sábado, 16 de maio de 2020

Onde cabe a poesia?


O livro A poesia e a crítica, reunião de alguns ensaios produzidos nas últimas duas décadas pelo poeta e filósofo Antonio Cicero, foi lançado em 2017, pela Companhia das Letras. Só pude comprá-lo no ano passado e o li pela primeira vez há poucos meses.

Encontros e desencontros com a contracultura - o primeiro dos textos do livro - não é propriamente um ensaio, mas um depoimento. Para além de refletir sobre o fenômeno da contracultura, o autor narra parte de sua trajetória e de suas escolhas na condição de estudante universitário de Filosofia, fornecendo ao leitor importantes informações sobre sua formação intelectual. Tendo partido para estudar em Londres após o golpe militar de 1964, Cicero fala também da influência exercida por Caetano Veloso (com quem pôde conviver durante algum tempo na capital inglesa, onde o artista baiano se exilara).

Em Poesia e preguiça, o ensaísta vale-se de T. S. Eliot, Baudelaire e Paul Valéry (entre outros) para defender a importância da preguiça na feitura dos poemas, isto é, "a ênfase na preguiça significa simplesmente que a gestação do poema tem um sentido completamente diferente do que tem o trabalho utilitário cotidiano". Esse texto também discute a relação da produção/recepção de poesia com o tempo, tópico retomado ao longo da publicação em pelo menos dois outros escritos. Voltarei ao tema mais adiante.

Defendendo o conceito de cânone poético/literário no ensaio que dá nome ao livro de que estamos falando, Antonio Cicero acredita que é preciso haver uma seleção de textos/autores(as), construída ao longo do tempo pelos críticos. Estes, por sua vez, seriam "todos aqueles que explicitam e defendem publicamente os seus juízos estéticos no que diz respeito à poesia", um conjunto de indivíduos, portanto, não restrito aos críticos profissionais. Essa seleção de textos/autores(as) tem como função principal balizar e orientar tanto a formação de poetas quanto qualificar os leitores de poesia. Nesse ensaio, o autor desanca o teórico da literatura britânico Terry Eagleton (estudioso sobre o qual já falei positivamente, aliás, aqui no blog).

Provavelmente mais conhecido do grande público por seu trabalho como compositor (letrista), Cicero aborda uma recorrente questão em Sobre as letras de canções: seriam estas poemas ou não? Neste ensaio, pode-se encontrar uma discussão mais ampliada do assunto, frequentemente tratado pelo autor, como em uma de suas antigas colunas publicadas quinzenalmente na Folha de S. Paulo. Essa coluna, a propósito, pode ser encontrada no blog do artista (Acontecimentos, um dos recomendados da casa). Já falamos do tema, há bastante tempo, aqui no blog.

Em O verso, um dos textos mais curtos, encontramos mais uma vez um importante esclarecimento feito anteriormente por Antonio Cicero: prosa não se opõe à poesia, mas sim ao verso, um dos maiores recursos poéticos (senão o maior). 

Os seis ensaios que se seguem a O verso analisam o trabalho de diversos poetas: Armando Freitas Filho, Ferreira Gullar, Fernando Pessoa e Friedrich Hölderlin (o escrito dedicado ao último é o mais extenso ensaio de todo o livro).

A poesia e a crítica encerra-se, curiosamente, com a breve apreciação de um texto em prosa: no caso, A montanha mágica, de Thomas Mann (disponível também aqui; a propósito, já falamos dessa mesma obra aqui, aqui e aqui). Como havia explicado na apresentação de seu livro, o poeta e filósofo concede ao romance do escritor alemão um papel importante em sua formação geral.

Gostaria agora de voltar a dois ensaios sobre os quais ainda não falei.

Havia escrito, parágrafos acima, que a relação da produção/recepção da poesia com o tempo é um tópico presente em mais de um texto dentro do livro.

