quarta-feira, 20 de abril de 2016

"Alma de bandido tímido" (I)



"Malditos são todos aqueles que dizem verdades incômodas. E Lima Barreto incomodava como ainda incomoda. O escritor que silencia já nasceu morto. O escritor que não incomoda acaba refestelado em cadeiras acadêmicas, glorificadas por outro extinto imortal. O escritor, enfim, bem comportado, toma chá às quintas-feiras. Lima Barreto tomava cachaça todos os dias. Às vezes, era obrigado a parar: tirava férias no hospício"


Helcio Pereira da Silva -Lima Barreto: escritor maldito




Numa crônica publicada em 1915*, no extinto jornal Correio da noite, Lima Barreto reclamava das características do (então) novo prédio da Biblioteca Nacional, cheio de "suntuosidades desnecessárias". Segundo ele, "o Estado tem curiosas concepções, e esta, de abrigar uma casa de instrução, destinada aos pobres-diabos, em um palácio intimidador, é das mais curiosas". Na sua opinião, "a velha biblioteca era melhor, mais acessível, mais acolhedora, e não tinha a empáfia da atual".

A preocupação do escritor é que "os mal vestidos, os tristes, os que não tem livros caros" dificilmente fariam uso de um espaço assim. É de se notar a agudeza do olhar de Lima Barreto: uma biblioteca pública (e esse é o caso da Biblioteca Nacional) deveria ser receptiva a qualquer um, principalmente aquelas pessoas que não têm condições de comprar livros (sobretudo nas primeiras décadas do século passado, quando esta mercadoria quase nunca chegava à mão do pobre). A pompa do prédio - quando o mais importante deveria ser a sua funcionalidade - constrange o visitante que não dispõe de boas roupas (o escritor, com ironia, diz: "Ninguém compreende que se subam as escadas de Versalhes senão de calção, espadim e meias de seda"). Uma biblioteca, a despeito de suas especificidades, é "uma casa de instrução", ou seja, um espaço para o aprendizado e o incremento cultural. Entretanto, vivemos num país onde a casca rutilante vale mais do que a polpa - que não é tão vistosa, é verdade, mas fundamental para a nutrição e sustentação do organismo...

Menciono essa crônica porque nela aparece uma breve definição (posteriormente bem conhecida) que Lima Barreto fez de si mesmo: "A minha alma é de bandido tímido". Os bandidos são geralmente ousados; não se vexariam de entrar num palácio mesmo que seu vestuário fosse considerado inapropriado para o local. O homem de letras, por seu turno, era ressabiado, inibido. Bandidos também empregam a violência – ocasional ou habitualmente. Mas e quando se trata de um “bandido tímido”?

Antes de responder a pergunta, tentemos compreender um pouco mais o autor.

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No volume dedicado a Lima Barreto na (boa e velha) coleção Literatura Comentada**, Antônio Arnoni Prado afirma que, no caso do autor de Recordações do escrivão Isaías Caminha,

[...] fica difícil simbolizar os limites entre o intelectual profundamente consciente das questões políticas e sociais de seu tempo e o estilista que insistia em não ter estilo algum; entre o repórter extremamente impiedoso e mordaz, que atacava de frente o lado grotesco dos homens, e o mulato oprimido que chorava às escondidas na solidão de seu quarto, enchendo as páginas do diário de angústia, vergonha e ressentimentos”.

A sinceridade – ainda que filtrada pela construção literária – era um valor para Lima Barreto e a despeito da injusta pecha de desleixado (que o acompanhou durante anos, até mesmo após a morte), encontra-se

“em seus textos a moderna atitude do narrador que se recusava a ver o mundo de cima, a salvo das ameaças. Na sua 'alma de bandido tímido', a obra não preexistia ao processo que a originava, assim como não dependia mais de um estado de ser especial e singular para gerá-la. Ela acontecia aqui e agora, banalizada no tempo e no espaço do leitor, no curso das pequenas coisas apanhadas na rua, no acaso que se organizava, depois, em testemunho”, ainda de acordo com Arnoni Prado.

“Reabilitado” pela crítica literária a partir dos anos 1960, o escritor nunca dissociou a literatura da política e atreveu-se “a falar em nome do oprimido com a mesma ferocidade do opressor”. Mais que isso: “soube ver na burguesia legiferante a força reacionária que, no Brasil, impedia as reformas inadiáveis que os novos tempos exigiam. Desmascarou também a sua aliança com os plutocratas e latifundiários da aristocracia rural [...]”.

Basta observar a maneira de agir de nossos parlamentares no Congresso Nacional para ver como ele ainda hoje tem razão, iniciado o século XXI.

Como, porém, tentar mudar a dura realidade decorrente de nossos problemas sociais? Denunciá-los através da escrita é um modo; tornar o leitor da obra literária consciente da natureza destes, outro. Mas seria isso suficiente? A considerar os grandes traços excludentes de nossa estrutura social, a resposta é, obviamente, não.

Há outra resposta faltando, relativa à pergunta deixada em aberto lá no terceiro parágrafo. Por exigir um pouco mais de discussão, prometo-a para a próxima postagem.
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* A crônica intitula-se A Biblioteca e foi posteriormente incluída no livro Marginália, lançado em 1953 (31 anos após a morte do autor). Como a obra de Lima Barreto encontra-se hoje em domínio público, o livro pode ser encontrado em <http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=1862> (Acesso em 15/04/16)

** PRADO, Antônio Arnoni. Uma literatura do povo para o povo. In: BARRETO, Lima. Lima Barreto. São Paulo: Abril, 1980. p. 100-104 (Coleção Literatura Comentada)

BG de Hoje

O Brasil, felizmente, tem uma boa tradição de canções cuja marca é seu conteúdo político. Pode-se dizer, sem dúvida, que é o caso de O ronco da cuíca, de JOÃO BOSCO e ALDIR BLANC. Composição primorosa, que entra diretamente na veia.