quinta-feira, 25 de maio de 2017

Coragem, covardia e onde andará Janair? (II)



"Vou agora te contar como entrei no inexpressivo que sempre foi a minha busca cega e secreta. De como entrei naquilo que existe entre o número um e o número dois, de como vi a linha de mistério e fogo, e que é linha sub-reptícia. Entre duas notas de música existe uma nota, entre dois fatos existe um fato, entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam existe um intervalo de espaço, existe um sentir que é entre o sentir - nos interstícios da matéria primordial está a linha de mistério e fogo que é a respiração do mundo, e a respiração contínua do mundo é aquilo que ouvimos e chamamos de silêncio".

G. H. , em A paixão segundo G. H. - Clarice Lispector


Se o(a) eventual leitor(a) fez a gentileza de ler a postagem anterior (disponível aqui), viu que, na opinião deste blogueiro, o tema preponderante do romance A paixão segundo G. H. é a busca pela liberdade - de criação e de expressão - da escrita literária. Através do processo que culmina na "despersonalização" e na "deseroização" daquela que narra, Clarice Lispector apontou um rumo, até então inédito, para a ficção brasileira. Muito poucos seguiram esse caminho, provavelmente porque fazê-lo implicaria aceitar os seus "resultados", as suas incômodas "recompensas". No penúltimo capítulo ¹, penso não ser G. H., mas sim a escritora falando através da personagem-narradora:

"A realidade é a matéria prima, a linguagem é o modo como vou buscá-la - e como não acho. Mas é do buscar e não achar que nasce o que eu não conhecia, e que instantaneamente reconheço. A linguagem é o meu esforço humano. Por destino tenho que ir buscar e por destino volto com as mão vazias. Mas - volto com o indizível. O indizível só me poderá ser dado através do fracasso de minha linguagem. Só quando falha a construção, é que obtenho o que ela não conseguiu".

Para ser livre, a escritora, como mencionamos também na postagem anterior, sobrepujou a sua covardia (entendida aqui como os receios e pruridos inibidores do arrojo artístico) e teve a coragem de ousar (ou seja, no caso do romance ora discutido, mandar às favas a factualidade, a referencialidade do mundo e propor uma trajetória baseada na interiorização quase absoluta). A autora tinha plena consciência do passo que estava dando ao recusar seguir qualquer convencionalismo (repare nesta reflexão da narradora: "Quanto eu devia ter vivido presa para sentir-me agora mais livre somente por não recear mais a falta de estética").

Esse "jogo" entre a coragem e a covardia (muitas vezes esta última é substituída pela palavra medo) é parte essencial de A paixão segundo G. H.. Bem no início, a narradora se pergunta se terá a "coragem infantil de [se] perder". Pouco mais à frente, deseja ter a coragem "de deixar que essa forma se forme sozinha como uma crosta que por si mesma endurece, a nebulosa de fogo que se esfria em terra. E que eu tenha a grande coragem de resistir à tentação de inventar uma forma".

A forma denota, por certo, a matéria narrada, tanto no plano do enunciado quanto no plano da enunciação. "É preciso coragem para me aventurar numa tentativa de concretização do que sinto", nos diz G. H., para bem mais adiante afirmar: "Não devo ter medo de ver a humanização por dentro".

Mas para que esse texto fosse minimamente comunicável, Clarice Lispector lançou mão de um recurso ao mesmo tempo simples e brilhante: forjou um(a) interlocutor(a) - a quem pede que segure sua mão em auxílio, mas que ao final do percurso narrativo já não será necessário(a). É a ele/ela que G. H. se dirige em passagens como essas:

"Espera por mim, espera: sei que depois saberei como encaixar tudo isso na praticidade diária, não esqueças que também eu preciso da vida diária".

"Não te assustes como estou assustada: não pode ser ruim ter visto a vida no seu plasma. É perigoso, é pecado, mas não pode ser ruim porque nós somos feitos desse plasma".

E, a propósito, reparemos que G. H., numa das passagens citadas acima, diz: "eu preciso da vida diária". Mesmo em meio a todo o torvelinho filosófico-existencial para onde somos levados junto com a personagem-narradora, esta sabe, entretanto, que a visão do "plasma" da vida irá se interromper em algum momento, não pode durar indefinidamente (noutra passagem, ela planeja na cabeça uma pequena farra com amigos, pensa no vestido que usará, no que comerá e diz: "[...] hoje de noite vai ser a minha vida diária retomada, a de minha alegria comum, precisarei para o resto dos meus dias de minha leve vulgaridade doce e bem-humorada, preciso esquecer, como todo mundo").

Devo então observar que é um episódio dessa vida diária - quase obliterada no transcorrer do romance - que dará à narrativa seu impulso fundamental (o encontro com a barata só acontece, aliás, por causa desse impulso): a empregada se despedira no dia anterior.

Sozinha no apartamento, G. H. resolve arrumar a casa. Decide começar justamente pelo quarto de empregada (que supunha estar sujo e bagunçado). Surpreende-se, porém:

"Esperava encontrar escuridões, preparara-me para ter que abrir escancaradamente a janela e limpar com ar fresco o escuro mofado. Não contara é que aquela empregada, sem me dizer nada, tivesse arrumado o quarto à sua maneira, e numa ousadia de proprietária o tivesse espoliado de sua função de depósito".

