quinta-feira, 8 de junho de 2017

"Porque a sabedoria serve de defesa..."



Em fevereiro deste ano, Vilma Trujillo, 25 anos de idade e mãe de dois filhos, foi amarrada e jogada numa fogueira. Isso aconteceu em El Cortezal, no norte da Nicarágua. Ela morreu com 80% do corpo queimado. Um grupo de fiéis da igreja Visão Celestial das Assembleias de Deus cometeu o crime, liderados por um pastor evangélico chamado Juan Rocha e por ordem da diaconisa (?) Esneyda Orozco. Rocha negou ter atirado a vítima no fogo. Disse que ela caiu lá quando "o espírito do demônio saiu do corpo dela".

Vilma Trujillo frequentava essa igreja. Por causa de um incidente no qual, alega-se, Vilma teria usado um facão ameaçadoramente, os outros membros acreditaram ser um caso de possessão. O marido da vítima, sem envolvimento com o crime, achava que a esposa tinha sido alvo de "bruxaria". Grupos que lutam pelos direitos das mulheres na Nicarágua consideraram esse horrendo episódio um exemplo de misoginia e fanatismo (confira a notícia da BBC sobre esse caso).

Noutra parte do mundo, em Banda Aceh (Indonésia), dois homens receberam como punição 83 vergastadas (além de dois meses na cadeia) apenas porque, de forma consensual, fizeram sexo um com o outro. Vizinhos invadiram o apartamento onde eles estavam, filmaram-nos através de celulares e postaram nas mídias sociais. A execução do castigo, ocorrida há menos de duas semanas, foi pública e em frente a uma mesquita da cidade. Uma turba compareceu para assistir a flagelação imposta, que também seria aplicada a outros quatro casais (heterossexuais, dessa vez) por manterem relações extraconjugais, o que também contraria a lei islâmica local (confira a matéria da CNN sobre esse caso).

Como se vê, tudo isso aconteceu não na Idade Média, mas neste século XXI, nesta autoproclamada "era da informação e do conhecimento". Nos dois casos, como em milhares de outros mundo afora, a torpeza busca justificação na religião. Estarrece saber que o açoitamento impingido aos dois jovens indonésios foi executado pelo poder público; revolta saber que uma mulher foi assassinada barbaramente pelo fanatismo resultante da manipulação exercida por indivíduos supostamente a serviço de uma potestade sobrenatural altamente improvável.

Todo esse fervor religioso punitivo, carregado de ignorância e violência, verificado no vilarejo da América Central e na cidade asiática, não surgiu espontaneamente. Convém notar que tanto a Indonésia quanto a Nicarágua não são nações conhecidas pelo seu estágio de desenvolvimento econômico, nem pelo bem-estar proporcionado a seus habitantes ou muito menos pela excelência de seu sistema educacional. Pelo contrário. Entre os 188 países nos quais o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) é medido, a Indonésia ocupa a 113ª colocação, enquanto a Nicarágua está em 124º lugar (o Brasil, terra da desigualdade, onde poucos têm demais e muitos têm quase nada, é o 79º). Em qualquer fonte que se consulte - Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial, ONU -, vê-se que tanto Indonésia quanto Nicarágua não estão entre os 100 países com maior renda per capita. E, de acordo com os dados do PISA (Programme for International Student Assessment), a Indonésia (junto com o Brasil, vale dizer) figura entre as 10 nações mais mal avaliadas (a Nicarágua não está incluída entre os 72 países analisados por essa entidade).

Áreas pobres (sejam estas pequenos logradouros ou até mesmo países inteiros), negligenciadas pelo Estado, cuja população recebeu (e continua recebendo) educação formal precária (isso quando recebe), são ambiente propício para que os indivíduos se apeguem ferrenhamente ao sobrenatural e mantenham crenças delirantes. Não preciso dizer que um ambiente assim atrai todo tipo de aproveitador e vigarista.

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"As pessoas vão à igreja pelos mesmos motivos que vão à taverna: para estupefazerem-se, para esquecerem-se de sua miséria, para imaginarem-se, de algum modo, livres e felizes. Não há nada tão estúpido como a inteligência orgulhosa de si mesma".

