terça-feira, 2 de maio de 2017

Richard Rorty e a recusa da verdade redentora


Quando, no ano passado, o Oxford Dictionary escolheu pós-verdade como a palavra do ano, a atenção de muita gente voltou-se para a obra do norte-americano Richard Rorty (1931-2007). Ele e outros pensadores do pós-modernismo, dizem, prepararam o terreno filosófico favorável para o nascimento desse estranho (e arriscado) conceito. Pós-verdade, segundo o Oxford Dictionary, é um termo "relating to or denoting circumstances in which objective facts are less influential in shaping public opinion than appeals to emotion and personal belief" [relacionando ou denotando circunstâncias nas quais fatos objetivos são menos influentes em formar a opinião pública do que apelos à emoção e crença pessoal]. Geralmente combinado com o substantivo política - "a política da pós-verdade" -, a expressão foi bastante usada, inclusive pela imprensa, principalmente durante o referendo que decidiu pelo Brexit (a saída do Reino Unido da União Europeia) e na cobertura da campanha eleitoral presidencial dos EUA, que resultou na vitória de Donald Trump.

Mas por que Richard Rorty é lembrado, acusatoriamente, ao se falar em pós-verdade? Basicamente, porque este filósofo era daqueles que considerava a verdade não como algo a ser descoberto, mas como algo que se constrói. E sendo a verdade provisória e contingente, dependente de um acordo intersubjetivo para vigorar, o que nos impediria de descartá-la, casuisticamente, de acordo com o que for mais compatível com nossas emoções e opiniões momentâneas? Convém então, penso eu, tentar entender o próprio Rorty.

No ensaio A filosofia como gênero transitório¹, ele começa dizendo: "Questões como 'Existe a verdade?' ou 'Você acredita na verdade' parecem tolas e inúteis", afirmando, logo em seguida, que qualquer pessoa sabe da importância de se distinguir entre crenças verdadeiras e crenças falsas e que a aptidão para usar o conceito de crença verdadeira é condição indispensável para alguém ser considerado um usuário da linguagem capacitado a agir racionalmente. Nesse momento, estamos todos no mesmo território familiar, habitual, da noção de verdade.

"Não obstante", prossegue Rorty, "a pergunta 'Você acredita na verdade ou você é um desses pós-modernistas frívolos?' é frequentemente a primeira que os jornalistas fazem aos intelectuais que lhes cabe entrevistar. Ela desempenha agora o papel anteriormente atribuído à pergunta 'Você acredita em Deus ou você é um daqueles ateus perigosos?'. Os intelectuais do tipo literário têm de ouvir com frequência que não amam a verdade suficientemente. Tais repreensões são feitas no mesmo tom com que seus predecessores eram lembrados de que o temor ao Senhor era o início da sabedoria".

A questão "você acredita na verdade?" ou a variante "você acredita que a verdade existe?" é, segundo o filósofo norte-americano, "uma forma abreviada para algo como 'Você pensa que há um ponto terminal natural para o questionamento, uma maneira como as coisas realmente são, e que a compreensão do que essa maneira é nos dirá o que fazermos com nós próprios?' ".

A resposta de Rorty é não. Para ele não há esse ponto terminal para o questionamento. Há sempre algo sobre o que conversar (emprego esse verbo aqui propositalmente porque a concepção da atividade filosófica como uma longa e ininterrupta conversação, visando a solução de problemas por meio de intervenções na política cultural ², é uma ideia recorrente no pensamento desse filósofo); "não podemos [aqueles acusados de frivolidade pós-modernista, como ele próprio] imaginar um questionamento sobre como os seres humanos deveriam viver, sobre o que deveríamos fazer de nós, chegando a um ponto final. Pois soluções dos velhos problemas produzirão novos problemas para sempre, e assim por diante. Assim como ocorre com o indivíduo, também na sociedade e na espécie cada estágio de maturação vai superar prévios dilemas apenas através da criação de novos".

Seguindo a tradição pragmatista, à qual pertence, Richard Rorty pensa que qualquer pretensão epistemológica fundada nalguma metafísica, sugerindo ou até afirmando existir algo como uma realidade oculta do mundo, além das aparências, à qual se pode chegar por meio de investigação metódica (ou, no caso da religião, por meio da fé), deve ser deixada de lado. O pensador norte-americano recusa aquilo que ele chama de verdade redentora:

"Empregarei o termo 'verdade redentora' para um conjunto de crenças que deveriam terminar, de uma vez por todas, com o processo de reflexão sobre o que fazer com nós mesmos. A verdade redentora, se existisse, não seria esgotada por teorias sobre como as coisas interagem de forma causal. Ela teria de satisfazer uma necessidade a que a religião e a filosofia tentaram atender. Essa necessidade é a de encaixar tudo -  cada coisa, pessoa, evento, ideia e poema - em um único contexto, um contexto que de alguma forma se revelará natural, destinado e único [...] Acreditar na verdade redentora é crer que existe algo que está para a vida humana como as partículas elementares estão para os quatro elementos - algo que é a realidade além da aparência, a única descrição verdadeira do que está acontecendo". [grifo meu]

