"Malditos são todos aqueles que dizem verdades incômodas. E Lima Barreto incomodava como ainda incomoda. O escritor que silencia já nasceu morto. O escritor que não incomoda acaba refestelado em cadeiras acadêmicas, glorificadas por outro extinto imortal. O escritor, enfim, bem comportado, toma chá às quintas-feiras. Lima Barreto tomava cachaça todos os dias. Às vezes, era obrigado a parar: tirava férias no hospício"
Helcio Pereira da Silva -Lima Barreto: escritor maldito
Numa crônica publicada em 1915*, no extinto jornal Correio da noite, Lima Barreto reclamava das características do (então) novo prédio da Biblioteca Nacional, cheio de "suntuosidades desnecessárias". Segundo ele, "o Estado tem curiosas concepções, e esta, de abrigar uma casa de instrução, destinada aos pobres-diabos, em um palácio intimidador, é das mais curiosas". Na sua opinião, "a velha biblioteca era melhor, mais acessível, mais acolhedora, e não tinha a empáfia da atual".
A preocupação do escritor é que "os mal vestidos, os tristes, os que não tem livros caros" dificilmente fariam uso de um espaço assim. É de se notar a agudeza do olhar de Lima Barreto: uma biblioteca pública (e esse é o caso da Biblioteca Nacional) deveria ser receptiva a qualquer um, principalmente aquelas pessoas que não têm condições de comprar livros (sobretudo nas primeiras décadas do século passado, quando esta mercadoria quase nunca chegava à mão do pobre). A pompa do prédio - quando o mais importante deveria ser a sua funcionalidade - constrange o visitante que não dispõe de boas roupas (o escritor, com ironia, diz: "Ninguém compreende que se subam as escadas de Versalhes senão de calção, espadim e meias de seda"). Uma biblioteca, a despeito de suas especificidades, é "uma casa de instrução", ou seja, um espaço para o aprendizado e o incremento cultural. Entretanto, vivemos num país onde a casca rutilante vale mais do que a polpa - que não é tão vistosa, é verdade, mas fundamental para a nutrição e sustentação do organismo...
A preocupação do escritor é que "os mal vestidos, os tristes, os que não tem livros caros" dificilmente fariam uso de um espaço assim. É de se notar a agudeza do olhar de Lima Barreto: uma biblioteca pública (e esse é o caso da Biblioteca Nacional) deveria ser receptiva a qualquer um, principalmente aquelas pessoas que não têm condições de comprar livros (sobretudo nas primeiras décadas do século passado, quando esta mercadoria quase nunca chegava à mão do pobre). A pompa do prédio - quando o mais importante deveria ser a sua funcionalidade - constrange o visitante que não dispõe de boas roupas (o escritor, com ironia, diz: "Ninguém compreende que se subam as escadas de Versalhes senão de calção, espadim e meias de seda"). Uma biblioteca, a despeito de suas especificidades, é "uma casa de instrução", ou seja, um espaço para o aprendizado e o incremento cultural. Entretanto, vivemos num país onde a casca rutilante vale mais do que a polpa - que não é tão vistosa, é verdade, mas fundamental para a nutrição e sustentação do organismo...
Menciono essa crônica porque nela aparece uma breve definição (posteriormente bem conhecida) que Lima Barreto fez de si mesmo: "A minha alma é de bandido tímido". Os bandidos são geralmente ousados; não se
vexariam de entrar num palácio mesmo que seu vestuário fosse
considerado inapropriado para o local. O homem de letras, por seu turno, era
ressabiado, inibido. Bandidos também empregam a violência –
ocasional ou habitualmente. Mas e quando se trata de um “bandido
tímido”?
Antes de
responder a pergunta, tentemos compreender um pouco mais o autor.
. . . . .
. .
No volume
dedicado a Lima Barreto na (boa e velha) coleção Literatura
Comentada**, Antônio Arnoni Prado afirma que, no caso do autor de
Recordações do escrivão Isaías Caminha,
“[...] fica difícil simbolizar os limites entre o intelectual profundamente consciente das questões políticas e sociais de seu tempo e o estilista que insistia em não ter estilo algum; entre o repórter extremamente impiedoso e mordaz, que atacava de frente o lado grotesco dos homens, e o mulato oprimido que chorava às escondidas na solidão de seu quarto, enchendo as páginas do diário de angústia, vergonha e ressentimentos”.
A
sinceridade – ainda que filtrada pela construção literária –
era um valor para Lima Barreto e a despeito da injusta pecha de
desleixado (que o acompanhou durante anos, até mesmo após a morte),
encontra-se
“em seus textos a moderna atitude do narrador que se recusava a ver o mundo de cima, a salvo das ameaças. Na sua 'alma de bandido tímido', a obra não preexistia ao processo que a originava, assim como não dependia mais de um estado de ser especial e singular para gerá-la. Ela acontecia aqui e agora, banalizada no tempo e no espaço do leitor, no curso das pequenas coisas apanhadas na rua, no acaso que se organizava, depois, em testemunho”, ainda de acordo com Arnoni Prado.
“Reabilitado”
pela crítica literária a partir dos anos 1960, o escritor nunca
dissociou a literatura da política e atreveu-se “a falar em nome
do oprimido com a mesma ferocidade do opressor”. Mais que isso:
“soube ver na burguesia legiferante a força reacionária que, no
Brasil, impedia as reformas inadiáveis que os novos tempos exigiam.
Desmascarou também a sua aliança com os plutocratas e
latifundiários da aristocracia rural [...]”.
Basta observar a maneira de agir de nossos parlamentares no Congresso Nacional para ver como
ele ainda hoje tem razão, iniciado o século XXI.
Como,
porém, tentar mudar a dura realidade decorrente de nossos problemas
sociais? Denunciá-los através da escrita é um modo; tornar o
leitor da obra literária consciente da natureza destes, outro. Mas
seria isso suficiente? A considerar os grandes traços excludentes de
nossa estrutura social, a resposta é, obviamente, não.
Há outra
resposta faltando, relativa à pergunta deixada em aberto lá no
terceiro parágrafo. Por exigir um pouco mais de discussão, prometo-a para a próxima postagem.
_________________
* A crônica intitula-se A Biblioteca e foi posteriormente incluída no livro Marginália, lançado em 1953 (31 anos após a morte do autor). Como a obra de Lima Barreto encontra-se hoje em domínio público, o livro pode ser encontrado em <http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=1862> (Acesso em 15/04/16)
** PRADO, Antônio Arnoni. Uma literatura do povo para o povo. In: BARRETO, Lima. Lima Barreto. São Paulo: Abril, 1980. p. 100-104 (Coleção Literatura Comentada)
** PRADO, Antônio Arnoni. Uma literatura do povo para o povo. In: BARRETO, Lima. Lima Barreto. São Paulo: Abril, 1980. p. 100-104 (Coleção Literatura Comentada)
BG de Hoje
O Brasil, felizmente, tem uma boa tradição de canções cuja marca é seu conteúdo político. Pode-se dizer, sem dúvida, que é o caso de O ronco da cuíca, de JOÃO BOSCO e ALDIR BLANC. Composição primorosa, que entra diretamente na veia.