"Por outras palavras, é no sentido da complicação filosófica que se desenvolvem verdadeiramente os valores racionalistas [...] A razão não é de forma alguma uma faculdade de simplificação. É uma faculdade que se esclarece enriquecendo-se".
Gaston Bachelard
Dia desses estava lendo o pequeno tratado A filosofia do não*, publicado por Gaston Bachelard em 1940, no qual o autor expõe sua concepção de "filosofia do conhecimento científico como uma filosofia aberta, como a consciência de um espírito que se funda trabalhando sobre o desconhecido, procurando no real aquilo que contradiz conhecimentos anteriores".
Essa forma de filosofar "dispersa" (é Bachelard quem assim a caracteriza, em oposição a uma forma sistemática), apesar de se dizer do não, não é "uma atitude de recusa" e sim "de conciliação". Basicamente, o filósofo francês propõe um modo de analisar "a prodigiosa complexidade do pensamento científico moderno" - sobretudo na Física - sem se amarrar a só um dos polos tradicionais da epistemologia da ciência; como ele próprio escreve,
"o empirismo precisa ser compreendido; o racionalismo precisa ser aplicado. Um empirismo sem leis claras, sem leis coordenadas, sem leis dedutivas não pode ser pensado nem ensinado; um racionalismo sem provas palpáveis, sem aplicação à realidade imediata não pode convencer plenamente".
Foi, entretanto, uma passagem de importância secundária do tratado que me interessa neste momento.
Começa com a exemplificação dada por Gaston Bachelard daquilo que ele chama "conduta realista". Nós "encontramos naturalmente inúmeros exemplos cada vez mais surpreendentes no nosso tempo em que a máquina mais complicada é governada simplesmente, com um conjunto de conceitos empíricos racionalmente mal concebidos e mal articulados, mas reunidos de uma forma pragmaticamente segura"
Difícil não pensar nos usos que fazemos de diversos aparelhos disponíveis hoje em dia (celular, microcomputadores, etc.) cujo funcionamento interno - e nem me atrevo a falar dos princípios científicos que possibilitaram a existência deles - desconhecemos por completo, não obstante os utilizemos sem maiores problemas. Só que essas "condutas realistas" não se resumem à manipulação de equipamentos. E mesmo os cientistas (e os epistemólogos) não as abandonam. Voltemos ao filósofo francês:
Extraio alguns pontos de tudo o que foi exposto:
a) Vivemos a maior parte do tempo imersos no senso comum (componente do que Bachelard chamaria de realismo ingênuo**). E, acredito, isso até que não é ruim. Se nos detivéssemos para submeter cada gesto, cada ação ao escrutínio racionalista é provável que deixássemos mesmo de agir, ou demoraríamos tanto tempo para tomar a decisão que ela não faria mais sentido na prática.
b) Viver submergido no realismo ingênuo/senso comum é apreender a realidade pelo que esta apresenta de imediato a nossas percepções e julgamentos. Aceitamos os fenômenos e os fatos do mundo sem problematizá-los; afinal, por que seriam problema? Não me refiro aqui aos inconvenientes ou infortúnios que acometem os indivíduos em particular; refiro-me, por exemplo, à aceitação sem questionamentos da organização socioeconômica geral da sociedade***.
c) Por isso o exercício da razão**** - e não apenas ser racionalista - é quase sempre desconfortável. Ele nos faz duvidar ou suspeitar da certeza consoladora proporcionada pela "conduta realista". Lembro a belíssima frase de Deleuze: "A filosofia, a ciência e a arte querem que rasguemos o firmamento e mergulhemos no caos". Mesmo se considerarmos a arte como o empreendimento que menos se apóia na razão, entre os três empreendimentos humanos mencionados, podemos dizer que eles nos desconfortam por fugir das "condutas realistas". E acredito que isso também não é ruim, apesar de só acontecer em pouquíssimos momentos de nossas vidas.