Quem disse isso foi o pensador anarquista Mikhail Bakunin. Concordo com ele. A taverna (que podemos chamar simplesmente de "bar", sem prejuízo de sentido) é o lugar "onde tantos iguais se reúnem contando mentiras pra poder suportar", como escreveu Aldir Blanc na letra de O rancho da goiabada, uma das muitas parcerias geniais com João Bosco. Por sua vez, a igreja, sem fornecer evidência alguma do que promete, precisa o tempo todo reiterar que há algum tipo de recompensa reservada ao fiel (mormente, no pós-morte) e que, portanto, essa vida terrena, mundana e ordinária, pouco ou nada significa e deve-se sempre esperar pela bem-aventurança do paraíso (pensando bem, a chamada "teologia da prosperidade" fala o tempo todo de prêmios ainda nessa vida).

Para Bakunin, a igreja e o bar (ou a taverna, se preferir) são lugares de conformismo e autoilusão. Não são a melhor saída quando se trata de encarar a realidade, sobretudo se for o caso de querer mudá-la.

Não sem uma tremenda carga de vergonha, este blogueiro deve confessar que é dado a frequentar bares (justamente para escapar da realidade de vez em quando por meio da embriaguez), embora hoje um pouco menos - por causa da idade e das agruras financeiras. Há diversas biroscas espalhadas no bairro em que moro. É um lugar pobre. E, como sabemos, cachaça é uma mercadoria sempre procurada nas periferias.

Pobre também é o bairro onde trabalho atualmente (certos eufemismos me dão nos nervos; por isso prefiro usar o adjetivo pobre mesmo e não a locução "com alta vulnerabilidade social"). Lá também há muitos botequins. Suspeito, todavia, que o número de igrejas seja ainda maior. Apenas na avenida principal - e apenas no trecho que percorro dentro do ônibus até desembarcar - contei 14 unidades, duas católicas e as demais evangélicas. Pelo menos quatro dessas nunca vi de portas abertas (pode ser que tenham encerrado as atividades). É razoável supor que existam outras mais espalhadas em ruas e vias secundárias (é também o caso de especular: será que os crentes ¹ moradores desse bairro, como os de vários outros bairros similares pelo Brasil, nunca se perguntam: "com tantas casas de oração, devotadas à adoração do ser supremo, por que essa região não recebe maior proteção e auxílio divinos, pelo menos do ponto de vista socioeconômico e da segurança pública?").

Das igrejas evangélicas existentes lá apenas uma, das que vi, é "franquia" de uma "grande rede": há uma unidade da Igreja Mundial do Poder de Deus (aquela mesma, liderada por aquele "apóstolo" que chora na TV e, com a cara mais lavada do mundo, pede doações de R$ 1.000,00, além de vender meias e tijolinhos ungidos a R$153,00 e R$200,00, respectivamente). Os outros locais de culto são, digamos, mais autônomos e simples, mas não menos barulhentos, como se pode facilmente perceber ao passar em frente a eles. Todos esses estabelecimentos têm em comum o mesmo tipo de público ²: pessoas pobres, humildes, iletradas, extremamente crédulas ou desejosas de se livrar de uma situação de angústia/abuso - prato cheio para trapaceiros que agem em nome de Deus.

Mas os problemas do mundo real exigem soluções do mundo real, por mais que a fala da religião e da crença no sobrenatural soe consoladora e agradável aos ouvidos. A cachaça também alivia e entorpece o desespero, mas não resolve nada, como constato toda vez, desgostosamente, na ressaca da manhã seguinte.

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Em 1999, o físico (e ganhador do prêmio Nobel) Steven Weinberg disse, numa conferência da Associação Americana para o Progresso da Ciência: "Religion is an insult to human dignity. With or without it you would have good people doing good things and evil people doing evil things. But for good people to do evil things, that takes religion" [A religião é um insulto à dignidade humana. Com ou sem ela, você teria pessoas boas fazendo coisas boas e pessoas más fazendo coisas más. Mas para pessoas boas fazerem coisas más, é necessário religião].

Mais tarde, num artigo baseado nessa conferência (disponível aqui), Weinberg modificou um pouco o que disse anteriormente, mas a essência permaneceu a mesma: "With or without religion, good people can behave well and bad people can do evil; but for good people to do evil - that takes religion" [Com ou sem religião, pessoas boas podem se comportar bem e pessoas más podem fazer o mal; mas para que pessoas boas façam o mal - é necessário religião].

