quinta-feira, 9 de abril de 2015

Sobre Americanah e sobre histórias de amor


Num salão de beleza, Ifemelu - a protagonista do romance Americanah* - é interpelada por uma outra cliente a respeito do livro que tinha nas mãos. A moça faz uma indagação trivial: o livro é sobre o quê? "Por que as pessoas perguntavam ' É sobre o quê?, como se um romance só pudesse ser sobre uma coisa? Ifemelu não gostava da pergunta [...]", nos diz a voz que conduz a narrativa.

Talvez a autora de Americanah, a nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, estivesse, nesse trecho de seu livro, expondo um ponto de vista pessoal por intermédio da personagem. Digo isso porque, na famosa conferência da escritora para o TED há alguns anos (disponível na íntegra aqui), na qual ela alertava para o perigo de uma história única, Chimamanda defendera que "Histórias importam. Muitas histórias importam". Ou seja, a pluralidade das narrativas é essencial. E aqueles que se propõem a narrar não devem se prender  a um só tema, a uma só questão, sob pena de, com a abordagem reducionista, perpetuarem estereótipos.

A instável situação política da Nigéria na década de 1990; às constantes greves nas universidades do país; as agruras experimentadas pelos imigrantes africanos nos EUA e na Inglaterra; o racismo e o sexismo, tanto velados quanto escancarados, a envenenar as relações sociais, a eleição de Barack Obama - tudo isso (e mais um pouco) pode ser encontrado em Americanah. O grande número de personagens secundários proporciona à autora a abordagem de diferentes questões sem comprometer a fluidez narrativa do romance. Outro recurso valioso é a reprodução de algumas postagens do (fictício) blog Raceteenth, produzido pela personagem central do livro.

Mas Americanah é, principalmente, uma grande história de amor, contando o encontro-desencontro-reencontro de Ifemelu e Obinze: uma história de amor vertebrada por análise política, crítica social e, muitas vezes, bom humor. Curiosamente, a propósito, ficamos sabendo na primeira parte do livro que a então adolescente Ifemelu "achava bobos aqueles romances água com açúcar que são vendidos nas bancas de jornal", mas ao dançar com Obinze, logo após conhecê-lo, percebe, "com susto, que havia um traço de realidade nesses romances". Importante salientar que o trabalho de Chimamanda está anos-luz de distância das historietas de amor popularescas. Deve ser por isso que gostei tanto dele, apesar de geralmente depreciar livros cujo tema central seja o amor (assunto para a próxima postagem).

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Antes de terminar, gostaria de discutir uma passagem do livro apresentado.

Em certo momento da narrativa, Ifemelu, mais adulta e melhor adaptada aos EUA (para onde migrou), escreve em seu blog:

"Sabe qual é a solução mais simples para o problema da raça nos Estados Unidos? O amor romântico. Não a amizade. Não o tipo de amor tranquilo e superficial cujo objetivo é manter as duas pessoas confortáveis. Mas o amor romântico profundo e real, do tipo que retorce e estica você e faz que respire através das narinas da pessoa que ama. E como esse tipo de amor romântico profundo e real é tão raro e como a sociedade americana é feita de modo a torná-lo ainda mais raro entre um negro americano e um branco americano, o problema da raça nos Estados Unidos nunca vai ser resolvido".

Se aplicarmos a análise também à sociedade brasileira, penso haver, a partir desse pequeno (mas significativo) trecho, três pontos que nos conduzem a uma reflexão mais ampla:

1) Para compreender com a intensidade necessária os efeitos do racismo, seria preciso desenvolver uma empatia tal que levasse o sujeito branco a conseguir respirar "através da narinas" do outro sujeito - negro - que sofre esses efeitos

2) A autora admite que o "amor romântico profundo e real" - a modalidade mais intensa da empatia acima mencionada - é deveras incomum. É o caso de perguntar: não seria ele somente verificável nas narrativas ficcionais?

3) A mais poderosa forma de racismo - o racismo institucionalizado na publicidade, no mundo corporativo e do trabalho, na esfera acadêmica, entre outros espaços - não favorece a sustentação de um ambiente sociocultural em que a empatia de que estamos falando possa se manifestar.

* ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Americanah. São Paulo: Companhia das Letras, 2014 [ Tradução de Julia Romeu]

BG de Hoje

O rap não me atrai muito. Só tenho um conhecimento superficial do gênero. Muito superficial, aliás. Outro dia, porém, assistindo ao programa Manos & Minas, da TV Cultura, vi EMICIDA (acompanhado por uma banda competente) interpretar algumas de suas composições. Entre essas, Noiz, com sua levada acentuadamente roqueira. Gostei. OBS: Ao final do vídeo, participação da poeta e atriz Elisa Lucinda.