quinta-feira, 28 de abril de 2016

"Alma de bandido tímido" (II)


Em 1955, o crítico literário Eugênio Gomes assim se expressou a respeito do escritor Lima Barreto*: "Seus extravasamentos de ressentido não obedeciam a nenhuma conveniência, certamente por efeito de uma neurose exacerbada após a alucinação de seu pai e, mais tarde, pela dipsomania, tão responsável por seus desregramentos de vida". E a coisa fica pior:

"O fato é que Lima Barreto atraiu para si o inconsciente coletivo da gente de cor, em sua época, quando, entretanto, muitos outros mestiços de talento ocupavam posições de relevo na sociedade, nas letras e na alta política do país. De outro modo não se compreende que tivesse dado tão exageradas proporções a uma luta de competições que, embora cruel e inumana a certos aspectos, só podia abater os fracos e inaptos".

A antipatia (diria até a animosidade) do crítico para com o autor de O homem que sabia javanês é patente. Mas não é aí que está o problema de sua análise (afinal, a crítica literária profissional não é feita - ou pelo menos não deveria ser feita - apenas com os livros e autores ou autoras dos quais se gosta). A posição de Eugênio Gomes é baseada, primeiro, num psicologismo um tanto capenga. E, na sequência, o crítico demonstra total desconhecimento dos mecanismos de "filtragem" social (leia-se exclusão) operantes na sociedade brasileira, impedindo a ascensão de determinados grupos sociais (como a população negra) a muitos postos e "posições de relevo", mesmo em se tratando de "mestiços de talento".

Por outro lado, só para efeito de comparação, vejamos como Eugênio Gomes se refere a outro escritor - Coelho Neto - na mesma ocasião:

"Dotado de extraordinária imaginação e de grande força criadora, naturalmente eloquente e podendo servir-se, ao correr da pena, de um inexcedível vocabulário (calculado mais ou menos em vinte mil palavras), Coelho Neto pode ser considerado, no domínio da prosa, um escritor dos mais completos, devendo seus romances e crônicas, contos e críticas, e mesmo suas peças de teatro, ser colocadas entre os melhores dos nossos melhores autores".

Agora em 2016, percebemos o quanto tal posicionamento é revelador da falta de visão do crítico, pois ainda lemos Lima Barreto (os que são leitores de verdade, naturalmente) em nossos dias, cientes de sua importância. Alguém aí, entretanto, saberia mencionar ao menos o título de um livro qualquer de Coelho Neto (não vale olhar no Google, hein)?

Eugênio Gomes assemelha-se um pouco ao Floc, personagem de Recordações do escritor Isaías Caminha**. Segundo o narrador, a crítica de Floc "não obedecia a nenhum sistema, não seguia escola alguma. As suas regras estéticas eram as suas relações com o autor, as recomendações recebidas, os títulos universitários, o nascimento e a condição social" (não custa lembrar que o escritor tão incensado por Eugênio Gomes - embasbacado com o vocabulário de "mais ou menos vinte mil palavras" de Coelho Neto - foi deputado federal e presidiu a Academia Brasileira de Letras).

Lima Barreto não gostava de Coelho Neto. Tanto que o satirizou implacavelmente em seu romance de estreia, na figura de Veiga Filho, um sujeito que teve a desfaçatez de escrever um texto elogioso à própria obra para ser publicado no jornal como se o enaltecimento partisse de outrem. Claro que este não foi o caso do panegírico feito por Eugênio Gomes a Coelho Neto, mencionado acima. Ainda assim, observamos nele o exemplo significativo de um modelo de crítica literária que se distancia dos estudos de caráter universitário/acadêmico, sustentados por um substrato teórico, forma atual assumida pela crítica literária mais rigorosa. Importante dizer que esses estudos (de circulação não muito ampla, reduzida ao intramuros das universidades) coexistem com a crítica puramente subjetivista, bem mais difundida entre o público em geral, cuja permanência pode ser atestada facilmente no jornalismo ou em centenas de milhares de páginas espalhadas na web***.

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Costumo considerar Lima Barreto um de meus heróis. Entretanto, não se deve esquecer que ele foi, antes de mais nada, um ser humano falho, contraditório muitas vezes. Noutras ocasiões, revelando algo de si nada admirável.