Quando alguém acredita estar agindo em nome de Deus (ou Jesus, ou Alá, etc.) será muito difícil (talvez até impossível) convencê-lo de que algumas de suas ações não estão promovendo bem algum; pelo contrário, seriam maléficas. Em abril passado um estudante paquistanês foi torturado e morto dentro de uma universidade daquele país simplesmente por ter colocado no Facebook um conteúdo considerado ofensivo ao Islã. Aposto que os assassinos julgavam-se muçulmanos corretos e zelosos. Arrisco dizer também que muitos dos soldados de infantaria, lutando nas Cruzadas em nome da cristandade (e beneficiando exclusivamente seus suseranos), acreditavam realmente estar protegendo a "Terra Santa" quando matavam seus "inimigos" de outra religião. Mas não é apenas gente crédula e simplória que é levada a praticar o mal quando pensa estar "combatendo o bom combate". Pessoas religiosas inteligentes - às vezes com altos níveis de escolaridade, mas, paradoxalmente, dogmáticas e obscurantistas ao extremo - frequentemente recorrem à sua fé (algo particular, pessoal, que deveria dizer respeito apenas ao indivíduo) para impedir mudanças e avanços sociais, bem como colocar entraves indesejáveis à prática científica. E mesmo quando não agem pessoalmente, permitem que outros o façam com seu beneplácito.

Existe, no Congresso brasileiro, uma proposta de emenda constitucional (PEC 29/2015), de autoria do senador Magno Malta (integrante da popularmente conhecida Bancada da Bíblia), intencionando alterar o artigo 5º da Constituição Federal e fazendo com que o direito à vida seja inviolável desde a concepção. Como observou Lola Aronovich em seu blog, caso essa PEC seja aprovada, na prática ela

"Significa principalmente que qualquer intervenção para interromper a gravidez será vista como crime. Adeus pílula do dia seguinte, adeus aos três únicos casos em que o aborto é permitido no Brasil (quando a gravidez decorre de um estupro, quando apresenta risco de vida à gestante, e em casos de fetos com anencefalia), adeus aborto legal.
O Brasil já é um dos países mais restritivos do mundo em relação ao aborto, o que faz com que milhares de mulheres morram todos os anos, em consequência do aborto clandestino.
 
Se a PEC 29/2015 passar, abre as portas para que o país entre na lista das nações mais atrasadas, aquelas que proíbem o aborto em todos os casos. E automaticamente coloca as mulheres que sofrem aborto natural como suspeitas.
Tem mais: uma vez aprovada esta PEC, o 'direito à vida' pode ser usado para barrar outras coisinhas também, como inseminação artificial (em que montes de embriões excedentários são descartados) e pesquisas com células tronco embrionárias".
Esse mesmo senador e outros parlamentares da Bancada da Bíblia são também agressivos defensores do movimento denominado "Escola Sem Partido", cujo objetivo é impedir a discussão, dentro das instituições de ensino, de assuntos ligados às questões de gênero e à diversidade sexual, à temática étnico-racial, bem como impedir professoras e professores de falar de temas considerados, pelo movimento, como sendo "doutrinação ideológica" (acertadamente, os opositores do "Escola Sem Partido" - como este blogueiro - chamam essa sandice de "Escola da Mordaça"). Ações como essas, não tenho dúvida, revelam que as religiões e suas organizações, além de desprezarem o princípio republicano da laicidade, não abrirão mão da sua ânsia de controle e poder.

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O biólogo Richard Dawkins, em seu famoso livro Deus, um delírio ³, observa que

"A religião fundamentalista está determinada a arruinar a educação científica de inúmeros milhares de mentes jovens, inocentes e bem-intencionadas. A religião não fundamentalista, 'sensata', pode não estar fazendo isso. Mas está tornando o mundo seguro para o fundamentalismo ao ensinar a crianças, desde muito cedo, que a fé inquestionável é uma virtude".

Por que a religião e a crença no sobrenatural não podem ser objeto de crítica quando tudo o mais, nas sociedades democráticas, é passível de questionamento? Por que deve-se ter uma especial deferência com instituições, práticas e credos perfeitamente dispensáveis para o bem-estar de uma parte significativa dos seres humanos (e isso não se restringe apenas aos ateus)?

Todos estamos de acordo que as pessoas têm o direito de acreditar no que quiserem, participar das cerimônias e seguir a liturgia que mais lhes aprouver. Entretanto não somos todos obrigados a manifestar uma circunspecção mais rigorosa ou um respeito mais ostensivo (leia-se aceitação sem crítica) pelos credos e ritos religiosos do que o recomendado pela convivência civilizada. Reitero: a fé é algo pessoal, diz respeito apenas ao indivíduo que a professa - para o restante das pessoas, não aderentes à religião em questão (ou a qualquer religião, caso dos ateus), sua relevância é ínfima.

