Kidults.
A primeira vez que vi essa palavra foi na capa de uma edição do (saudoso) caderno Mais! da Folha de S. Paulo, décadas atrás. Não cheguei a ler o texto principal, mas a perspectiva era crítica, acho eu, pelo que pude perceber no lead do artigo e nas ilustrações, demonstrando preocupação com o fenômeno dos adultos-crianças.
Corta pra 2025. Entro no Google e a visão geral da IA do buscador me dá o seguinte resumo:
" 'Kidults' é um termo usado para descrever adultos cujos interesses ou atividades são frequentemente associados à infância, como colecionar brinquedos, jogar videogames ou assistir a desenhos animados. Esse fenômeno tem crescido e impactado diversos setores, como o mercado de brinquedos e jogos.
O que são Kidults?
São adultos que mantêm interesses e atividades tradicionalmente consideradas infantis, como colecionar brinquedos, jogar videogames, assistir a desenhos animados ou filmes de super-heróis, e participar de eventos geek e de cultura pop.
A nostalgia desempenha um papel importante, com muitos kidults buscando reviver momentos felizes da infância através de itens colecionáveis ou atividades relacionadas.
O termo pode ser visto de duas formas: algumas fontes o usam para descrever adultos que agem de maneira infantil, evitando responsabilidades, enquanto outras o usam para descrever adultos que buscam ativamente manter a alegria e o lado lúdico da infância, usando esses interesses como forma de escapismo ou para trazer mais diversão para suas vidas".
Na sequência, menciona como esse comportamento influencia o consumo de determinados produtos.
Algum tempo atrás, assisti a esta esquete do Saturday Night Live que me fez rir um bocado:
Tudo fica mais engraçado quando se lê os comentários do vídeo no Youtube, com um monte de perfis choramingando que a franquia Star Wars agora é woke (e por isso ruim, na visão do comentarista), reclamando que a venda de brinquedos desse tipo caiu porque o verdadeiro fã está sendo desrespeitado pela Disney, etc., demonstrando que os adultos-crianças ficam nervosinhos com muita facilidade...
Fiquei sabendo que a empresa chinesa Pop Mart, fabricante dos bonecos Labubu, viu seus lucros subirem cerca de 200% de um ano para o outro. Tal como os bebês reborn (e assim foi anteriormente com os Funko Pops), uma porcentagem significativa do público interessado nos monstrinhos é de adultos.
Sobre esse último ponto: Bebês reborn, Labubus, Funko Pops são (ou foram) trends, usando a terminologia atual calcada nas mídias sociais. Quem não quer ficar de fora (e tem dinheiro pra gastar) segue. Um comportamento assim não seria possível sem o estabelecimento da sociedade de massa.
Imersos na sociedade de massa (ou de massas) há tanto tempo, raramente tomamos real consciência das implicações psicossociais negativas desse tipo de existência transcorrida em meio a enormes agrupamentos de pessoas.
Nesta postagem, dando sequência à anterior, continuarei a tratar do livro Admirável mundo novo, um texto que também buscou refletir sobre a sociedade de massa (entre outras coisas), concentrando-me numa das disfunções relacionadas a esse fenômeno: o consumismo.
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No capítulo dezessete de Admirável mundo novo, Mustafá Mond, um dos poderosos Administradores do Estado Mundial (e meu personagem predileto na narrativa), diz o seguinte ¹: "Mas a civilização industrial somente é possível quando não há desprendimento. É necessário o gozo até os limites impostos pela higiene e pelas leis econômicas. Sem isso, as rodas cessariam de girar".
Convém dizer que os principais argumentos do livro (afinal, estamos falando de um romance com intento filosófico) estão mais claramente expostos no antepenúltimo e no penúltimo capítulos, por meio do sensacional diálogo entre John, o Selvagem, e Mustafá Mond. John repele um mundo que interdita as emoções autênticas, não deixa espaço para a liberdade individual, sufoca as expressões artísticas digamos "elevadas" (nesse caso, representadas pela obra de Shakespeare) e prescinde das religiões tais como as conhecemos. Mond, por sua vez, vai mostrar que não se precisa de nada disso para atingir os objetivos do Estado Mundial: a manutenção de um corpo social estável e feliz. Portanto, Deus, arte, indivíduos que pensam por si mesmos e emoções genuínas são coisas desnecessárias.
