terça-feira, 31 de julho de 2012

Ornamentação, terror e uma dose de "bobagem" em Marte

[Atualizada em 06/05/2022]

 
Ray Bradbury, no terreno da ficção científica, posiciona-se em lugar bem diferente daquele ocupado por Isaac Asimov (sobre quem escrevi nas duas postagens anteriores).

A diferença está sobretudo na maneira de narrar. Observemos o primeiro parágrafo de Terceira expedição, uma d 'As crônicas marcianas *:

"A nave chegou do espaço. Veio das estrelas e das velocidades incríveis, dos movimentos brilhantes e dos vazios do espaço. Era uma nave nova;  tinha fogo nas entranhas e homens em suas células de metal. E se movia com um silêncio limpo, fogoso e quente. Era tripulada por dezessete homens, incluindo um capitão. A multidão no campo de lançamento de Ohio tinha gritado e agitado os braços, e o foguete soltara enormes flores da cor do fogo, partindo às pressas em direção ao espaço, na terceira viagem à Marte!"

E este outro trecho, em Os colonizadores, no mesmo livro:

"Os homens da Terra chegaram de Marte.
Foram para lá porque tinham medo ou não, porque eram felizes ou não. Porque se sentiam como Peregrinos ou não. Cada um tinha seu motivo. Estavam deixando para trás más esposas, empregos ruins ou cidades ruins; foram até lá para encontrar algo, abandonar algo, conseguir algo, desencavar algo, enterrar algo ou deixar de lado algo. Chegavam com sonhos pequenos ou sonhos grandes, ou com sonho nenhum".

Bradbury (que faleceu este ano, no mês de junho) procura a frase mais expressiva, sem, contudo, dispensar o ornato. Essa preocupação ornamental não esvazia a prosa do escritor norte-americano: ao contrário, confere a ela uma toque de beleza, beirando às vezes, porém, a pieguice e o kitsch (é oportuno notar que o autor era leitor de - e também escrevia para - revistas pulp fiction).

Há também o recurso ao terror, especialmente bem trabalhado em A terceira expedição e Usher II. Essa última narrativa, a propósito, é uma macabra homenagem à Literatura Fantástica. Há também nesse conto, alguns elementos que serão ampliados e desenvolvidos em Fahrenheit 451, romance magistral de Bradbury publicado em 1953.

A dose de "bobagem" fica por conta do lado "científico" d'As crônicas marcianas. Diferentemente de Isaac Asimov, que era bioquímico, com bom conhecimento das ciências naturais, Ray Bradbury foi "apenas" um talentoso autodidata e poeta. Por isso, muitas vezes o leitor precisa dar um desconto ainda maior quando o escritor escorrega ao tratar da atmosfera de Marte ou ao conceber o modo como as viagens espaciais seriam realizadas, por exemplo. E ter em mente, muitas vezes, a intenção humorística do escritor em determinados contos (As cidades silenciosas, é claramente um destes) e notar o traço de entretenimento que caracteriza a maioria dos textos da coletânea. NOTA: É curioso o que ocorre na ficção científica: trata-se de ficção, logo, invenção, fantasia. Mas para um bom número de leitores (meu caso), a fantasia precisa de alguma proximidade com o discurso científico, logo, pretensamente mais próximo do real, senão o texto  sci-fi  não "funciona" convenientemente.

Transformadas num livro em 1950 (coincidentemente, o mesmo ano de publicação de Eu, robô, de Asimov),  As crônicas marcianas  surgiram antes da chegada do ser humano à Lua e elaboradas em meio ao pavor decorrente de uma possível guerra nuclear que pudesse devastar nosso planeta. Esse medo está presente nalgumas narrativas, assim como a crítica preciosa ao comportamento destrutivo da humanidade, como se lê em Os gafanhotos ("Os foguetes chegavam como gafanhotos, em enxames, formando nuvens de fumaça rosada. E dos foguetes corriam homens com marretas nas mãos, para modelar aquele mundo estranho até um formato conhecido, eliminando toda a estranheza, a boca cheia de pregos, parecidos a animais carnívoros com dentes de aço  [...]).

Apesar da postura místico-religiosa adotada em ... E a lua continua brilhando - que não me agrada - tenho que reconhecer: trata-se de um clássico da ficção científica.  
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* BRADBURY, Ray.  As crônicas marcianas.  São Paulo: Globo, 2005 [Tradução de Ana Ban]

BG de Hoje

98% da música pop atual originou-se da música produzida por negros dezenas de anos atrás. Jazz, Soul, Blues, Reggae, Dance, Funk (além do Rap, obviamente). E também o Rock, ora essa! Mas, ao longo do tempo, o gênero foi sendo dominado pelos brancos, principalmente nas suas vertentes mais pesadas, como é o caso do heavy metal. Entre as poucas bandas dentro deste segmento formadas exclusivamente por negros está o competentíssimo LIVING COLOUR. No vídeo, uma canção (do primeiro disco do grupo, em 1988) cuja letra diz muito sobre este blogueiro: Middle Man.