer, desaprendeu de servir; nenhum mal atingirá quem na existência compreendeu que a privação da vida não é um mal; saber morrer nos exime de toda sujeição e constrangimento".
Mas o momento mais interessante do ensaio encontra-se no trecho abaixo:
A narrativa mitológica recuperada por Montaigne toca em questões profundas (até mesmo o suicídio). E, de certa forma, o romancista português tratará delas em sua narrativa. Mas este assunto fica para mais adiante.
Por enquanto, retorno ao terceiro capítulo de As intermitências da morte. Tanto os filósofos quanto os religiosos tiveram imensa dificuldade para atuarem dentro da nova realidade surgida com a "greve" da morte. Estou propenso, entretanto, a considerar que o narrador pende mais para o lado dos filósofos. Atentemos para o diálogo - cheio do humor peculiar de Saramago - reproduzido abaixo:
Volto a falar do livro de Saramago na próxima semana.
Em As intermitências da morte*, no terceiro capítulo, relatando o debate ocorrido na "comissão interdisciplinar" formada por religiosos e filósofos, um dos últimos afirma: "Porque a filosofia precisa tanto da morte como as religiões, se filosofamos é por saber que morreremos, monsieur de montaigne já tinha dito que filosofar é aprender a morrer".
Saramago está fazendo referência direta a um texto do ensaísta francês**, assim iniciado:
"Diz Cícero [muito provavelmente remetendo a Sócrates/Platão] que filosofar não é outra coisa senão preparar-se para a morte. Isso, talvez, porque o estudo e a contemplação tiram a alma para fora de nós, separam-na do corpo, o que, em suma, se assemelha à morte e constitui como que um aprendizado em vista dela. Ou então é porque de toda sabedoria e inteligência resulta, finalmente, que aprendemos a não ter receio de morrer".
A seguir, Montaigne estabelece inusitada relação entre o prazer e a virtude (considerando esta bom auxílio para a aceitação do fato de que vamos morrer); argumenta que, diante da inevitabilidade da morte, devemos aprender "a esperá-la de pé firme e lutar"; e acredita que a consciência do fim pode nos tornar menos servis: "meditar sobre a morte é meditar sobre a liberdade; quem aprendeu a morrer, desaprendeu de servir; nenhum mal atingirá quem na existência compreendeu que a privação da vida não é um mal; saber morrer nos exime de toda sujeição e constrangimento".
Mas o momento mais interessante do ensaio encontra-se no trecho abaixo:
"Quíron recusou a imortalidade quando Saturno, seu pai, deus do tempo e da mortalidade, lhe revelou as condições dela. Imaginai a que ponto uma vida sem fim fora menos tolerável e mais penosa para o homem do que a que lhe foi dada. Se não tivésseis a morte, vós me amaldiçoaríeis sem cessar por vos haver privado dela. Foi propositadamente que a ela juntei alguma amargura, a fim de impedir que, ante a comodidade de seu uso, não a buscásseis com excessiva avidez. Para vos trazer a essa moderação que solicito de vós, de não abreviar a vida e não tentar esquivar a morte, temperei-as pelas sensações, mais ou menos suaves, mais ou menos duras que vos podem outorgar".
A narrativa mitológica recuperada por Montaigne toca em questões profundas (até mesmo o suicídio). E, de certa forma, o romancista português tratará delas em sua narrativa. Mas este assunto fica para mais adiante.
Por enquanto, retorno ao terceiro capítulo de As intermitências da morte. Tanto os filósofos quanto os religiosos tiveram imensa dificuldade para atuarem dentro da nova realidade surgida com a "greve" da morte. Estou propenso, entretanto, a considerar que o narrador pende mais para o lado dos filósofos. Atentemos para o diálogo - cheio do humor peculiar de Saramago - reproduzido abaixo:
"As religiões, todas elas [disse o mais velho dos filósofos pessimistas], por mais voltas que lhes dermos, não têm outra justificação para existir que não seja a morte, precisam dela como do pão para a boca. Os delegados das religiões não se deram ao incómodo de protestar. Pelo contrário, um deles, conceituado integrante do sector católico, disse, Tem razão, senhor filósofo, é para isso mesmo que nós existimos, para que as pessoas levem toda a vida com o medo pendurado ao pescoço e, chegada a sua hora, acolham a morte como uma libertação, O paraíso, Paraíso ou inferno, ou cousa nenhuma , o que se passe depois da morte importa-nos muito menos que o que geralmente se crê, a religião, senhor filósofo, é um assunto da terra, não tem nada que ver com o céu, Não foi o que nos habituaram a ouvir, Algo teríamos que dizer para tornar atractiva a mercadoria, Isso quer dizer que em realidade não acreditam na vida eterna, Fazemos de conta. Durante um minuto ninguém falou. O mais velho dos pessimistas deixou que um vago e suave sorriso se lhe espalhasse na cara e mostrou o ar de quem tinha acabado de ver coroada de êxito uma difícil experiência de laboratório".
Volto a falar do livro de Saramago na próxima semana.
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* SARAMAGO, José. As intermitências da morte. São Paulo: Companhia das Letras, 2005
** MONTAIGNE, Michel de. De como filosofar é aprender a morrer. In: __________. Ensaios: vol. 1. 2 ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília; Hucitec, 1987. p. 157-169 [tradução de Sérgio Milliet]
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