Pela maneira como o romance é construído, percebe-se que o narrador tenciona levar o leitor a endossar a exaltação do Selvagem e a se distanciar da fleuma utilitarista do Administrador. Aceitarei, por ora, esse arranjo. Voltemos, porém, à declaração de Mond: será mesmo que as engrenagens da civilização industrial deixariam de funcionar se a abnegação (uma outra palavra para desprendimento) fosse amplamente disseminada?
Diversas foram as maneiras encontradas pelo Estado Mundial para assegurar que todos amem a servidão. Uma delas é criar mecanismos para diminuir o intervalo de tempo entre "a consciência de um desejo e a sua satisfação", como diz o Administrador a um grupo de aprendizes no capítulo três. Ele está se referindo sobretudo às relações sexuais (com indisfarçável moralismo, as condutas sexuais chamadas de promíscuas no livro são a norma naquele futuro imaginado), mas o Estado Mundial também se ancora num modelo de vida orientado para o consumo permanente: em complementariedade, a divisão por castas e o condicionamento psicológico fazem com que cada indivíduo naquela sociedade aceite o seu quinhão sem reclamar.
Pensemos agora no sistema econômico preponderante na atualidade. Não é difícil constatar o quanto nossa capacidade de gastar ou de adquirir produtos é uma das principais definidoras de nosso estar no mundo. Se há algo que irmana as pessoas no planeta é o fato de praticamente todos sermos consumidores, variando "apenas" o poder aquisitivo dos indivíduos. Muitos de nós valem-se do consumo como compensação emocional. Noutros casos, consumir torna-se uma meta em si mesma. Ter ou não acesso (pago) a determinados serviços, marcas, conteúdos, mercadorias e lifestyles determina nosso lugar social. Chegamos talvez a um ponto em que não sabemos mais como - ou se queremos - deixar de ser tais criaturinhas consumidoras. Estamos atolados nessa ordem socioeconômica (seria exagero dizer nessa servidão?) e não se vê muitos esforços significativos para escaparmos dela. Como agravante, adultos infantilizados, por vezes resignada, noutras vezes prazerosamente engajados (como os colecionadores de brinquedo) nas ininterruptas cadeias de consumo são uma realidade já há bastante tempo. As rodas não param de girar. A diferença para o Estado Mundial é que não há castas e não sofremos o condicionamento psicológico mencionado no livro.
Hmm... Não falo das castas, mas há muito a se dizer sobre o condicionamento psicológico hoje em dia.
Huxley compôs seu texto no período entreguerras. A propaganda (em uma de suas acepções mais antigas, ou seja, o uso de técnicas de comunicação voltadas para a inculcar mensagens político-ideológicas) corria solta nessa época. Embora a hipnopedia não tenha se convertido em realidade e o poder do condicionamento pavloviano seja superdimensionado em Admirável mundo novo, o autor, contudo, não estava errado em indicar o quanto os seres humanos poderiam ser manipulados psicologicamente para agirem de acordo com propósitos determinados. Atualmente, sabe-se que cientistas e acadêmicos "emprestam" seus conhecimentos para grandes empresas, entre elas as chamadas Big Techs, com intuito de garantir que usuários/clientes destas ajam de tal ou qual modo, prevendo reações e estimulando atitudes específicas (o caso do Laboratório de Tecnologia Persuasiva de Stanford talvez seja o mais conhecido). Além disso, a ubíqua publicidade e o marketing contemporâneos são bastante sofisticados e eficientes quando se trata de gerar convencimento e aceitação do status quo, sem falar que a propaganda passou a ser veiculada de diferentes maneiras, diluída noutras formas de narrativa, sendo uma delas o cinema (a poderosa indústria hollywoodiana faz o que sempre fez há quase um século e não me deixa mentir). NOTA: Falei em adultos infantilizados e acaba de me ocorrer o seguinte: já reparou como as plataformas digitais e empresas de mídia - hoje, transnacionais - estão sempre tentando nos empurrar entretenimento goela abaixo? Não menos importante, a educação formal e o trabalho, incapazes de promover real emancipação, também têm sua parte no "adestramento".
