sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Moralismo econômico, Macunaíma, "ficar à toa" e outros assuntos (II)



Em 1996, antes de abandonar o curso de Letras (UFMG), pude, felizmente, ser aluno do ótimo professor Murilo Marcondes de Moura. Ele nos recomendou, entre outras, a leitura de um dos ensaios de crítica literária que mais me impressionou até hoje: o célebre Dialética da malandragem, de Antonio Candido*.

Como se sabe, esse estudo analisava as Memórias de um sargento de milícias, romance escrito por Manuel Antonio de Almeida e publicado pela primeira vez em 1854/1855. Antonio Candido rejeita as  classificações de romance picaresco e romance documentário, adotadas por outros críticos, preferindo chamá-lo de romance malandro. Da mesma forma que Walnice Nogueira Galvão, o ensaísta considera que o personagem Leonardo (filho) carrega consigo as cacacterísticas do malandro, forma estereotipada presente em outras narrativas de nossa literatura. O malandro, inclusive, "seria elevado à categoria de símbolo por Mário de Andrade em Macunaíma", escreve Candido (Walnice Nogueira Galvão diria quase a mesma coisa, ao ver em Leonardo "o ancestral de Macunaíma").

Numa consulta ao Houaiss** observo que o verbete malandro ocupa considerável espaço, com muitos sinônimos. Das seis acepções registradas, destacarei três, mais adequadas ao nosso assunto (embora uma quarta - "que ou aquele que é sagaz, arguto" - não deixa de ser  também aplicável). Vamos, pois, aos significados de malandro:

"1 que ou aquele que não trabalha, que emprega recursos engenhosos para sobreviver; vadio. que ou aquele que leva a vida em diversões, prazeres. 3 que ou aquele que tem preguiça; mandrião, indolente"

O moralismo econômico contra o qual me posiciono (v. postagem anterior), ao direcionar sua artilharia para o nosso (necessário) direito de escapar, sempre que possível, das amarras do "produzir", muitas vezes olha para seus opositores como se estes não passassem de malandros pertinazes, inimigos do trabalho e da boa ordem social.

Voltemos, contudo, à Dialética da malandragem. NOTA: Mais adiante espero dedicar uma ou mais postagens, de forma exclusiva, para observações  referentes a esse texto excepcional

Antonio Candido afirma que nas Memórias de um sargento de milícias prevalece um "mundo sem culpa", um universo ficcional em que "as pessoas fazem coisas que poderiam ser qualificadas como reprováveis, mas fazem também outras dignas de louvor, que as compensam. E como todos têm defeitos, ninguém merece censura". Na visão do crítico literário, esse mundo tem como lastro a vida social brasileira, acrescentando de forma brilhante (num excerto que não me canso de citar):

"Um dos maiores esforços das sociedades, através da sua organização e das ideologias que as justificam, é estabelecer a existência objetiva e o valor real de pares antitéticos, entre os quais é preciso escolher, e que significam lícito ou ilícito, verdadeiro ou falso, moral ou imoral, justo ou injusto, esquerda ou direita política e assim por diante. Quanto mais rígida a sociedade, mais definido cada termo e mais apertada a opção. Por isso desenvolvem-se paralelamente as acomodações de tipo casuístico, que fazem da hipocrisia um pilar da civilização. E uma das grandes funções da literatura satírica, do realismo desmistificador e da análise psicológica é o fato de mostrarem, cada um a seu modo, que os referidos pares são reversíveis, não estanques, e que fora da racionalização ideológica as antinomias convivem num curioso lusco-fusco".

E o que isso tem a ver com o Macunaíma, assunto fundamental desta série de postagens, mas ainda não abordado diretamente? Procurarei responder à questão na próxima semana.

* CANDIDO, Antonio. Dialética da malandragem. In: ______________. O discurso e a cidade. 3 ed. São Paulo: Duas cidades; Rio de Janeiro: Ouro sobre o Azul, 2004, p. 17-46. OBS. Originalmente, esse texto foi publicado na Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, da USP e foi nessa edição que o lemos em 1996. Mas, atualmente, só disponho da publicação acima mencionada.

** MALANDRO. In: HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. p. 1817

BG de Hoje

Em Have a cigar, a acachapante guitarra de David Gilmour flui solta pela canção, esbanjando técnica e vigor. Um pouco parecido com o que acontece em Young Lust (esta gravada no The Wall). Enfim, tanto num caso como no noutro, PINK FLOYD em grande forma.