O livro Fé em Deus e pé na tábua*, que foi o assunto desta série de postagens, passa ao largo de uma investigação sobre os deslocamentos viários urbanos, em suas dimensões econômicas e numéricas. Segundo o autor (o antropólogo Roberto DaMatta), "o presente estudo tem como traço distintivo o fato de que deseja expor uma visão geral da sociabilidade brasileira".
Somos (nós, brasileiros), de acordo do DaMatta, marcados por uma "mentalidade hierárquica, que induz a graduar pessoas, objetos e espaços verticalmente ordenados - entre superiores e inferiores". Essa mentalidade, consequência de um aristocratismo ainda presente em nosso cotidiano, choca-se com o conceito de igualdade, fundamental para a vida republicana moderna, inclusive no trânsito. A pesquisa - da qual o livro é resultado -
"revela que tais comportamentos [agressivos e enlouquecedores] resultam menos de questões de obras e melhorias materiais do ambiente do trânsito que do fato de que todos, no fundo de suas consciências, se sentem especiais, superiores e com direitos a regalias e prioridades. A imprudência, o descaso e a mais chocante e irreconhecível incivilidade brasileira no trânsito decorrem da ausência de uma visão igualitária de mundo, justamente num espaço inevitavelmente marcado e desenhado pela igualdade mais absoluta entre seus usuários, como ocorre com as ruas e avenidas, as estradas e viadutos".
Para o antropólogo, "o fato concreto é que o cidadão brasileiro, seja pedestre, ciclista, motociclista, motorista ou até mesmo carroceiro, tem uma dificuldade atávica no que diz respeito a obedecer à lei" e acrescenta, justificando o título de seu livro:
"A pesquisa aponta para um dado que tem passado despercebido nos inquéritos sobre trânsito no país e no resto do mundo. Trata-se de um fato óbvio, exemplificado pelo corriqueiro pé na tábua - aquela parte do adágio nacional que modela o ato de conduzir um veículo expresso no fé em Deus. Realmente, se fé em Deus se aplica a todos os atores do espaço público, pois não há quem dela não dependa, o pé na tábua diz respeito somente a quem possui ou pilota um veículo motorizado. Mas o adágio, como as peças de propaganda, nos faz perder de vista sua profunda realidade. Que realidade é essa? Ora, é a que nos revela o óbvio ululante e escondido: o motorista (confiante no pé na tábua) que desrespeita a lei, e eventualmente causa o acidente, nada mais é do que o pedestre que jamais foi treinado para obedecer aos regulamentos de sua sociedade. Quem tem fé em Deus é aquele mesmo sujeito que, sem dó ou piedade, enfia o pé na tábua. Para tanto, basta - e essa é uma revelação importante do inquérito - com que pedestre e motorista troquem de lugar".
Falta ao cidadão brasileiro "uma visão democrática" que enfatize o respeito e a obediência à lei tendo em vista os outros cidadãos com os quais o espaço público - no caso, o trânsito - é partilhado. Só que aquele que procura seguir os regulamentos "é sempre o boboca, o palhaço, o paspalho ou o inferior. No Brasil, quem cede igualitariamente a vez está errado e é sempre admoestado por buzinadas e xingamentos de todos os motoristas".
Como tentar resolver, então, os problemas relacionados ao trânsito?
Roberto DaMatta vê alguns desafios. Entre estes:
1) "[...]para o gerenciador público é a construção de uma relação positiva, efetiva e legítima entre o que os outros motoristas fazem no trânsito, o que eles dizem que fazem e o que gostariam que o Estado fizesse".
2) "Qualquer programa de atuação nesta área [...] terá que primeiramente reverter e extinguir a ideia de impunidade como hábito, solução e tradição".
3) Os brasileiros têm dificuldade para "internalizar limites impostos por normas impessoais".
Qualquer solução para os problemas da mobilidade urbana, acredita o autor, passa pelo reconhecimento do trânsito como um sistema que deve ser visto como um todo (um fato social total, diria Marcel Mauss) e depende de formas de conscientizar a população para "suas responsabilidades perante os outros no cenário de uma sistema complexo e dinâmico que reúne pessoas, animais e máquinas, bem como sinais e demarcações impessoais ", além de desenvolver " políticas públicas que sejam capazes de extinguir uma enraizada e costumeira crença na impunidade".
Como se vê, esforço nada simples de ser empreendido.
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* DaMATTA, Roberto. Fé em Deus e pé na tábua ou Como e por que o trânsito enlouquece no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 2010 [como colaboração de João Gualberto M. Vasconcellos e Ricardo Pandolfi]
BG de Hoje
Ouvi um dia desses na MTV e fiquei chapado na hora: ALABAMA SHAKES, Hold on. O primeiro (e, até agora, único) disco da banda - Boys & Girls - ainda não chegou na minha loja preferida aqui em BH (a Discoplay ). Mas já vou encomendar. Sonzaço!