A tese de doutorado Letras militantes: história, política e literatura em Lima Barreto**** apesar de reconhecer os méritos do escritor, buscou não mitificá-lo. O pesquisador Denilson Botelho não omitiu a dualidade vivida pelo artista. O indivíduo que “jamais renegará as suas origens”, morador do subúrbio e funcionário público de salário parco, é também aquele que, ao insistir e lutar por sua participação nos meios mais intelectualizados,

chegará mesmo a expressar desprezo e ódio pela gente simples com a qual convive. Embora seja ao lado dela que sempre colocará a sua literatura militante, admite não suportar a convivência com boa parte dessa camada mais pobre da população. Age, desta forma, como um intelectual que pensa num projeto para as classes populares, das quais não faz parte”.

Para corroborar o que diz, o pesquisador reproduz em sua tese trechos do Diário íntimo***** do escritor (só publicado em 1953, 21 anos após a morte deste). A certa altura, Lima Barreto anota:

“Eu tenho muita simpatia pela gente pobre do Brasil, especialmente pelos de cor, mas não me é possível transformar essa simpatia literária, artística, por assim dizer, em vida comum com eles, pelo menos com os que vivo, que, sem reconhecerem a minha superioridade, absolutamente não têm por mim nenhum respeito e nenhum amor que lhes fizesse obedecer cegamente”

A confissão é dura, indigna, mas também dolorosa (nesse caso) para quem a faz. Logo adiante, o escritor dá-se conta da gravidade da declaração e registra :

"Se essas notas forem algum dia lidas, o que eu não espero, há de ser difícil explicar esse sentimento doloroso que eu tenho de minha casa, do desacordo profundo entre mim e ela; é de tal forma nuançoso a razão de ser disso que para bem ser compreendido exigiria uma autobiografia, que nunca farei. Há cousas que, sentidas em nós, não podemos dizer. A minha melancolia, a mobilidade do meu espírito, o ceticismo que me corrói [...] nasceu da minha adolescência feita neste sentimento da minha vergonha doméstica, que também deu nascimento a minha única grande falta [...] Aqui bem alto declaro que, se a morte me surpreender, não permitindo que as inutilize [refere-se às notas do diário], peço a quem se servir delas que se sirva com o máximo cuidado e discrição, porque mesmo no túmulo eu poderia ter vergonha".

Apesar da sua "grande falta" (indicadora de seu lado preconceituoso), o autor ao menos tem consciência do quanto ela é vergonhosa. Por isso, prefiro pensar como o professor Antônio Arnoni Prado:

"Ler os livros de Lima Barreto é de alguma forma participar do drama do intelectual sitiado. Mais talvez do que isso, é um exercício de consciência histórica que conta com a vantagem, como poucas vezes noutro escritor brasileiro, de um difícil testemunho: constatar como a vida, e nesta a opressão e o fracasso, se converte em literatura".

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Deixei de responder a uma pergunta na postagem anterior. Lima Barreto disse, numa crônica, possuir a "alma de bandido tímido". Eu lembrei que os bandidos, além de ousados, são geralmente violentos. Mas e quando se trata de um “bandido tímido”? (essa era a pergunta não respondida).

Pois bem. Vamos dar uma olhada num excerto de Recordações do escrivão Isaías Caminha:

"Imbecis! pensei eu. Idiotas que vão pela vida sem examinar, vivendo quase por obrigação, acorrentados às suas misérias como galerianos à calceta! Gente miserável que dá sanção aos deputados, que os respeita e prestigia! Por que não lhes examinam as ações, o que fazem e para que servem? Se o fizessem... Ah! se o fizessem! Que surpresa! Riem-se, enquanto do suor, da resignação de vocês, das privações de todos tiram ócios de nababo e uma vida de sultão... Veio-me um assomo de ódio, de raiva má, assassina e destruidora; um baixo desejo de matar, de matar muita gente, para ter assim o critério da minha existência de fato".

Esse impulso violento do narrador-personagem surpreende o leitor, acostumado à maneiras educadas do pacato Isaías Caminha e este logo trata de retornar tudo ao estado anterior: "Depois dessa violenta sensação na minha natureza, invadiu-me uma grande covardia e um pavor sem nome. Fiquei amedrontado em face das cordas, das roldanas, dos contrapesos da sociedade; senti-os insuperáveis e destinados a esmagar-me, reduzir-me ao mínimo, a achatar-me completamente".

