" 'Aproveitar bem o tempo' é um dos imperativos da vida contemporânea, que corresponde a uma série de possibilidades que de fato se abriram para o desfrute da vida privada nas sociedades liberais. O indivíduo, sob o capitalismo liberal, dispõe de uma enorme variedade de escolhas quanto ao desfrute de seu tempo livre, não mais regulado pelos ritos e pelas proibições da vida religiosa nem limitado pelas horas de luz do dia ou pelo maior ou menor rigor das estações. Por outro lado, a marcação que caracteriza o tempo do trabalho (de forma desproporcional à oferta efetiva de oportunidades de trabalho) invade cada vez mais a experiência da temporalidade, mesmo nas horas ditas de lazer. Não me refiro ao ócio, essa forma de passar o tempo tão desmoralizada em nossos dias, mas às atividades de lazer, marcadas pela compulsão incansável de produzir resultados, comprovações, efeitos de diversão, que tornam a experiência do tempo de lazer tão cansativa e vazia quanto a do tempo da produção. Nada causa tanto escândalo, em nosso tempo, quanto o tempo vazio. É preciso 'aproveitar' o tempo, fazer render a vida, sem preguiça e sem descanso. A esse imperativo, como veremos, o depressivo resiste com sua lentidão, seu mergulho angustiado e angustiante em um tempo estagnado, que lhe parece não passar. Ainda que eles não saibam disso, a inadaptação dos depressivos em relação às formas contemporâneas de aproveitar o tempo pode ser reveladora da memória recalcada de outra temporalidade, própria do 'tempo em que o tempo não contava' ".*
* KEHL, Maria Rita. O tempo e o cão: a atualidade das depressões. São Paulo: Boitempo, 2009. p. 124-125