E decreta:

"Na minha casa fresca, aconchegada e úmida, a criada, sem me avisar abrira um vazio seco".

Este "vazio seco" - onde a narradora iria acabar descobrindo "a identidade de [sua] vida mais profunda" - é também designado um "minarete". A princípio, G. H. não se lembra nem do rosto, nem como se chamava a empregada que acabara de deixar o emprego. Pelo menos em relação ao nome, contudo, a memória acode instantes depois: "Mas seu nome - é claro, é claro, lembrei-me finalmente: Janair".

Janair, além do quarto arrumado, deixara um desenho a carvão numa das paredes. A partir do desenho, considerado por G. H. uma "mensagem bruta para quando eu abrisse a porta", a narradora conclui que Janair a odiara e que na mudez dela poderia "ter havido uma censura [à vida da narradora], que devia ter sido chamada pelo seu silêncio de 'uma vida de homens' ". Esse "ódio silencioso" da empregada, convém mencionar, é tão-somente uma suposição da narradora.

De repente, G. H. tem uma lembrança mais completa de Janair:

"[...] revi o rosto preto e quieto, revi a pele inteiramente opaca que mais parecia um de seus modos de calar, as sobrancelhas extremamente bem desenhadas, revi os traços finos e delicados que mal eram divisados no negror apagado da pele.

Os traços - descobri sem prazer - eram traços de rainha. E também a postura: o corpo erecto, delgado, duro, liso, quase sem carne, ausência de seios e ancas. E sua roupa? Não era de surpreender que eu a tivesse usado como se ela não tivesse presença: sob o pequeno avental, vestia-se sempre de marrom escuro ou de preto, o que a tornava toda escura e invisível - arrepiei-me ao descobrir que até agora eu não havia percebido que aquela mulher era uma invisível".

As questões sociais (por exemplo, a desigualdade de renda, o subemprego e o racismo), muito provavelmente pela especificidade e a singularidade do "programa" estético/literário estabelecido pela escritora, nunca foram um elemento a ser destacado na obra de Clarice Lispector (exceção, talvez, para A hora da estrela). Portanto, essas questões não estão inteiramente à tona em A paixão segundo G. H.. O que não quer dizer que seria despropositado falar a respeito delas, pois, como a própria personagem disse lá na epígrafe deste meu texto, "entre dois fatos existe um fato".

Falávamos sobre liberdade, no início desta postagem e também na anterior. Mais precisamente sobre a liberdade intencionada por todo artista, no momento de criar e na forma de se expressar. Mas há um outro tipo de liberdade. Dele nos fala sem circunlóquios a personagem G. H.: "E também, é claro, minha liberdade vinha de eu ser financeiramente independente".

A narradora reitera sua boa situação econômica quatro páginas adiante:

"Mas tendo aos poucos, por meio do dinheiro razoavelmente bem investido, enriquecido o suficiente, isso impediu-me de usar essa minha vocação [de arrumar as coisas]: não pertencesse eu por dinheiro e por cultura à classe a que pertenço, e teria normalmente tido o emprego de arrumadeira numa grande casa de ricos, onde há muito o que arrumar".

É de se notar que, num livro ao qual o prosaísmo mundano pouco comparece, a referência ao financeiro não carregue nenhuma ambiguidade. E notar também que G. H. imaginou-se um dia arrumadeira, o mesmo trabalho desempenhado por Janair. 

G. H. e Janair encaixam-se em estratos completamente diferentes da pirâmide socioeconômica. A primeira, patroa, provavelmente branca, pertencente à classe média alta do Rio de Janeiro; a segunda, empregada, negra, provavelmente pobre e moradora de um dos morros da (já não mais) Cidade Maravilhosa. A segunda permaneceu seis meses invisível para a primeira (por quê?, é uma pergunta interessante e desafiadora a se fazer), apesar de G. H. ter-se um dia imaginado arrumadeira.

Há um fosso entre elas, não só em relação à condição de classe (a narradora chama o fim do corredor onde se localiza o quarto de empregada de "o bas-fond de minha casa"), mas também em relação à possibilidade de compreensão mútua. G. H. acreditava que fosse odiada por Janair. Mas o que pensava Janair? O que a levou a largar aquele emprego? Nunca o saberemos.

É natural que num livro tão extraordinário como o que acabamos de discutir fixemos toda a nossa atenção no encadeamento narrativo em si, deixando tudo o mais de lado. Entretanto, sempre que termino a leitura de A paixão segundo G. H., permaneço curioso sobre qual teria sido o destino de Janair. Sei que isso talvez não tenha qualquer relevância para uma maior compreensão do romance. Ainda assim, a personagem sempre irá se impor a mim.

Onde andará Janair?
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¹ LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G. H. Rio de Janeiro: Rocco, 1998

BG de Hoje

Mais uma vez, MICHAEL JACKSON. Só que agora num medley executado pelo excelente grupo vocal PENTATONIX.