segunda-feira, 25 de maio de 2009

"[...]Satélites da tua subjetividade objetiva"

"Afinal tudo, porque tudo é eu,
E até as estrelas, ao que parece,
Me saíram da algibeira para deslumbrar crianças...
Que crianças não sei...
Eu...
Imperfeito? Incógnito? Divino?
Não sei...
Eu..."

Fernando Pessoa/Álvaro de Campos


O jornalista Arthur Dapieve, referindo-se a O Estrangeiro, escreveu, certa vez, que a narrativa de Albert Camus é "uma espécie um tanto perversa de livro de autoajuda". Parafraseando-o, eu diria que, a propósito do poema Se te queres matar, por que não te queres matar*, de Fernando Pessoa/Álvaro de Campos, estamos diante de um tipo um tanto cruel de texto de autoajuda.

Devo esclarecer, desde já, que, ao lado de Elegia 1938 e A máquina do mundo (ambos de Carlos Drummond de Andrade), considero Se te queres matar ... um dos mais belos poemas que já li.

Como se sabe, este texto remete ao suicídio (real) do escritor Mário de Sá-Carneiro, amigo de Pessoa. Mas não é isso que nos interessa. Dada a sua extensão (pode ser encontrado na íntegra aqui), concentremo-nos nestas estrofes:

"Encara-te a frio, e encara frio o que somos...
Se queres matar-te, mata-te...
Não tenhas escrúpulos morais, receios de inteligência!...
Que escrúpulos ou receios tem a mecânica da vida?
Que escrúpulos químicos tem o impulso que gera
As seivas, e a circulação do sangue, e o amor?
Que memórias dos outros tem o ritmo alegre da vida?

Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada homem,
Não vês que não tens importância absolutamente nenhuma?

És importante para ti, porque é a ti que te sentes.
És tudo para ti, porque para ti és o universo,
E o próprio universo e os outros
Satélites da tua subjetividade objectiva.
És importante para ti porque só tu és importante para ti.
E se és assim, ó mito, não serão os outros assim?"

De início, não há como não destacar a genialidade de composição do poeta, ao intercalar nos versos aquilo que é orgânico (portanto, "material") com o não-orgânico (ou seja, "sentimental"), de maneira aparentemente fortuita, e cujo efeito é mostrar que não há superioridade de um sobre o outro. Não há "escrúpulos químicos" na vida; e são os mesmos impulsos que fazem circular o sangue e produzem essa coisa que se convencionou chamar de "amor". "A vida de todos os dias retoma o seu dia" após a morte de qualquer pessoa; o "ritmo alegre da vida" não se lembra daqueles que morreram...

Depois, a grande profundidade filosófica do poema transparece.

Antes uma observação: Ricardo Reis, outro dos heterônimos de Pessoa, afirmou, a respeito de Álvaro de Campos, que este faz, na verdade, uma "prosa ritmada". De fato, a maioria dos melhores poemas de Campos tem uma certa "narratividade". Em Se te queres matar... não é diferente.

Falávamos, entretanto, do ponto em que o poema chega à Filosofia. Uma palavra: solipsismo.

Abbagnano** define o solipsismo como sendo a "tese de que só eu existo e de que todos os outros entes (homens e coisas) são apenas idéias minhas". Também afirma que "Kant empregou o termo solipsismo para indicar a totalidade das inclinações que, quando satisfeitas, produzem felicidade". Ainda segundo o autor, "frequentemente, o solipsismo foi declarado irrefutável, pelo menos com provas teóricas; tal era a opinião de Schopenhauer". Obviamente, a irrefutabilidade só se dá no plano idealista. Ainda assim, o termo chegou, até o século XX, no pensamento de Wittgenstein.

Enxergar as outras pessoas como "satélites da tua subjetividade objectiva" - uma das características do solipsismo - não é um privilégio daquele que é exortado no poema: "se é assim, ó mito, não serão os outros assim?". O desencanto do poeta encontra aqui sua melhor expressão. Todos só vivem em seus próprios mundos individualistas.
__________
* PESSOA, Fernando. Poemas de Álvaro de Campos: obra poética IV. Porto Alegre: L & PM, 2006

**
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 5 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007