Acordei com a cabeça estourando. Ressaca. Das brabas. Ligo o aparelho de som, as caixas voltadas para a porta do banheiro, onde entro debaixo da água fria (qualquer dia desses dou minha receita de terapia musical para curar males provocados por excesso de bebida). Money Changes Everything, berrada pela voz estridente de Cyndi Lauper. Meu lado ultrapop está em alta ultimamente; comprei até um Greatest Hits do Billy Idol!
A canção - e não pergunte o porquê da associação - me remete aos Irmãos Karamazov*, livro que mencionei na postagem anterior. Eu citara a cena em que Dimitri Karamazov tenta obter 3.000 rublos com a Sra. Khokhlakhova, sem sucesso. Esse dinheiro serviria para que Dimitri pagasse uma dívida que tinha com a ex-noiva, Katarina Ivanovna.
Em alguns romances de Dostoiévski - como, por exemplo, Humilhados e Ofendidos ou Crime e Castigo - sempre me impressionou o grande número de referências feitas a quantias precisas de dinheiro, copeques e rublos citados frequentemente nos diálogos e nas palavras dos diversos narradores. Penso que isso não acontecia à toa.
Sabe-se que o escritor russo passou por grandes dificuldades financeiras durante quase toda a sua vida, chegando a mudar-se do próprio país para escapar dos credores. Dostoiévski, do mesmo modo que Balzac (e Graciliano Ramos, no Brasil), trouxe o dinheiro - esse elemento que já foi considerado incompatível com a "grandeza" e a "pureza" da arte literária - para dentro de seus livros, dando mais consistência e força a suas personagens.
É evidente que um livro como os Irmãos Karamazov é muito mais do que uma obra que tem como um de seus temas o dinheiro. A escrita do romancista é de uma profundidade filosófica poucas vezes vista. De acordo com Bóris Schnaiderman**,
Mas, ainda assim, o dinheiro (e aquilo que ele proporciona) é parte central da trama, a ponto dos citados 3.000 rublos ocuparem boa parte da narrativa, sendo inclusive a possível motivação para o crime que marca o romance.
Permita-me uma digressão: é bastante comum que as pessoas evitem falar de dinheiro, alegando, hipocritamente, que isso é "deselegante" ou que denota "falta de educação". Como mal tenho onde cair morto, falo de dinheiro sempre que posso, sem nenhum constrangimento. Digo mais: sem ele, a vida em sociedade é simplesmente insuportável; há pouquíssimas possibilidades de vivenciar experiências felizes sem esse recurso. Como escreveu Millôr Fernandes***,
Dostoiévski, é óbvio, se vivo fosse, não ouviria a Cyndi Lauper e execraria, caso lesse, a redução forçada de sua obra que empreendi nessa postagem. Mas acredito que ele, apesar de sua religiosidade intensa, não hesitaria em concordar que "money changes everything".
Acho que a bebedeira de ontem ainda não passou....
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* DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os Irmãos Karamazov (trad. Natália Nunes e Oscar Mendes). São Paulo: Abril Cultural, 1970 (Coleção Os imortais da literatura universal)Em alguns romances de Dostoiévski - como, por exemplo, Humilhados e Ofendidos ou Crime e Castigo - sempre me impressionou o grande número de referências feitas a quantias precisas de dinheiro, copeques e rublos citados frequentemente nos diálogos e nas palavras dos diversos narradores. Penso que isso não acontecia à toa.
Sabe-se que o escritor russo passou por grandes dificuldades financeiras durante quase toda a sua vida, chegando a mudar-se do próprio país para escapar dos credores. Dostoiévski, do mesmo modo que Balzac (e Graciliano Ramos, no Brasil), trouxe o dinheiro - esse elemento que já foi considerado incompatível com a "grandeza" e a "pureza" da arte literária - para dentro de seus livros, dando mais consistência e força a suas personagens.
É evidente que um livro como os Irmãos Karamazov é muito mais do que uma obra que tem como um de seus temas o dinheiro. A escrita do romancista é de uma profundidade filosófica poucas vezes vista. De acordo com Bóris Schnaiderman**,
"Dostoiévski é o escritor-filósofo por excelência. A grande força de sua obra consiste em ter dado intensidade dramática e ficcional a ideias. Em seus livros, elas deixam de ser abstratas e passam a ser algo vivo, carnal, de presença imediata. Trouxe, assim, uma grande contribuição à filosofia, o que é um caso singular na literatura. Exerceu influência sobretudo sobre Nietzsche e os existencialistas."
Mas, ainda assim, o dinheiro (e aquilo que ele proporciona) é parte central da trama, a ponto dos citados 3.000 rublos ocuparem boa parte da narrativa, sendo inclusive a possível motivação para o crime que marca o romance.
Permita-me uma digressão: é bastante comum que as pessoas evitem falar de dinheiro, alegando, hipocritamente, que isso é "deselegante" ou que denota "falta de educação". Como mal tenho onde cair morto, falo de dinheiro sempre que posso, sem nenhum constrangimento. Digo mais: sem ele, a vida em sociedade é simplesmente insuportável; há pouquíssimas possibilidades de vivenciar experiências felizes sem esse recurso. Como escreveu Millôr Fernandes***,
"O dinheiro é tudo. Ele é a fonte de todo o bem. Faz dentes mais claros, olho mais azul, amplia a dignidade individual, aumenta a popularidade, produz amor e paz espiritual e, quando tudo falha, paga o psicanalista."
Dostoiévski, é óbvio, se vivo fosse, não ouviria a Cyndi Lauper e execraria, caso lesse, a redução forçada de sua obra que empreendi nessa postagem. Mas acredito que ele, apesar de sua religiosidade intensa, não hesitaria em concordar que "money changes everything".
Acho que a bebedeira de ontem ainda não passou....
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** Entrevista dada a José Geraldo Couto e publicada na Folha de S. Paulo (Caderno Mais!), 6 mai. 2001
*** FERNANDES, Millôr. Millôr definitivo: a bíblia do caos. Porto Alegre: L & PM, 2002