terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Folha de árvore, folha de livro


Umberto Eco, há alguns anos, escreveu* que

"Até agora, os livros representam o modo mais barato, flexível e prático de transportar informação a um custo muito baixo. A comunicação por computador viaja à nossa frente; os livros viajam conosco e na nossa velocidade. Se somos náufragos numa ilha deserta, onde não temos a opção de ligar um computador na tomada, um livro ainda é um instrumento de muita valia [...] Livros pertencem a essa classe de instrumentos, que, uma vez inventados, não foram aprimorados, porque já estão bons o bastante, como o martelo, a faca, a colher ou a tesoura."

Apesar disso, a permanência do livro, como registro físico mais típico e simbólico do conhecimento humano acumulado, tem sido colocada em dúvida frequentemente, seja nas declarações de indivíduos com algum saber especializado, seja nas opiniões de senso comum.

Ao livro é garantida alguma perenidade? Penso que sim. Como observaram as professoras Ivete Walty e Maria Zilda Cury**:

"O livro manuseado por nós é, pois, um espaço que convida à descoberta, ao desafio da produção do conhecimento. Enquanto registramos, de inúmeras maneiras, as ideias que aí circulam, ele também recebe nossas marcas impostas pelo manuseio, traços, muitas vezes, de nossa relação afetiva: folhas gastas por repetidas leituras, anotações feitas nas margens revelando nossa forma de ler."

Sobre esse objeto tão característico de nossa cultura João Cabral de Melo Neto escreveu um de seus poemas mais bonitos***: Para a feira do livro, texto que integra o essencial A educação pela pedra (1966).

Em duas estrofes, compostas, cada uma, por doze versos, Melo Neto conjuga a dimensão material com as características mais subjetivas do livro, que acabam por torná-lo tão precioso àqueles que o valorizam.

No primeiro grupo de versos, o poeta apresenta-nos, arriscaria dizer, uma memória orgânica, natural do impresso:

"Folheada, a folha de um livro retoma
o lânguido e vegetal da folha folha,
e um livro se folheia ou se desfolha
como sob o vento a árvore que o doa;"

Mesmo a palavra (no caso, a linguagem) é naturalizada:

"folheada, a folha de um livro repete
fricativas e labiais de ventos antigos,
e nada finge vento em folha de árvore

melhor que vento em folha de livro."

Na segunda parte do poema, emocionante, o objeto é humanizado: modesto, paciente, severo são qualificativos que lhe são atribuídos. E Melo Neto ainda nos relembra que, mesmo com toda a sua força simbólica, como conjunto de signos a ser interpretado, o livro obriga o leitor a comportar-se ativamente diante dele; o livro "exige que lhe extraiam, o interroguem;/ e jamais exala: fechado, mesmo aberto."
 
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* ECO, Umberto. Muito além da Internet. Folha de S. Paulo, São Paulo, 14 dez. 2003. Caderno Mais! p. 4-11

** WALTY, Ivete L. C. ; CURY, Maria Zilda F. Livro: objeto de desejo. Presença pedagógica, Belo Horizonte, v.2, n.12, p. 15-25, nov./dez. 1996

*** MELO NETO, João Cabral. A educação pela pedra e depois. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997