quarta-feira, 29 de abril de 2015

"Uma forma de insanidade socialmente aceitável"


Duas narrativas cinematográficas põem fim a essa breve discussão sobre histórias de amor esboçada nas últimas semanas. NOTA: Esteja o(a) eventual leitor(a) ciente de que o conteúdo dessa postagem é SPOILER.

Convém dizer que o primeiro filme observado, Interestelar (Interestellar - direção de Christopher Nolan, 2014) não descreve um relacionamento protagonizado por um casal (a forma mais usual de se conduzir uma história de amor). Nem por isso, contudo, deixa de explorar o decantado sentimento, sobretudo na seguinte fala da personagem Amelia Brand (interpretada por Anne Hathaway):

" O amor não é algo que inventamos. É perceptível, poderoso. Precisa significar algo [...]. Talvez signifique algo mais que ainda não  podemos compreender. Talvez seja alguma evidência ou artefato de dimensão superior que não notamos conscientemente. Estou atraída por alguém do outro lado do universo que não vejo há uma década, que deve estar morto. O amor é a única coisa capaz de transcender as dimensões do tempo e do espaço. Talvez devêssemos confiar nisso, ainda que não compreendamos".

A personagem, uma cientista (bioquímica, acho) altamente qualificada, faz essa peroração no momento em que ela e seus companheiros de espaçonave precisam decidir qual destino dar à missão cujo objetivo é - nada mais, nada menos - garantir a sobrevivência da humanidade.

Devo assinalar que esse filme não mantém o elevado padrão de trabalhos anteriores de Christopher Nolan (todos em parceria com o irmão roteirista Jonathan). Está bem abaixo, por exemplo, de A origem (Inception, 2010) e ainda mais inferior ao sensacional Amnésia (Memento, 2000). Em comum entre essas produções estão as reviravoltas concernentes à questão do tempo e à noção de realidade. Interestelar, todavia, me desagrada particularmente por causa de um clichê hollywoodiano insuportável. A catástrofe ou o cataclismo afetarão um contingente enorme de pessoas (no caso desse filme, toda a espécie humana), mas a salvação geral tem que passar, inevitavelmente, pela resolução de um prosaico drama familiar (a mágoa de uma filha em relação ao pai, nesse caso). Os únicos personagens em Interestelar que manifestam preocupação para além do limitado círculo da afeição doméstica são representados de forma negativa*, sendo que o Dr. Mann (interpretado por Matt Damon, numa aparição curta) é um canalha de marca maior.

Voltemos, porém, à fala de Amelia Brand. Ao dizer que "o amor precisa significar algo", ela vê uma condição necessária onde só há o seu desejo pessoal. Uma cientista de alto nível não raciocinaria assim. O pequeno discurso é inverossímil (não o seria, porém, caso fosse dito por um outro personagem, com um desenvolvimento intelectual inferior, sei lá). Mas isso pouco importa porque, no enredo do filme, é a Dr. Brand quem tem razão e durma-se com um barulho desses... E, cá entre nós, a frase "O amor é a única coisa capaz de transcender as dimensões do tempo e do espaço" é de uma pieguice sem tamanho. Pra não dizer que tudo é ruim em Interestelar, achei formidáveis os robôs TARS e CASE.


O segundo filme observado, Ela (Her - direção de Spike Jonze, 2013) é uma joia. Love story futurística, narra a ligação amorosa surgida entre um homem solitário (Joaquin Phoenix) e um assistente virtual/sistema operacional de computador (voz de Scarlett Johansson). Ela permite todo tipo de abordagem crítica direcionada para a análise das relações interpessoais modificadas pelo advento das novíssimas tecnologias de informação e comunicação, assim como promove uma reflexão sobre os processos de sociabilidade contemporânea. Mas esse não é meu interesse agora. Quero destacar outros dois pontos.

Samantha (o assistente virtual/sistema operacional) é a quintessência das formas de AI (artificial intelligence). É completamente autônoma, desde o momento em que começa a funcionar (é ela própria quem determina seu nome). Graças à imensa memória de máquina e a gigantesca capacidade de processamento de dados, Samantha, muda para outro estágio, digamos, existencial, ao mesmo tempo em que experimenta os sentimentos e as contradições humanas. E pode-se especular se sua mudança - como consciência - seria possível sem sua concomitante humanização. Seja o que for, sua evolução implica em ir embora, deixar inclusive Theodore, a quem amava. E este é um elemento primoroso desse filme: lembrar que os indivíduos não devem perder sua autonomia, mesmo se emaranhados numa paixão desmedida (caso isso exista). Há um diálogo bastante revelador do que estou falando. Theodore, em certo momento, não consegue encontrar Samantha. Após restabelecer contato, ele descobre estar sendo "traído". Segue o diálogo:

"- Achei que fosse minha. 
- Eu continuo sendo sua. Mas com o tempo, passei a ser muitas outras coisas também. É inevitável [na verdade, em inglês, o que ela diz é "I can't stop it" e não "It's inevitable"]. 
- Como assim, é inevitável? 
- Isso também me angustia. Não sei o que dizer [Ou seja, sua mudança de consciência a conduzirá a essa situação]".

Logo depois, no mesmo diálogo, o confuso protagonista diz: "Você é minha ou não é minha". Samantha, corretamente, declara: "Não, Theodore. Eu sou sua e não sou sua". O amor muitas vezes está ligado à ideia de posse egoística: Theodore ainda não consegue superar isso. Samantha, por sua vez, proclama sua autonomia, sua independência como individualidade.

Por fim, o título desta postagem foi retirado da fala da personagem Amy (interpretada por Amy Adams), melhor (e talvez única) amiga do protagonista. Em certo momento em que ela tenta definir o que é apaixonar-se, diz se tratar de "uma forma de insanidade socialmente aceitável"

Eu não poderia achar definição melhor.

* John Brand (interpretado por Michael Caine), o físico que coordena a missão espacial e também o formulador da teoria que pode ajudar a salvar as pessoas, fica marcado, no momento de sua morte, com a pecha de mentiroso. É mole?

BG de Hoje

No final dos nos 1990, MOBY conseguiu converter a música eletrônica (que acho muito enjoada) em um espaço de criatividade. É o caso dessa hipnótica Honey, que vai se "cobrindo de camadas" sonoras a cada momento.