Viveríamos, penso eu, num mundo menos embrutecido se todos os crentes (no sentido amplo, veja nota no fim da postagem) fossem do tipo sensato. Contudo, figuras como Marco Feliciano, Silas Malafaia, Edir Macedo, extremistas muçulmanos, judeus ortodoxos radicais - ou seja, os reconhecidamente imoderados - são numerosos e muito influentes. Não tenho dúvida de que o sustentáculo dos fundamentalistas, em última análise, acaba sendo, infelizmente, a religião dita sensata. Ao ser costumeiramente refratária à crítica e ao questionamento, a fé muitas vezes enseja a intolerância, a prostração da reflexão e uma visão de mundo simplista e maniqueísta.

Religiões, penso eu, estão muito longe de ser inofensivas. Concordo com o ensaísta Christopher Hitchens quando este escreve que

"Muitas religiões agora se apresentam diante de nós com sorrisinhos insinuantes e mãos estendidas, como um comerciante pegajoso num bazar. Oferecem consolo, solidariedade e elevação, competindo como estão num mercado. Mas nós temos o direito de lembrar como se comportaram barbaramente quando eram fortes e faziam ofertas que as pessoas não podiam recusar [o autor tem em mente aqui, claro, o atual cenário verificado na Europa ocidental; na América Latina e noutras partes do mundo, para nossa miséria, religiões ainda são bastante atuantes politicamente]. E se por acaso nos esquecemos de como era isso, basta olhar os Estados e as sociedades onde o clero ainda tem o poder de ditar seus termos. Os patéticos vestígios podem ainda ser vistos, em sociedades modernas, nos esforços feitos pela religião para assegurar o controle sobre a educação, ou de se eximir de impostos, ou de adotar leis que proíbem as pessoas de insultar a onipresente e onisciente divindade, ou mesmo seu profeta".

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O título desta postagem foi retirado do Eclesiastes (capítulo 7, versículo 12): "Porque a sabedoria serve de defesa, como de defesa serve o dinheiro; mas a excelência da sabedoria é que ela preserva a vida de quem a possui". Como já escrevi aqui no blog noutra ocasião,  na Bíblia é possível encontrar, sendo um livro tão extenso e muitas vezes incoerente, passagens que ilustram e sancionam qualquer afirmativa que se queira fazer. O próprio livro de Eclesiastes enaltece a sabedoria - "[...] a sabedoria é mais excelente que a estultícia, quanto a luz é mais excelente do que as trevas" ou "A sabedoria fortalece ao sábio mais do que dez governadores que haja na cidade" - para, noutros versículos, considerá-la apenas como vaidade e recomendar que o indivíduo não seja demasiadamente sábio...

De todo modo - e embora não tenha pela Bíblia nenhum apreço ou consideração especial além do interesse literário - não acho nada mal a recomendação de que a sabedoria é uma forma de defesa. Defesa contra aproveitadores, hipócritas, fanáticos e canalhas de toda espécie, muitos dos quais estão confortavelmente domiciliados na religião e na crença no sobrenatural.

Contra eles, precisamos tentar ser, antes de tudo, sábios e não religiosos.

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¹ Sempre é bom reiterar: quando uso o termo crente tenho em mente o seguinte significado: "aquele que acredita numa divindade", em oposição ao termo descrente ou, simplesmente, ateu ("aquele que não acredita em nenhuma"). Assim, crente, neste contexto, designa todos os que acreditam em Deus, independentemente da denominação religiosa pela qual têm afinidade  ou da qual fazem parte.

² Mas essas características não são exclusividade apenas dos evangélicos - ou, mais especificamente, dos neopentecostais.

³ DAWKINS, Richard. Deus, um delírio. São Paulo: Companhia das Letras, 2007 [Tradução de Fernanda Ravagnani]

HITCHENS, Christopher. Deus não é grande: como a religião envenena tudo. 2 ed. São Paulo: Globo, 2016 [Tradução de George Schlesinger]

BG de Hoje

Um dos discos mais marcantes da história recente do rock - OK Computer, do RADIOHEAD - completa 20 anos de lançamento. É um álbum que leva um certo tempo pra ser verdadeiramente apreciado (pelo menos comigo foi assim). Minhas faixas prediletas hoje são Lucky (que inclusive já foi BG noutra postagem) e Let down, mas foi por causa de Karma Police (junto com seu clipe fascinantemente estranho) que comprei o CD em 1997.