terça-feira, 22 de maio de 2012

"Vadiagens pelos recantos do idioma"

"Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.".

Manoel de Barros, no poema O apanhador de desperdícios (do livro Memórias Inventadas*)

 
 
Ocorreu-me a lembrança de Manoel de Barros no momento em que escrevia a última postagem, discutindo matéria publicada na revista Metáfora (que mencionava, entre outras coisas, brinquedos construídos a partir de autores, obras e personagens literários). Desejo voltar ao tema do brinquedo, pois a brincadeira é um elemento constitutivo da poesia de Barros.

Numa entrevista concedida, anos atrás, à  revista Caros Amigos*, o poeta, relembrando certa conversa que manteve com Guimarães Rosa, disse: "Eu andei procurando retirar das palavras suas banalidades. Não gostava de palavra acostumada. E hoje gosto mais de brincar com as palavras do que de pensar com elas. Tenho preguiça de ser sério". Logo adiante, dando outra resposta, concorda que pratica uma "língua de brincar":

"É um dialeto infantil. Acho que passei a vida inteira brincando, porque todo mundo ri da minha poesia. Riem quando compreendem. Comecei a ler meus versos. São todos assim: quanto à razão, inclusive se você for raciocinar em cima do verso pra procurar o sentido, não acha a ideia, porque a linguagem apaga a ideia, a metáfora destrói qualquer ideia. As ideias depois, se quiserem, inventem".

Essa opção por uma "língua de brincar" pode ser melhor percebida lendo a série Memórias inventadas: as infâncias de Manoel de Barros**.

No texto que serve de prefácio ao livro, o mato-grossense escreve: "Acho que o que eu faço agora é o que não pude fazer na infância. Faço outro tipo de peraltagem". E nas Memórias inventadas, brinca, ao mesmo tempo, com a linguagem e com a noção de autobiografia.

As memórias são inventadas, ou seja, nem tudo ali (ou quase nada) é factual - o que pouco importa para a apreciação do livro. E é possível buscar nos diversos textos indícios que forneçam meios para compreender o modo de fazer poesia adotado por Manoel de Barros.

Em Delírios, o poeta nos conta ter adquirido, desde menino, o hábito de anotar frases insólitas, futuras candidatas a virarem versos: "Esses delírios irracionais da imaginação fazem mais bela a nossa linguagem". Em Soberania ele nos diz ter aprendido com Einstein que "a imaginação é mais importante do que o saber" e decidiu botar "um pouco de inocência na erudição"; seu olho "começou a ver de novo as pobres coisas do chão mijadas de orvalho". Lemos em Jubilação:

"Na faceirice as palavras me oferecem todos os seus lados. Então a gente sai a vadiar com elas por todos os cantos do idioma. Ficamos a brincar brincadeiras e brincadeiras. Porque a gente não queria informar acontecimentos. Nem contar episódios. Nem fazer histórias. A gente só gostasse de fazer de conta. De inventar as coisas que aumentassem o nada. A gente não gostasse de fazer nada que não fosse de brinquedo. Essas vadiagens pelos recantos do idioma seriam só para fazer jubilação com as palavras. Tirar delas algum motivo de alegria. Uma alegria de não informar nada de nada".

A poesia de Manoel de Barros está repleta dessas "vadiagens pelos recantos do idioma": não há intenção de "informar nada de nada". Um estraga-prazeres beeeem obtuso poderia perguntar: se assim é, qual a utilidade dessa poesia?

Ah, esse é assunto pra outra postagem...

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* Três momentos de um gênio. Caros Amigos, São Paulo, ano X, n. 117, dez. 2006, p. 29-33

** BARROS, Manoel de. Memórias inventadas: as infâncias de Manoel de Barros. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2008


BG de Hoje

Gosto de grupos de rock que sabem usar o humor. Até mesmo para rirem deles mesmos. Nesse quesito, o ULTRAJE A RIGOR ainda é uma das minhas referências, como neste reggae "desleixado": Mim quer tocar.