domingo, 24 de maio de 2009

Kiríllov

 
[Postagem atualizada em 06/05/2021]

"Sou obrigado a me matar, porque o ponto mais importante do meu arbítrio é: eu mesmo me matar".

do personagem Kiríllov, em Os demônios, de Dostoiévski

 
 
Ah, Dostoiévski e seus melodramas, dos quais sempre brota excelente literatura... Assim acontece, por exemplo, n'Os Irmãos Karamazov. O escritor russo também é responsável por algumas das personagens mais inesquecíveis da Literatura universal: Raskólnikov e Svidrigáilov (Crime e Castigo) ou o Príncipe Míchkin (O idiota) representam bem essa galeria.

N' Os demônios, romance publicado em 1871, encontramo-nos imersos num desses mundos singulares criados por Dostoiévski, ao lado de "seres" como Stiepan Trofímovitch e sua fatuidade afrancesada, Piotr Vierkhoviénski e sua canalhice insidiosa, Nikolai Stavróguin e sua "nobre" perversidade. O livro, contudo, nos apresenta duas personagens que merecem atenção, apesar de ocuparem poucas páginas: o jovem militar Erkel e o engenheiro Aleksiêi Nílitch Kiríllov. Tratemos apenas deste último na postagem de hoje.

Paulo Bezerra, o tradutor da edição* aqui observada, afirma, no posfácio da obra (Um romance profecia) que "encontramos em Kiríllov um nietzscheano sem Nietzsche". De fato, a oposição ao cristianismo do filósofo alemão e sua concepção de super-homem estão em correspondência com as palavras ditas pela personagem dostoievskiana, ao longo do romance. Observemos esta passagem, como exemplificação:

"A vida é dor, a vida é medo, e o homem é um infeliz. Hoje tudo é dor e medo. Hoje o homem ama a vida porque ama a dor e o medo. E foi assim que fizeram. Agora a vida se apresenta como dor e medo, e nisso está todo o engano. Hoje o homem ainda não é aquele homem. Haverá um novo homem, feliz e altivo. Aquele para quem for indiferente viver ou não viver será o novo homem. Quem vencer a dor e o medo, esse mesmo será Deus. E o outro Deus não existirá" [grifos meus]

Mas Kiríllov é também aquele que antecipou muito do que se encontra na base do pensamento existencialista. Há uma sentença famosa de Albert Camus (O mito de Sísifo) na qual se afirma que "só existe um problema filosófico realmente sério: o suicídio.". Como se pode ler na epígrafe dessa postagem, é pela afirmação da autonomia do indivíduo, de sua livre escolha, que Kiríllov deseja se matar. Leiamos ainda este outro trecho:

"Será que ninguém, em todo o planeta, depois de ter eliminado Deus e acreditado no arbítrio, não se atreve a proclamar o arbítrio no seu aspecto mais pleno? É o que ocorre com aquele pobre que recebe uma herança, fica assustado e não se atreve a chegar-se ao saco por se achar fraco para possuí-lo. Quero proclamar o arbítrio. Ainda que sozinho, mas o farei".

"O arbítrio no seu aspecto mais pleno"... E o que seria mais pleno (nesse sentido) do que dispor da própria vida? A radicalidade da ideia de liberdade exposta por Kiríllov é encantadora e assustadora ao mesmo tempo. Provavelmente, mais assustadora, pois o narrador fez questão de elencar o engenheiro no rol dos endemoninhados do romance, uma vez que, para Dostoiévski, o ateísmo era inaceitável.

Ainda assim, ao descrever o que se experimentava durante um ataque epiléptico, são de Kiríllov essas palavras quase poéticas (e nesse ponto, há uma total identificação da personagem com o autor, também vítima da doença):

"Existem segundos - apenas uns cinco ou seis simultâneos - que você sente de chofre a presença de uma harmonia eterna plenamente atingida. Isso não é da terra; não estou dizendo que seja do céu, mas que o homem não consegue suportá-lo em sua forma terrestre. Precisa mudar fisicamente ou morrer. É um sentimento claro e indiscutível. É como se de súbito você sentisse toda a natureza e dissesse: sim, isso é verdade!"

Ao falar sobre o suicídio, não pude deixar de recordar-me de um poema de Álvaro de Campos/ Fernando Pessoa. Isso fica para a próxima postagem, entretanto.

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* DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os demônios. (trad. Paulo Bezerra). São Paulo: Ed. 34, 2004