Há um belíssimo poema de Fernando Pessoa/Álvaro de Campos* cujo tema (um deles) remete àquela sensação que, acredito, todas as pessoas experimentam, experimentaram ou vão experimentar ao longo da vida: o arrependimento por ter agido (ou deixado de agir) de tal ou qual maneira. Eis:
“Na
noite terrível, substância natural de todas as noites,
Na
noite de insónia, substância natural de todas as minhas noites,
Relembro,
velando em modorra incómoda,
Relembro
o que fiz e o que podia ter feito na vida.
Relembro,
e uma angústia
Espalha-se
por mim todo como um frio do corpo ou um medo.
O
irreparável do meu passado – esse é que é o cadáver.
Todos
os outros cadáveres pode ser que sejam ilusão.
Todos
os mortos pode ser que sejam vivos noutra parte.
Todos
os meus próprios momentos passados pode ser que existam algures.
Na
ilusão do espaço e do tempo,
Na
falsidade do decorrer.
Mas
o que eu não fui, o que eu não fiz, o que nem sequer sonhei;
O
que só agora vejo que deveria ter feito,
O
que só agora claramente vejo que deveria ter sido -
Isso
é que é morto para além de todos os Deuses,
Isso
– e foi afinal o melhor de mim – é que nem os Deuses fazem
viver...
Se
em certa altura
Tivesse
voltado para a esquerda em vez de para a direita;
Se
em certo momento
Tivesse
dito sim em vez de não, ou não em vez de sim;
Se
em certa conversa
Tivesse
tido as frases que só agora, no meio-sono elaboro -
Se
tudo isso tivesse sido assim,
Seria
outro hoje, e talvez o universo inteiro
Seria
insensìvelmente levado a ser outro também.
Mas
não virei para o lado irreparàvelmente perdido,
Não
virei nem pensei em virar, e só agora o percebo;
Mas
não disse não ou não disse sim, e só agora vejo o que não disse;
Mas
as frases que faltou dizer nesse momento surgem-me todas,
Claras,
inevitáveis, naturais,
A
conversa fechada concludentemente,
A
matéria toda resolvida...
Mas
só agora o que nunca foi, nem será para trás, me dói.
O
que falhei deveras não tem esperança nenhuma
Em
sistema metafísico nenhum.
Pode
ser que para outro mundo eu possa levar o que sonhei,
Mas
poderei eu levar para outro mundo o que me esqueci de sonhar?
Esses
sim, os sonhos por haver, é que são o cadáver.
Enterro-o
no meu coração para sempre, para todo o tempo, para todas as
conversas,
Nesta
noite em que não durmo, e o sossego me cerca
Como
uma verdade de que não partilho,
E
lá fora o luar, como a esperança que não tenho, é invisível p'ra
mim”.
O melhor de mim foi o que deveria ter feito,
não o que fiz efetivamente; é duro viver com essa sensação.
De maneira amarga, noutro poema (Canção à inglesa), o poeta
escreve: “Falhei no que fui, falhei no que
quis, falhei no que soube./ Não tenho já alma que a luz me desperte
ou a treva me roube,/ Não sou senão náusea, não sou senão cisma,
não sou senão ânsia,/ Sinto em ânsia que fui a uma grande
distância/ E vou, só porque o meu ser é imundo e profundo,/ Colado
como um escarro a uma das rodas do mundo”.
Como é terrível – e isso é positivo –
ler Fernando Pessoa/Álvaro de Campos!
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* PESSOA, Fernando. Poemas de Álvaro de Campos: obra poética IV. Porto Alegre: L&PM, 2006
* PESSOA, Fernando. Poemas de Álvaro de Campos: obra poética IV. Porto Alegre: L&PM, 2006
BG
de Hoje
Algumas
das melhores canções dos DOORS são variações em torno de
um blues, que serve como linha melódica. É o caso de Riders
on the storm. O teclado de Ray Manzarek e os efeitos sonoros,
simulando uma tempestade, tornam a gravação inesquecível.