terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

"A visão deles"

Vou deixar para falar do Macunaíma no fim da semana. É que ontem, numa conversa, ouvi declaração bastante descabida e de cunho racista, mas, da parte de quem disse, não percebida como tal ao proferi-la, o que achei pior ainda.

Éramos três batendo papo, antes de entrarmos no auditório em que seria realizado o evento para o qual fomos convidados. Uma das interlocutoras - estava acompanhado de duas ex-colegas de trabalho - relatava um caso de discriminação ocorrido com sua filha, que foi muito mal atendida dentro de um estabelecimento comercial aqui de Belo Horizonte. Foi então que a outra soltou o dejeto verbal: "Mas lá não era lugar pra ela!". Ficamos perplexos. Desconcertada, tentou "remediar": "Quem é pobre e da nossa cor sabe que vai ser mal tratado nesses lugares. Não devia ter ido lá". Lembrei, então, de um poema do Cuti *:

QUEBRANTO

às vezes sou o policial que me suspeito
me peço documentos
e mesmo de posse deles
me prendo 
e me dou porrada

às vezes sou o porteiro
não me deixando entrar em mim mesmo
a não ser
pela porta de serviço

às vezes sou o meu próprio delito
o corpo de jurados
a punição que vem com o veredicto

às vezes sou o amor que me viro o rosto
o quebranto
o encosto
a solidão primitiva
que me envolvo com o vazio

às vezes as migalhas do que sonhei e não comi
outras o bem-te-vi com os olhos vidrados
trinando tristezas

um dia fui abolição que me lancei de supetão no 
                                                                    espanto
depois um imperador deposto
a república de conchavos no coração
e em seguida uma constituição 
que me promulgo a cada instante

também a violência dum impulso 
que me ponho do avesso 
com acessos de cal e gesso
chego a ser

às vezes faço questão de não me ver
e entupido com a visão deles
sinto-me a miséria concebida como um eterno 
                                                                    começo

fecho-me o cerco
sendo o gesto que me nego
a pinga que me bebo e me embebedo
o dedo que me aponto
e denuncio
o ponto que me entrego.

às vezes!...

Infelizmente, apesar de algumas mudanças positivas e fundamentais (obtidas graças à resistência e à ação organizada de muita gente, diga-se de passagem) no modo como a questão étnico-racial passou a ser compreendida no país, várias pessoas afrodescendentes "às vezes fazem questão de não se ver" e continuam "entupidas com a visão deles", ou seja, com a visão de parcela da população branca, historicamente detentora de quase todo o poder econômico e político e cercada por um número considerável de privilégios. De acordo com esse olhar, há lugares determinados para brancos e negros dentro da sociedade, contrariando o ideal democrático.

Mais triste ainda é saber que vai levar tempo, bastante tempo, para conseguir alterar essa forma absurda de nos olharmos.

Na sexta-feira, sem falta, escrevo sobre o Macunaíma.

* CUTI. Quebranto. In: ____. Negroesia: antologia poética. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2007. p. 53-54

BG de Hoje

No último sábado assisti a um programa dedicado à memória da cantora CLARA NUNES, esse furacão da música brasileira (e hoje em dia alguns se contentam com Ivete Sangalo; é dose...). Meus irmãos e eu, todos gostamos muito. Sempre me lembra momentos felizes, passados em família. Coisa da antiga, joia de seu repertório, foi composta por Wilson Moreira e pelo genial NEI LOPES.