Começa com a exemplificação dada por Gaston Bachelard daquilo que ele chama "conduta realista". Nós "encontramos naturalmente inúmeros exemplos cada vez mais surpreendentes no nosso tempo em que a máquina mais complicada é governada simplesmente, com um conjunto de conceitos empíricos racionalmente mal concebidos e mal articulados, mas reunidos de uma forma pragmaticamente segura"
Difícil não pensar nos usos que fazemos de diversos aparelhos disponíveis hoje em dia (celular, microcomputadores, etc.) cujo funcionamento interno - e nem me atrevo a falar dos princípios científicos que possibilitaram a existência deles - desconhecemos por completo, não obstante os utilizemos sem maiores problemas. Só que essas "condutas realistas" não se resumem à manipulação de equipamentos. E mesmo os cientistas (e os epistemólogos) não as abandonam. Voltemos ao filósofo francês:
"Estas condutas realistas reinstalam-se porque o teórico racionalista tem necessidade de ser compreendido por simples experimentadores, porque ele quer falar mais depressa regressando consequentemente às origens animistas da linguagem, porque ele não teme o perigo de pensar simplificando, porque na sua vida comum ele é efetivamente realista. De forma que os valores racionais são tardios, efêmeros, raros - precários como todos os valores elevados [...] Também no reino do espírito o joio estraga o trigo, o realismo leva a melhor sobre o racionalismo"
Extraio alguns pontos de tudo o que foi exposto:
a) Vivemos a maior parte do tempo imersos no senso comum (componente do que Bachelard chamaria de realismo ingênuo**). E, acredito, isso até que não é ruim. Se nos detivéssemos para submeter cada gesto, cada ação ao escrutínio racionalista é provável que deixássemos mesmo de agir, ou demoraríamos tanto tempo para tomar a decisão que ela não faria mais sentido na prática.
b) Viver submergido no realismo ingênuo/senso comum é apreender a realidade pelo que esta apresenta de imediato a nossas percepções e julgamentos. Aceitamos os fenômenos e os fatos do mundo sem problematizá-los; afinal, por que seriam problema? Não me refiro aqui aos inconvenientes ou infortúnios que acometem os indivíduos em particular; refiro-me, por exemplo, à aceitação sem questionamentos da organização socioeconômica geral da sociedade***.
c) Por isso o exercício da razão**** - e não apenas ser racionalista - é quase sempre desconfortável. Ele nos faz duvidar ou suspeitar da certeza consoladora proporcionada pela "conduta realista". Lembro a belíssima frase de Deleuze: "A filosofia, a ciência e a arte querem que rasguemos o firmamento e mergulhemos no caos". Mesmo se considerarmos a arte como o empreendimento que menos se apóia na razão, entre os três empreendimentos humanos mencionados, podemos dizer que eles nos desconfortam por fugir das "condutas realistas". E acredito que isso também não é ruim, apesar de só acontecer em pouquíssimos momentos de nossas vidas.
__________
* BACHELARD, Gaston. A filosofia do não. In: ___________. A filosofia do não; O novo espírito científico; A poética do espaço. São Paulo: Abril Cultural, 1978. p. 1-87 - Coleção Os pensadores [tradução de Joaquim José Moura Ramos]
** Essa extrapolação é minha, pois, no trabalho citado, o filósofo não menciona o termo e nem trata do senso comum.
*** Esse exemplo é apenas para sair dos fenômenos tipicamente investigados pelas ciências naturais, nos quais Bachelard se concentra.
**** Mas Bachelard procura precisar o que está chamando de razão; ao final de A filosofia do não, ele é categórico: "[...] a razão deve obedecer à ciência. A geometria, a física, a aritmética são ciências; a doutrina de uma razão absoluta e imutável é apenas uma filosofia. É uma filosofia caduca".
*** Esse exemplo é apenas para sair dos fenômenos tipicamente investigados pelas ciências naturais, nos quais Bachelard se concentra.
**** Mas Bachelard procura precisar o que está chamando de razão; ao final de A filosofia do não, ele é categórico: "[...] a razão deve obedecer à ciência. A geometria, a física, a aritmética são ciências; a doutrina de uma razão absoluta e imutável é apenas uma filosofia. É uma filosofia caduca".
BG de Hoje
É difícil não relacionar GILBERTO GIL entre os maiores compositores da música brasileira. E o que chama a atenção é sua capacidade de se dar bem em ritmos variados: afoxé, samba, baião, indo até o funk e o rock. E, claro, o reggae. Como é o caso dessa maravilhosa canção - Extra - que ouço, sempre, prazerosamente. Ah, e o vídeo abaixo ainda é iniciado com o solo do ótimo baixista Arthur Maia.