" O intelecto humano não é luz pura, pois recebe influência da vontade e dos afetos, donde se poder gerar a ciência que se quer. Pois o homem se inclina a ter por verdade o que prefere. Em vista disso, rejeita as dificuldades, levado pela impaciência da investigação; a sobriedade, porque sofreia a esperança; os princípios supremos da natureza, em favor da superstição; a luz da experiência, em favor da arrogância e do orgulho, evitando parecer se ocupar das coisas vis e efêmeras; paradoxos, por respeito à opinião do vulgo. Enfim, inúmeras são as fórmulas pelas quais o sentimento, quase sempre imperceptivelmente, se insinua e afeta o intelecto".
Francis Bacon - Novum Organum*
Na edição número 100 da revista Filosofia Ciência e Vida, publicada em novembro do ano passado, um de seus colunistas, Flávio Paranhos, recebeu a tarefa meio ingrata de tentar responder a uma pergunta com a qual todo estudioso ou interessado em Filosofia tem de lidar: para que ela serviria?**
O articulista conduz seu texto tendo em mente a Filosofia enquanto formação academico-profissional e/ou disciplina universitária. O pequeno artigo é divertido e provocador. E há ainda o endosso de Paranhos ao ponto de vista, derivado de Deleuze & Guattari, que ressalta o horror da Filosofia pelas discussões (um posicionamento, aliás, contrário a outro defendido por mim aqui, noutra postagem). O articulista observa que esse desprazer em discutir não se restringe apenas às pessoas interessadas em Filosofia, mas se aplica aos seres humanos em geral. Temos tantas certezas de nossas convicções que não estamos dispostos a colocá-las em xeque. Para corroborar sua argumentação, ele cita então Francis Bacon.
Ao ler esse artigo de Flávio Paranhos lembrei-me da teoria dos ídolos proposta pelo filósofo inglês no ambicioso livro Novum Organum, publicado pela primeira vez em 1620. É notável como algumas daquelas reflexões são úteis para se analisar o ambiente das redes sociais (Facebook, Twitter, WhatsApp, etc.), ultimamente tão caracterizado pela exibição, sem qualquer constrangimento muitas vezes, do sectarismo e da intolerância.
Bacon acreditava que o conhecimento, para avançar e trazer benefícios diretos para a sociedade, deveria alicerçar-se numa nova base metodológica (bem distinta da Escolástica medieval, ainda influente nas universidades de seu tempo). Era preciso, contudo, livrar-se inicialmente dos empecilhos "que bloqueiam a mente humana", nas palavras do próprio pensador. São estes os ídolos e as noções falsas.
Dos quatro listados, dois interessariam-nos mais de perto: os ídolos da tribo e os ídolos da caverna. Segundo Francis Bacon, os ídolos da tribo são erros de avaliação e julgamento provenientes de nossa confiança cega nas próprias percepções: "o intelecto humano é semelhante a um espelho que reflete desigualmente os raios das coisas e, dessa forma, as distorce e corrompe", diz o filósofo. Por sua vez, os ídolos da caverna referem-se aos erros de avaliação e julgamento decorrentes de nossos preconceitos e condicionamentos ideológicos, reforçados pelo meio sociocultural no qual vivemos: "por isso, bem proclamou Heráclito, que os homens buscam em seus pequenos mundos e não no grande ou universal".
Leiamos agora, com atenção, todo o eloquente aforismo XLVI do Novum Organum:
"O intelecto humano, quando assente em uma convicção (ou por já bem aceita e acreditada ou porque agrada), tudo arrasta para seu apoio e acordo. E ainda que em maior número, não observa a força das instâncias contrárias, despreza-as, ou, recorrendo a distinções, põe-nas de parte e rejeita, não sem grande e pernicioso prejuízo. Graças a isso, a autoridade daquelas primeiras afirmações permanece inviolada. E bem se houve aquele que, ante um quadro pendurado no templo, como ex-voto dos que se salvaram dos perigos de um naufrágio, instado a dizer se ainda se recusava a aí reconhecer a providência dos deuses, indagou por sua vez: 'E onde estão pintados aqueles que, a despeito do seu voto, pereceram?'. Essa é a base de praticamente toda superstição, trate-se de astrologia, interpretações de sonhos, augúrios e que tais; encantados, os homens, com tal sorte de quimeras, marcam os eventos em que a predição se cumpre; quando falha - o que é bem mais frequente - negligenciam-nas e passam adiante. Esse mal se insinua de maneira muito mais sutil na filosofia e nas ciências. Nestas, o de início aceito tudo impregna e reduz o que se segue, até quando parece mais firme e aceitável. Mais ainda: mesmo não estando presentes essa complacência e falta de fundamentos a que nos referimos, o intelecto humano tem o erro peculiar e perpétuo de mais se mover e excitar pelos eventos afirmativos que pelos negativos, quando deveria rigorosa e sistematicamente atentar para ambos. Vamos mais longe: na constituição de todo axioma verdadeiro, têm mais força as instâncias negativas".
Quem já teve a infelicidade de comentar - com boa fé - um post controverso, polêmico ou simplesmente assertivo nas ditas redes sociais experimentou certamente o dissabor de receber xingamentos em troca. Isso quando não são os próprios posts formados por ofensas, disseminação de ódio, calúnia e proselitismo (religioso ou partidário) grosseiro e agressivo. Definitivamente, as tais redes sociais não são um espaço acolhedor para a discussão. Isso acontece porque, em geral, as pessoas querem ler e ouvir somente aquilo que seja assemelhado a seus ídolos da tribo ou a seus ídolos da caverna. É como escreve Bacon no excerto acima: "o intelecto humano, quando assente em uma convicção (ou por já bem aceita e acreditada ou porque o agrada), tudo arrasta para seu apoio e acordo". O usuário habitual do Facebook, por exemplo, não costuma observar a "força das instâncias contrárias". O que importa, neste campo virtual, é expor (e, em muitos casos, impor) seu próprio ponto de vista, mesmo que o conjunto contrário de opiniões e fatos "pareça mais firme e aceitável". Só interessam os "eventos afirmativos", ou seja, aqueles que reiteram e reforçam nossas visões de mundo, ideologias e (pre)conceitos, "pois o homem se inclina a ter por verdade o que prefere" (aproveitando uma frase do trecho colocado como epígrafe nesta postagem).
Esse tipo de utilização das ditas redes sociais me faz ficar sempre com um pé atrás quando vago por tais espaços.
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* BACON, Francis. Novum Organum ou Verdadeiras indicações acerca da interpretação da natureza. 2 ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979 [Tradução e notas de José Aluysio Reis de Andrade] (Coleção Os pensadores)
** PARANHOS, Flávio. Pra que serve a Filosofia?. Filosofia Ciência e Vida, São Paulo, Ano VIII, n. 100, nov. 2014. p. 32-34
BG de Hoje
"Então me diz qual é a graça/de já saber o fim da estrada/quando se parte rumo ao nada?". Gosto dessa pergunta presente na bela canção A seta e o alvo, de Paulinho MOSKA, embora minha resposta, de niilista incorrigível, seja com outra questão: e qual a graça de não saber? Em ambos os casos, não há nada a celebrar, penso eu...