O panorama imaginado pelo escritor britânico, isto é, a consolidação de um gigantesco Estado dominador supranacional, olhando para o hoje, não se verifica. Pelo contrário, o imenso poder do capital financeiro em poucas mãos privadas e as megacorporações é que dão as cartas na maior parte do tempo. Entretanto, estamos apenas no ano 117 d. F (depois de Ford). O que poderá acontecer nos próximos 500 anos, uma vez que a história contada no romance se passa em 632 d. F (isto é, no ano 2540 do calendário gregoriano)?
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Gostaria de retomar um ponto mencionado, mas não desenvolvido acima. Afirmei que o leitor do Admirável mundo novo, graças à intercessão do narrador, inclina-se para o lado de John, o Selvagem, e não para o de Mustafá Mond. Em minhas últimas leituras, devo admitir, porém, que o ponto de vista do Administrador Mundial me parece cada vez menos estapafúrdio.
Vou reproduzir abaixo um trecho de que gosto muito:
"- [Diz John a Mustafá] Mas eu gosto dos inconvenientes.- Nós, não. Preferimos fazer as coisas confortavelmente.- Mas eu não quero conforto. Quero Deus, quero a poesia, quero o perigo autêntico, quero a liberdade, quero a bondade. Quero o pecado.- Em suma - disse Mustafá Mond -, o senhor reclama o direito de ser infeliz.- Pois bem, seja - retrucou o Selvagem em tom de desafio. - Eu reclamo o direito de ser infeliz.- Sem falar no direito de ficar velho, feio e impotente; no direito de ter sífilis e câncer; no direito de não ter quase nada que comer; no direito de ter piolhos; no direito de viver com a apreensão constante do que poderá acontecer amanhã; no direito de contrair a febre tifoide. no direito de ser torturado por dores indizíveis de toda espécie.Houve um longo silêncio.- Eu os reclamo todos - disse finalmente o Selvagem.Mustafá Mond deu de ombros.- À vontade - respondeu"
Nesse trecho, sempre me lembro que o Selvagem, mesmo rejeitando a conformação do Estado Mundial, não foi preso ou executado. Simplesmente escolheu viver como uma espécie de eremita num lugar desabitado (não muito distante de Londres, aliás), o que lhe foi permitido. Mesmo Bernard Marx e Helmholtz Watson, tidos como heréticos dissidentes, foram apenas banidos para locais onde encontrariam pessoas que pensavam como eles.
Admirável mundo novo descreve uma comunidade global em que praticamente tudo é controlado. Sem dúvida, um regime totalitário. Brutal, contudo? Não estou certo.
Isso vai soar inadvertido, eu sei, mas, pessoalmente, acho que a tão propalada liberdade individual perde muito do seu valor quando as pessoas se encontram cercadas por insegurança, insalubridade e miséria. Quer dizer então que valeria a pena sacrificar a liberdade em troca da estabilidade social? Se for para que o maior número possível de pessoas tenha acesso a uma vida mais igualitária e com menos privações materiais, talvez sim. NOTA: Apesar de repetir que todos os seres humanos são física e quimicamente iguais e ter no seu lema a ideia de uma concentração harmônica de pessoas, o Estado Mundial não é igualitário, uma vez que necessita das castas para existir. Lamento revelar-me menos humanista e mais antidemocrático do que costumo me mostrar em várias das postagens já publicadas aqui, mas creio que seria pior fugir do questionamento do que cair no conceito do(a) eventual leitor(a).
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¹HUXLEY, Aldous. Admirável mundo novo. 22 ed. São Paulo: Globo, 2014. [Tradução de Lino Vallandro e Vidal Serrano]. Todas as passagens do livro citadas nesta postagem foram extraídas dessa tradução.
BG de Hoje
Billy Gorgan disse, bastante tempo depois do lançamento do álbum Siamese Dream (1993), que a canção Soma foi composta após o término de uma relação amorosa particularmente importante para ele. O musicista também confirmou que o miraculoso remédio do Admirável mundo novo inspirou o título (embora isso não esteja tão evidente na letra). De todo modo, achei bacana colocar essa faixa dos SMASHING PUMPKINS no BG de hoje, extraída de um dos discos mais marcantes dos anos 1990.

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