A certa altura do romance Recordações do escrivão Isaías Caminha, cuja elaboração se deu durante a primeira década do século passado, encontramos o personagem Plínio de Andrade. Vivendo modestamente como professor de História Natural em colégios do Rio de Janeiro, o jovem negro escrevia panfletos "em que a sua irritação lhe congestionava a frase indignada"*. Orgulhoso e inteligente, possivelmente anarquista e simpático ao socialismo, era odiado pelos donos dos grandes jornais da (então) capital do Brasil por causa das pequenas contrariedades que lhes causava em virtude de suas críticas. Acabaria morrendo durante uma revolta popular. Não sem antes nos apresentar sua visão da imprensa hegemônica de seu tempo:
"São grandes empresas, propriedade de venturosos donos, destinados a lhes dar o domínio sobre as massas, em cuja linguagem falam, e a cuja inferioridade mental vão ao encontro, conduzindo os governos, os caracteres para os seus desejos inferiores, para os seus atrozes lucros burgueses... Não é fácil a um indivíduo qualquer, pobre, cheio de grandes ideias, fundar um que os combata... Há necessidade de dinheiro; são precisos, portanto, capitalistas que determinem e imponham o que se deve fazer num jornal..."
Plínio de Andrade compara os donos de jornal a "piratas" e suas organizações detêm "um poder vago, sutil, impessoal, que só poucas inteligências podem colher-lhe a força". Não é difícil durante a leitura da obra notar que Plínio de Andrade tem muito em comum com o próprio Isaías Caminha**, que, por sua vez, é o disfarce adotado por Lima Barreto na condução da história.
No essencial capítulo VIII, das Recordações..., Isaías vai à redação de O Globo (nome fictício para O Correio da Manhã), o mais influente periódico do Rio de Janeiro, falar com o jornalista Gregoróvitch, de quem espera auxílio para obter um emprego (a situação era desesperadora e qualquer trabalho seria aceito). Enquanto aguarda, o personagem-narrador pinta, satiricamente, um quadro do jornalismo por lá praticado, usando e abusando da descrição caricatural. E conclui ao final do capítulo:
O livro foi lançado em 1909. Seu ataque à imprensa hegemônica brasileira, porém, permanece válido para o momento atual, sob vários aspectos.
Durante muito tempo, Recordações do escrivão Isaías Caminha foi menosprezado pela crítica literária, considerado grosseiro, desleixado, um mero roman à clef furioso e cheio de rancor. Curioso é que o próprio autor tinha consciência dos "defeitos" do texto. Em carta enviada a um amigo, ele reconhece se tratar de "um livro desigual, propositalmente mal feito, brutal por vezes, mas sincero sempre". Convém mencionar que em 1909 Lima Barreto tinha outro trabalho já terminado na gaveta (Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá, só lançado em 1919), mas preferiu publicar primeiro a história de Isaías Caminha porque queria "escandalizar e desagradar". Prossegue ele, na carta:
Essa menção a Hippolyte Taine me lembra a conferência O destino da Literatura, escrita 13 anos após as Recordações... (já discuti essa conferência aqui). Naquela ocasião, Lima Barreto, partindo das ideias do historiador e crítico literário francês, defendia que "a Beleza [...] é a manifestação, por meio dos elementos artísticos e literários, do caráter essencial de uma ideia mais completamente do que ela se acha expressa nos fatos reais".
E recorrendo também ao pensamento de outro crítico literário francês, Ferdinand Brunetière, considerava que
Para Lima Barreto, mais do que apuro formal, a Literatura deveria ter uma missão***. "Jamais conceberia a arte literária como forma de diletantismo. Nunca encarou a literatura como passatempo. Nunca faria 'arte pela arte'. Para ele, a literatura tinha função social, tinha de ser militante"****
Num dos estudos mais recentes que conheço sobre o autor de Recordações do escrivão Isaías Caminha - a tese de doutorado Letras militantes: história, política e literatura em Lima Barreto***** - , Denilson Botelho afirma que:
Ainda de acordo com o pesquisador, "sua obra é impregnada por esse objetivo de instrumentalizar, no plano das ideias e pela palavra escrita, um povo desde sempre excluído social e politicamente".
Portanto, o romance de estreia do escritor carioca não é apenas a expressão de seu ressentimento pessoal. O que ele deseja é sacudir, segundo suas próprias palavras, "a indiferença da nossa gente pelas cousas do espírito". Daí a "sinceridade da minha [dele] revolta que vem bem do Amor e não do Ódio, como podem supor".
E a escolha da imprensa hegemônica como um dos alvos de sua indignação nos parece certeira.
As maiores empresas de jornalismo/mídia brasileiras compõem um oligopólio que, há décadas, dita o rumo da comunicação de massa no país (clique aqui). O modo de atuar dessas organizações reflete diretamente as inclinações e interesses pessoais de seus donos, pois são, desde a sua fundação, controladas pelas mesmas famílias. Os funcionários - ou seja, os jornalistas - quase sempre apenas corroboram e ratificam as opiniões (e intenções) dos proprietários (patrões deles). Essa relação de subserviência e sabujice compromete a credibilidade dessas empresas desde o nascedouro.