Recusar a verdade redentora é, de certa forma, recusar grande parte dos esforços empreendidos pelos filósofos nos últimos séculos - daí a alcunha de "coveiro da filosofia", muitas vezes atribuída a Rorty. Sua obra, como observa Gideon Calder ³,

"parece abalar a ideia de que o mundo poderia ter uma natureza intrínseca ou oculta a ser representada, que a Verdade seria algo a ser revelado pelo mundo para o arrematante teórico mais convincente. Se pensarmos que ela é isso, então trata-se de uma reminiscência provinda das concepções dos séculos XVII e XVIII da mente e do conhecimento, e da ideia de que a Verdade - a forma pela qual o mundo "realmente é" - é algo a ser alcançado pela atenção meticulosa à racionalidade das formas pelas quais aplicamos nossas mentes ou nossa linguagem ao mundo".

Uma tal concepção da verdade - como verdade redentora - perpetua-se, ainda de acordo com Calder, por

"medo do 'relativismo' - a tese de que o que conta como verdade, longe de ser algo absoluto ou universal, é apenas e sempre relativo à linguagem que falamos, as nossas experiências, as nossas circunstâncias culturais, ou o que seja. Rorty pensa que podemos evitar essas preocupações nos juntando à conclusão pragmatista de que, nas palavras de William James, 'o verdadeiro é o nome daquilo que se mostra bom na forma da crença'. Ser 'algo com que possamos lidar' não implica nenhum tipo de correspondência direta com a forma como as coisas 'realmente são'; apenas significa que a verdade, na classificação mais generalista que possamos encontrar, é o que funciona".

Reside aí "o aspecto mais problemático do pensamento de Rorty: sua aparente redução de todos os critérios críticos a simples consenso e convenção - sua alegação de que a objetividade é apenas e simplesmente um acordo intersubjetivo". Esse aspecto faz ressaltar o jeitão senso comum típico do pragmatismo; além disso, mesmo que o filósofo norte-americano não se assumisse assim, a pecha de relativista que sempre o acompanhou (não percamos de vista que o relativismo faz emergir sérias questões morais) também contribuiu para que sua obra fosse constantemente atacada: "um renegado para os puristas, um reacionário para os radicais e um subversivo para os conservadores".

Porém, é injusto, a meu ver, debitar na conta desse pensador o conceito de pós-verdade. Ao questionar a noção de verdade, o filósofo não estava indo contra as verdades mais diretas, factuais, com as quais nos deparamos rotineiramente. É contra a ideia de que possa existir um único conjunto de crenças válido para todos os seres humanos em quaisquer circunstâncias (e, a isso, muitos dão o nome de verdade) que ele se posicionava.

Richard Rorty não é, nem de longe, um dos meus filósofos prediletos. Mas não consigo ficar indiferente a muitas de suas ideias. Como, por exemplo, a ideia de que a Literatura, hoje, tem muito mais relevância (ele talvez dissesse utilidade) cultural do que a Filosofia, sendo, inclusive, um dos aspectos mais positivos na formação dos intelectuais contemporâneos. Falarei disso, porém, noutra ocasião.

Na próxima semana, comento o livro Pó de parede, da escritora Carol Bensimon.

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¹ RORTY, Richard. A filosofia como gênero transitório. In: _______. Filosofia como política cultural. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p. 155-178 [Tradução de João Carlos Pijnappel]

² Para compreender melhor o que o autor chama de política cultural, leia-se este excerto do prefácio do livro acima referenciado: "Intervenções na política cultural têm às vezes tomado a forma de propostas de novos papéis que os homens e as mulheres poderiam desempenhar: o asceta, o profeta, o imparcial investigador da verdade, o bom cidadão, o esteta, o revolucionário. Algumas vezes elas têm sido esboços de uma comunidade ideal - a pólis grega aperfeiçoada, a Igreja cristã, a república das letras, a comunidade cooperativa. Algumas vezes elas têm sido sugestões de como reconciliar perspectivas aparentemente incompatíveis - para resolver um conflito entre racionalismo grego ou a fé cristã, ou entre a ciência natural e a consciência moral comum. Essas são apenas algumas das maneiras pelas quais os filósofos, poetas e outros intelectuais têm feito uma diferença na maneira de viver das pessoas".

³ CALDER, Gideon. Rorty e a redescrição. São Paulo: Editora UNESP, 2006 [Tradução de Luiz Henrique de Araújo Dutra]

BG de Hoje

LCD SOUNDSYSTEM foi um grupo muito inventivo (não sei se ainda estão em atividade), sem, contudo, deixar de soar agradavelmente pop. É só ouvir North American Scum, do disco Sound of silver, lançado há 10 anos, pra se dar conta disso: uma faixa que combina a programação eletrônica criativa, com uma pegada rocker, à letra irônica e inteligente.