Verificando que, no mundo contemporâneo, é difícil para a imensa maioria apreciar a leitura de poesia - pois nos encontramos "sob o domínio quase absoluto da apreensão instrumental do ser", quando não se consegue perceber o valor das coisas por elas mesmas (tudo é sempre um meio para se alcançar outra coisa) -, Antonio Cicero escreve no ensaio A poesia entre o silêncio e a prosa do mundo:

"Nessas circunstâncias, não admira que o dinheiro - o meio por excelência, pois é o meio dos meios - seja o que há de mais importante. O que seria apenas um meio torna-se o verdadeiro fim. Ora, num mundo assim, em que, para o senso comum  'tempo é dinheiro', parece irracional que se faça um investimento de tempo sem nenhuma garantia de que se venha a obter, num prazo determinado, qualquer compensação ou retorno. Consequentemente, poucos se permitem mergulhar no poema, isto é, pensar nele, com ele, através dele, pondo à disposição dele, pelo tempo que se faça necessário, o livre jogo de todas as faculdades que esse pensamento integral requeira".

Para o ensaísta, a poesia escrita para ser lida (diferentemente da poesia escrita para ser ouvida, isto é, a que está presente nas letras de muitas canções) dificilmente pode ser fruída sem que se dedique a ela concentração e tempo: "Para fruir um poema, é preciso nele imergir. E como tal imersão não combina com a temporalidade acelerada do presente, muitos afirmam que a poesia simplesmente não tem mais lugar nesse mundo".

E acrescenta:

"Pois bem, é exatamente por não se ajustar à temporalidade acelerada do presente que a poesia é necessária hoje. Afinal, a temporalidade acelerada corresponde à apreensão instrumental do ser. Assim, é bom que a poesia, longe de se ajustar a ela, relativize-a, uma vez que nos dá acesso a esse outro modo de apreensão do ser e do tempo - o estético - que enriquece imensamente à vida humana. [...]"

Por sua vez, na análise de um dos poemas mais marcantes de nossa Literatura - Sobre A flor e a náusea, de Drummond -, ele afirma:

"Ora, uma das ambições da poesia é exatamente desautomatizar a linguagem, a percepção do mundo e o pensamento, de modo a nos permitir apreender linguagem, mundo e pensamento como se fosse pela primeira vez. Não se trata de um consolo, mas do transporte para outra dimensão do tempo, para outra dimensão da existência, inteiramente distinta daquela que é regida pelo princípio do desempenho, da utilidade, da instrumentalidade, do valor de troca [...]".

Para compreendermos ainda melhor o que nos diz Antonio Cicero, convido o(a) eventual leitor(a) a lermos juntos um dos meus poemas prediletos: Plena pausa, de Paulo Leminski  ¹:

PLENA PAUSA

     Lugar onde se faz
o que já foi feito,
    branco da página,
soma de todos os textos,
    foi-se o tempo
quando, escrevendo,
    era preciso
uma folha isenta.

    Nenhuma página
jamais foi limpa.
    Mesmo a mais Saara,
ártica, significa.
    Nunca houve isso,
uma página em branco.
    No fundo, todas gritam,
pálidas de tanto.


Confesso que não atentei para seu sentido mais profundo, nas primeiras vezes em que li este poema, muito tempo atrás. Apenas achei bonitas as combinações de palavras. Também fiquei fascinado pelo último verso - pálidas de tanto (voltaremos a este, daqui a pouco).

Mas qual seria esse sentido profundo? Acredito que Leminski está tratando, poeticamente, de algo que afeta (e às vezes aflige) os escritores: o peso representado por todas as obras já escritas, sobretudo aquelas que compõem o que consideramos os textos mais significativos já produzidos (o cânone, para recuperar um conceito discutido por Antonio Cicero num de seus ensaios).

"Lugar onde se faz/o que já foi feito". Muitos poetas talvez fiquem intimidados ou mesmo paralisados diante de uma página em branco ao se lembrarem de que aquilo que tencionam escrever provavelmente nada terá de original, pois já foi experimentado e realizado antes por outro poeta, inclusive, com maior beleza (isso, naturalmente, vale para romancistas, contistas, etc.). Por isso a página vazia, não-escrita, representa a tradição literária que antecede o poeta: "branco da página/soma de todos os textos". NOTA: perceba o jogo feito por Leminski. A página é branca: ainda assim, soma todos os textos da tradição literária, do mesmo modo que o branco soma todas as cores (pelo menos quando estamos falando do espectro luminoso).

Porém, não é preciso ficar intimidado nem paralisado. Os artistas, se talentosos, saberão usar essa tradição a seu favor: dialogando com ela ou até subvertendo-a: "foi-se o tempo/quando escrevendo,/era preciso/ uma folha isenta".