Em Recordações do escrivão Isaías Caminha, numa das muitas aparições de Ricardo Loberant (diretor-proprietário de O Globo), ficamos sabendo que "aquele jornal, que era sua propriedade, recebia também a sua inspiração. Nenhum de seus redatores tinha uma personalidade suficientemente forte para resistir ao ascendente da sua". Na redação do jornal "era assim: escrevia-se, mediante ordem do diretor, hoje contra e amanhã a favor". Os outros periódicos de grande circulação não se diferenciavam: "guiados pelas mesmas leis, obedecendo quase a um único critério, todos eles se parecem; e, lido um, estão lidos todos".
Os próprios jornalistas desses veículos não dão mostras de se importar com a vassalagem prestada a seus patrões; ao contrário, julgavam-se importantes e indispensáveis para o aprimoramento da inteligência nacional: "o pensamento comum dos empregados em jornais é que eles constituem, formam o pensamento do nosso país, e não só formam, mas 'são a mais alta representação dele' ".
E pensar que a obra de Lima Barreto foi escrita no início do século passado! Em nossos dias, quando se percebe a tendenciosidade demonstrada pelo oligopólio midiático brasileiro no noticiário político, sua baixa qualidade investigativa ou a arrogância vaidosa de seus colunistas e comentaristas, vemos que as palavras do escritor carioca condizem perfeitamente com o momento atual.
Na próxima postagem, prossigo falando de Lima Barreto.
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"Naquela hora, presenciando tudo aquilo, eu senti que tinha travado conhecimento com um engenhoso aparelho de aparições e eclipses, espécie complicada de tablado de mágica e espelho de prestidigitador, provocando ilusões, fantasmagorias, ressurgimentos, glorificações e apoteoses com pedacinhos de chumbo, uma máquina Marinoni [impressora industrial rotativa que marcou época] e a estupidez das multidões.
Era a Imprensa, a Onipotente Imprensa, o quarto poder fora da Constituição! [aqui Barreto remete a Balzac]"
O livro foi lançado em 1909. Seu ataque à imprensa hegemônica brasileira, porém, permanece válido para o momento atual, sob vários aspectos.
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Durante muito tempo, Recordações do escrivão Isaías Caminha foi menosprezado pela crítica literária, considerado grosseiro, desleixado, um mero roman à clef furioso e cheio de rancor. Curioso é que o próprio autor tinha consciência dos "defeitos" do texto. Em carta enviada a um amigo, ele reconhece se tratar de "um livro desigual, propositalmente mal feito, brutal por vezes, mas sincero sempre". Convém mencionar que em 1909 Lima Barreto tinha outro trabalho já terminado na gaveta (Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá, só lançado em 1919), mas preferiu publicar primeiro a história de Isaías Caminha porque queria "escandalizar e desagradar". Prossegue ele, na carta:
"Espero que esse primeiro movimento, muito natural, seja seguido de um outro de reflexão com que vocês considerem bem que não foi só o escândalo, o egotismo e a charge que pus ali [...] Hás de ver que a tela que manchei tenciona dizer aquilo que os simples fatos não dizem, segundo o nosso Taine, de modo a esclarecê-los melhor, dar-lhes importância, em virtude do poder da forma literária, agitá-los, porque são importantes para o nosso destino".
Essa menção a Hippolyte Taine me lembra a conferência O destino da Literatura, escrita 13 anos após as Recordações... (já discuti essa conferência aqui). Naquela ocasião, Lima Barreto, partindo das ideias do historiador e crítico literário francês, defendia que "a Beleza [...] é a manifestação, por meio dos elementos artísticos e literários, do caráter essencial de uma ideia mais completamente do que ela se acha expressa nos fatos reais".
E recorrendo também ao pensamento de outro crítico literário francês, Ferdinand Brunetière, considerava que
"a importância da obra literária que se quer bela sem desprezar os atributos externos da perfeição de forma, de estilo, de correção gramatical, de ritmo vocabular, de jogo e equilíbrio das partes em vista de um fim, de obter unidade na variedade; uma tal importância, dizia eu, deve residir na exteriorização de um certo e determinado pensamento de interesse humano, que fale do problema angustioso do nosso destino em face do Infinito e do Mistério que nos cerca, e aluda às questões de nossa conduta na vida".
