sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Sorte


Se por algum motivo eu passasse a acreditar no sobrenatural, preocupar-me-ia, talvez, apenas com a existência ou não da sorte. Como as pessoas, de modo geral, desconhecem o que ocorre nos corredores das sedes dos governos, quais são os acordos secretos firmados de forma suspeita (para dizer o mínimo); como os indivíduos, precariamente protegidos e assistidos, ficam à mercê do que determinam os conglomerados empresariais e financeiros; como os cidadãos não detêm nenhum poder de influência na esfera pública, a não ser que estejam localizados no estrato mais alto da pirâmide social; como tudo isso nos pesa, a ocorrência da sorte, no meio desse desalento, torna-se uma conjetura, uma forma de lenitivo para o nosso mal-estar.

Afirmo que a sorte é um pensamento ilusório; contraditoriamente, contudo, aposto em loterias mantidas pela Caixa Econômica Federal, e de certa maneira, cultivo a ilusão. Essa crença absurda na sorte provoca situações extraordinárias.

E a Literatura não deixou de retratá-las.

Li, há algum tempo, um conto de D. H. Lawrence, chamado O campeão do cavalinho de balanço*. A narrativa conta a história do menino Paul que, obcecado por alcançar a sorte, ausente em sua família, segundo a mãe, lança mão de um expediente inacreditável.

NOTA: SE VOCÊ NÃO LEU ESTE CONTO, RECOMENDO NÃO PROSSEGUIR NESTA POSTAGEM, POIS REVELAREI PARTES SIGNIFICATIVAS DO ENREDO.
Na casa em que Paul vivia ouvia-se em todos os cantos um sussurro dizendo que " 'É preciso mais dinheiro!'. Entretanto, ninguém jamais dissera aquilo em voz alta. O sussurro estava por toda parte, e, portanto, ninguém o dizia. Assim como ninguém diz ' Estamos respirando ', apesar do fato de que a respiração está indo e vindo o tempo todo", escreve D. H. Lawrence.

Como a família de Paul precisava ostentar uma riqueza que não possuía, o menino resolve descobrir a causa de sua situação econômica:

"- Sorte é dinheiro, mamãe? - perguntou, com certa timidez.- Não, Paul. Não é bem isso. Sorte é o que nos faz ter dinheiro."

O garoto vai em busca da sorte, chegando a afirmar que Deus lhe disse que ele a tinha. Montado num cavalo de brinquedo, Paul corre em páreos imaginários, dos quais retorna com palpites certeiros para os vencedores das corridas hípicas de Londres.

Reúne uma pequena fortuna, mas os palpites deixam de vir. Dominado por um impulso febril, Paul tenta desesperadamente descobrir qual será o animal ganhador no Derby. A mãe, inquieta com o estado do filho, vai até o quarto dele, depois de voltar de uma festa. Deixemos o escritor expor a cena:

"O quarto estava escuro. Mesmo assim, no espaço próximo à janela, ela viu e ouviu alguma coisa balançando para frente e para trás. Olhou fixamente, com medo e surpresa.
Então de repente ela acendeu a luz e viu o filho, com seu pijama verde, balançando-se como um louco no cavalinho. A claridade da lâmpada iluminou-o de repente impelindo o cavalo de madeira, e iluminou-a, loura, em seu vestido verde claro bordado com cristais, parada no vão da porta.

- Paul! - exclamou ela. - O que você está fazendo?
- É Malabar! - gritou ele numa voz potente e estranha - É Malabar!

Seus olhos brilharam sobre ela por um estranho e insensato segundo, quando parou de impulsionar seu cavalo de madeira. Então caiu no chão com um estrondo, e ela, tomada por um atormentado instinto maternal, correu para levantá-lo".

O filho morreu tentando obter o dinheiro de que a família fazia questão - apesar de ter mais do que o suficiente para viver - através de seu inexplicável poder.

Este é um conto que classificaríamos como sendo do gênero "mistério" ou "horror", sem muita controvérsia: a antologia que o contém, inclusive, carrega uma dessas denominações. Nesse campo, não importa prender-se à realidade imediata. Ainda assim, essa narrativa diz muito a nosso respeito.

Mesmo que os contos tenham deixado para trás a preocupação moralizante que existia em sua origem há centenas de anos (vide as fábulas), nunca deixei de considerar muitos deles pequenas advertências ao leitor.

Acho que esse é o caso de O campeão do cavalinho de balanço.

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* COSTA, Flávio Moreira da (Org.). Os melhores contos de medo, horror e morte. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005