Porém, um esbarrão recebido dentro do bonde - "episódio insignificante", como ele mesmo reconhece - reacende em seu espírito o "desejo feroz de reivindicação. Senti-me humilhado, esmagado, enfraquecido por uma vida de estudo, servir de joguete, de irrisão, a esses poderosos todos por aí. Hoje que sou um tanto letrado sei que Stendhal dissera que são esses momentos que fazem os Robespierres. O nome não me veio à memória, mas foi isso que eu desejei chegar a ser um dia".

Sabemos que Isaías Caminha é o disfarce do autor Lima Barreto. As ações diretas - em que muitas vezes se necessita ser violento - não são de seu feitio, embora, mais ao final do romance, depois de "deitar por terra" um colega de profissão que o insultara de modo racista, ele tenha escrito (acertadamente, a meu ver): "no mundo é preciso o emprego da violência, do murro, do soco, para impedir que os maus e os covardes não nos esmaguem de todo". 

Lima Barreto, um escritor politizado, próximo do anarquismo e do socialismo, enxergava com nitidez "as cordas, roldanas e contrapesos da sociedade" que esmagavam os mais pobres. Não sejamos ingênuos: não é possível mudar esse estado de coisas somente esperando a boa vontade "desses poderosos todos por aí"; a ação revolucionária - portanto, a ação violenta - é a alternativa restante (e legítima) àqueles historicamente alijados do poder e do conforto material (este último, aliás, quase sempre decorrente da exploração econômica).

Contudo, Lima Barreto tinha a "alma de bandido tímido". Não recorreria à força física para tentar mudar a estrutura social brasileira, cheia de desigualdade e exclusão (mesmo sabedor de que uma revolução de fato deve trazer consigo, inerentemente, o seu quinhão de violência). A contribuição que imaginou acrescentar na luta contra a opressão se realizou na escrita, tentando tirar o leitor da passividade e da resignação, levando-o a pensar e problematizar suas condições de vida.

E isso não é pouco.
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* Esta avaliação crítica de Eugênio Gomes encontra-se no volume 4 (Era Realista/Era de Transição) da vetusta coleção A Literatura no Brasil, dirigida por Afrânio Coutinho. A edição consultada para essa postagem foi a sétima (revista e atualizada), publicada pela Editora Global em 2004.

** BARRETO, Lima. Recordações do escrivão Isaías Caminha. São Paulo: Ática, 1984

*** Embora tenha citado as opiniões de Eugênio Gomes com o propósito de mostrar o que penso ser falho nelas, não me oponho à crítica literária subjetivista in totum. Não é proveitoso para a Literatura, penso eu, ser discutida exclusivamente dentro do rigor acadêmico. E mais uma vez, não custa repetir: o blog Besta Quadrada não é um espaço de crítica literária; apenas comunica impressões de leitura de seu autor.

**** BOTELHO, Denilson. Letras militantes: história, política e literatura em Lima Barreto. 2001. Tese (Doutorado em História) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2001. Disponível em <http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=vtls000232427 >. Acesso em: 04/04/2016

***** O Diário íntimo, assim como toda obra de Lima Barreto está em domínio público. O livro pode ser obtido aqui <http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=2078 >. Acesso em 11/04/2016


BG de Hoje

Monólogo ao pé do ouvido/Banditismo por uma questão de classe é a faixa que abre o seminal álbum Da lama ao caos, de CHICO SCIENCE & NAÇÃO ZUMBI. O Monólogo... tem jeitão de manifesto (embora o disco contenha um manifesto propriamente dito - Caranguejos com cérebro - escrito no encarte). No Monólogo... há algumas saudações: a Zapata, Lampião, Antônio Conselheiro, aos Panteras Negras... Tratados como meros bandidos pelo status quo, as ações desses indivíduos tinham significado político (maior e mais profundo em determinados casos do que em outros, convém dizer). Se há "banditismo por pura maldade", também há o "banditismo por necessidade" e o "banditismo por uma questão de classe". Ah, e tudo isso sem falar na extraordinária guitarra tocada por esse monstro chamado Lúcio Maia.