Para Lima Barreto, mais do que apuro formal, a Literatura deveria ter uma missão***. "Jamais conceberia a arte literária como forma de diletantismo. Nunca encarou a literatura como passatempo. Nunca faria 'arte pela arte'. Para ele, a literatura tinha função social, tinha de ser militante"****
Num dos estudos mais recentes que conheço sobre o autor de Recordações do escrivão Isaías Caminha - a tese de doutorado Letras militantes: história, política e literatura em Lima Barreto***** - , Denilson Botelho afirma que:
"A todo instante, a pena com que [Lima Barreto] escreve seus romances, contos, crônicas, artigos, cartas e diários, revela uma crença inesgotável na função social da literatura. Nessas variadas modalidades de sua escrita está presente a concepção de literatura como arte engajada e militante. Seu anarquismo, socialismo, provocações e implicâncias pessoais só podem ser compreendidos enquanto elementos de sua concepção de literatura. Para cumprir a sua missão literária, Lima Barreto compra brigas, faz provocações, coleciona implicâncias, flerta com o anarquismo e propõe o socialismo, mas tudo porque esta é a sua vocação: uma literatura destinada a contribuir para a compreensão dos acontecimentos do presente e, por que não, do passado, a fim de ajudar o leitor a construir uma sociedade mais justa e igualitária".
Ainda de acordo com o pesquisador, "sua obra é impregnada por esse objetivo de instrumentalizar, no plano das ideias e pela palavra escrita, um povo desde sempre excluído social e politicamente".
Portanto, o romance de estreia do escritor carioca não é apenas a expressão de seu ressentimento pessoal. O que ele deseja é sacudir, segundo suas próprias palavras, "a indiferença da nossa gente pelas cousas do espírito". Daí a "sinceridade da minha [dele] revolta que vem bem do Amor e não do Ódio, como podem supor".
E a escolha da imprensa hegemônica como um dos alvos de sua indignação nos parece certeira.
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As maiores empresas de jornalismo/mídia brasileiras compõem um oligopólio que, há décadas, dita o rumo da comunicação de massa no país (clique aqui). O modo de atuar dessas organizações reflete diretamente as inclinações e interesses pessoais de seus donos, pois são, desde a sua fundação, controladas pelas mesmas famílias. Os funcionários - ou seja, os jornalistas - quase sempre apenas corroboram e ratificam as opiniões (e intenções) dos proprietários (patrões deles). Essa relação de subserviência e sabujice compromete a credibilidade dessas empresas desde o nascedouro.
Em Recordações do escrivão Isaías Caminha, numa das muitas aparições de Ricardo Loberant (diretor-proprietário de O Globo), ficamos sabendo que "aquele jornal, que era sua propriedade, recebia também a sua inspiração. Nenhum de seus redatores tinha uma personalidade suficientemente forte para resistir ao ascendente da sua". Na redação do jornal "era assim: escrevia-se, mediante ordem do diretor, hoje contra e amanhã a favor". Os outros periódicos de grande circulação não se diferenciavam: "guiados pelas mesmas leis, obedecendo quase a um único critério, todos eles se parecem; e, lido um, estão lidos todos".
Os próprios jornalistas desses veículos não dão mostras de se importar com a vassalagem prestada a seus patrões; ao contrário, julgavam-se importantes e indispensáveis para o aprimoramento da inteligência nacional: "o pensamento comum dos empregados em jornais é que eles constituem, formam o pensamento do nosso país, e não só formam, mas 'são a mais alta representação dele' ".
E pensar que a obra de Lima Barreto foi escrita no início do século passado! Em nossos dias, quando se percebe a tendenciosidade demonstrada pelo oligopólio midiático brasileiro no noticiário político, sua baixa qualidade investigativa ou a arrogância vaidosa de seus colunistas e comentaristas, vemos que as palavras do escritor carioca condizem perfeitamente com o momento atual.
Na próxima postagem, prossigo falando de Lima Barreto.
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* BARRETO, Lima. Recordações do escrivão Isaías Caminha. São Paulo: Ática, 1984 (Série Bom Livro)
** Segundo Francisco de Assis Barbosa, autor da única biografia disponível de Lima Barreto, Plínio de Andrade representa Lima Barreto, da mesma maneira que, no romance, Veiga Filho representa o escritor Coelho Neto e Raul Gusmão, João do Rio.
*** Expressão consagrada para se referir à obra de Lima Barreto desde o fundamental estudo de Nicolau Sevcenko, Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República.
**** MAGNONI, Maria Salete; BLAITT, Alexandre. Lima Barreto. In: SANTOS, Ynaê Lopes dos (et al). Rebeldes Brasileiros: homens e mulheres que desafiaram o poder. São Paulo: Casa Amarela, 2000. v. 1. p. 354-367
***** BOTELHO, Denilson. Letras militantes: história, política e literatura em Lima Barreto. 2001. Tese (Doutorado em História) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2001. Disponível em <http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=vtls000232427 >. Acesso em: 04/04/2016
BG de Hoje
Adorei a concepção e direção do DVD ao vivo da cantora/compositora CÉU, lançado em 2014. Clima de bailão de periferia (ou das antigas rádios AM) e um repertório de primeira, incluindo canções feitas por outros artistas, como Mil e uma noites de amor, de Pepeu Gomes, que ficou ótima na voz dela.