Os textos predecessores existem, são um fato. Por isso "Nenhuma página/jamais foi limpa". E "No fundo todas gritam". Gritam o quê? Justamente toda a arte que foi registrada antes delas, noutras páginas. E estão "pálidas de tanto". É admirável como a simples troca de espanto (evitando um pavoroso lugar-comum) por tanto cria um efeito de sentido tão poderoso. O tanto refere-se, acredito eu, à tradição literária que virtualmente paira sobre a página em branco.

E assim o título do poema - Plena pausa - fica mais claro. A página em branco, que dentro de um livro pode representar uma pausa, está também plena, isto é, cheia de toda a arte da escrita que a circunda de forma latente.

Como se vê, os bons poemas, para serem apreciados e compreendidos em plenitude, demandam de nós dedicação e tempo (mesmo um poema de apenas 16 versos, como esse de Leminski, que acabamos de analisar). Mas quem está disposto a isso?

Vivemos num mundo que a todo momento martela em nossas cabeças: "NÃO PERCA TEMPO!", "SEJA RÁPIDO!", "PRODUZA!" - como se isso estivesse fazendo nossa vida melhor, como se estivéssemos tornando este mundo um lugar melhor...

É por isso que, pelo menos no meu caso, vou sempre deixar um espaço onde a poesia caiba em minha vida, pois desejo ter "acesso a esse outro modo de apreensão do ser e do tempo - o estético - que enriquece imensamente à vida humana", como bem disse Antonio Cicero.
__________
¹ LEMINSKI, Paulo. Melhores poemas de Paulo Leminski. 6 ed. São Paulo: Global, 2002. [Seleção de Fred Góes e Álvaro Martins] (Coleção Melhores Poemas)

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ALDIR BLANC (1946 - 2020)

Ao pensar nas letras de canções como poemas (e, sem dúvida, muitas delas certamente o são), é preciso lembrar de Aldir Blanc, falecido recentemente. Num país que produziu e produz tantos ótimos letristas-poetas (Chico Buarque, Antonio Cicero, Cazuza, Gilberto Gil, Arnaldo Antunes, Fernando Brant, Caetano Veloso, Emicida, Vinícius de Moraes, Chico César...), Blanc foi um dos maiores. O(a) eventual leitor(a) encontrará menções ao principal parceiro de João Bosco em algumas postagens deste blog. Uma de suas letras-poemas de que mais gosto é também uma das mais simples que ele escreveu:

LATIN LOVER

Nos dissemos
que o começo é sempre,
sempre inesquecível.
E, no entanto, meu amor, que coisa incrível,
esqueci nosso começo inesquecível.
Mas me lembro
de uma noite.
Sua mãe tinha saído.
Me falaste de um sinal adquirido
numa queda de patins em Paquetá:
Mostra... doeu?... ainda dói?...
A voz mais rouca,
e os beijos,
cometas percorrendo o céu da boca...
As lembranças
acompanham até o fim um
latin lover,
que hoje morre,
sem revólver,
sem ciúmes,
sem remédio.

De tédio.

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BG de Hoje

Não é difícil encontrar por aí muita gente que tem profunda antipatia pelo comediante e apresentador norte-americano JIMMY FALLON. "Suas risadas geralmente são falsas"; "Ele é meio alienado politicamente"; "Às vezes, quer chamar mais atenção para si do que para o(a) convidado(a)" - essas e outras críticas costumam ser dirigidas ao ex-integrante do longevo humorístico Saturday Night Live. Admito que não são observações descabidas. Entretanto, não tenho vergonha nenhuma de dizer que gosto muito do trabalho dele - sobretudo a infantilidade da maioria dos quadros do programa, outra crítica recorrente - e não me canso de assistir trechos de seu talk show disponibilizados no Youtube. Como o vídeo abaixo, por exemplo. Com a participação do lendário grupo de hip hop THE ROOTS (atualmente, a banda que divide o palco com Fallon na sua atração de TV), o comediante (que também é músico) promoveu uma versão formidável do hit Don't Stand So Close To Me (THE POLICE), junto com STING. O uso de alguns "instrumentos musicais" inusitados não é novidade para esses caras dentro do programa e, dado o isolamento social decorrente da pandemia de COVID-19, ficou mais do que adequado.