terça-feira, 19 de novembro de 2019

Falou e disse...

"O cabelo, um dos sinais diacríticos que faz parte da diversidade do gênero humano, foi capturado pela cultura e, a partir daí, passou a receber diferentes significados e sentidos diversos. No contexto da África pré-colonial, ele era visto pelas diversas etnias como símbolo de status, de realeza e de poder. No contexto da invasão colonial e da escravidão, passa a ser visto como marca de inferioridade racial, como uma entre as muitas justificativas para se manter o racismo e o mito da inferioridade do negro.

O cabelo do negro pode ser visto como símbolo de beleza e, incoerentemente, de inferioridade racial. As tensões e os desencontros entre essas representações refletem a presença de relações sociais autoritárias, hierárquicas e conflituosas entre negros e brancos ao longo da História. Esse processo não resulta somente em introjeção do racismo e do mito da inferioridade pelo negro e pela negra. Contraditoriamente, ele os impulsiona a diferentes tipos de reação, expressos na ressignificação do cabelo crespo, transformando-o em símbolo de afirmação racial e estética". *

* GOMES, Nilma Lino. Sem perder a raiz: corpo e cabelo como símbolos de identidade negra. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. p. 373

terça-feira, 12 de novembro de 2019

A retórica da inconformidade


Não. Eu não desisti de escrever aqui no Besta Quadrada.

Apenas não estou conseguindo superar a letargia que vem me dominando nos últimos três anos.

Será possível vencê-la nalgum momento? Espero que sim.

Por ora, falemos de dois brevíssimos textos de Luis Fernando Veríssimo.

Não se trata de crônicas bem humoradas, como é do feitio dele, mas de reflexões (em um tom mais severo que o habitual) sobre a noção de justiça no Brasil, desenvolvidas a partir de uma frase do cáustico jornalista norte-americano H. L. Mencken  NOTA: Há, no livro em que esses textos foram publicados ¹, um artigo sensacional de Frei Betto e outro, do antropólogo Luiz Eduardo Soares, sobre os quais já tive vontade de discutir aqui no blog, mas sempre acabo adiando. Quem sabe um dia?

A frase é a seguinte: "A injustiça é relativamente fácil de aturar, é a justiça que fere".

A intenção de Veríssimo é saber se "a experiência brasileira comprovava ou desmentia o paradoxo de Mencken". E ao pensar no Brasil e "nas suas misérias reincidentes", o escritor gaúcho acaba pensando também na "escorregadia palavra 'indignação'".

Escreve ele:

"Somos bons de indignação, somos muito bons na retórica da inconformidade. O movimento abolicionista é um exemplo disto, e uma espécie de protótipo para todos os anos de retórica inútil que viriam depois. Deu belos discursos e até alguns bons poemas, o que não impediu que o Brasil fosse o último país do mundo a abolir a escravatura, ou que o trabalho escravo continuasse aqui até hoje, sob formas mais ou menos disfarçadas".

Veríssimo escreveu isso antes do advento das mídias sociais. Caso o fizesse agora, encontraria milhares de exemplos dessa indignação da-boca-pra-fora, inofensiva e inconsequente.

Sendo "uma emoção, portanto um momento passageiro, mais do que um sentimento" e apenas "uma reação, que é menos do que uma ação e bem menos do que uma convicção", a indignação manifestada por muitos brasileiros - em posts na web, nos cartazes de passeatas meio carnavalescas, nos discursos de lideranças partidárias - nunca resulta em nada mais do que palavrório.

"Sabemos como ninguém" - diz Luis Fernando Veríssimo - "verbalizar nossos problemas e as suas soluções, mas na hora de trocar a eloquência pela prática preferimos ficar no discurso, e a eloquência da acomodação, ou da capitulação, é a mesma da indignação. [...] É, sim, relativamente fácil conviver com a injustiça. No Brasil, não fazemos outra coisa há anos. E sempre pelo método mais simpático, o da desconversa".

A meu ver, é mesmo fácil aturar a injustiça por aqui. Os milhões de miseráveis enquanto bancos batem recordes consecutivos de lucro; a sonegação de impostos amplamente praticada por vários representantes do grande empresariado nacional, muitos deles beneficiados por isenções e outros incentivos fiscais, apesar dos ganhos estratosféricos; os abusos cometidos pelo poder público (sobretudo através da violência das polícias contra a população favelada e periférica, em sua maioria negra); os assassinatos e perseguições que vitimam camponeses e indígenas, levados a cabo por latifundiários e grileiros; a inacessibilidade dos mais pobres ao transporte público eficiente, aos serviços advocatícios, à assistência médica/odontológica adequada, sem opções diversificadas de lazer e de cultura; tudo isso pode provocar aqui e ali uma erupçãozinha verbal indignada, seja através de um pronunciamento no Congresso, uma coluna de jornal, um textão ou um meme no Facebook ou uma hashtag no Twitter. Mas não passa disso.

Nunca partimos, como povo, para enfrentar concretamente tantas situações e formas de injustiça, nunca partimos para a luta no real sentido da palavra (ao ver os eventos recentes ocorridos em Hong Kong e no Chile, pensei comigo mesmo: "Uma resistência e uma força reivindicatória desse tipo jamais  ocorreriam no Brasil...").

Escrevendo esta postagem, me lembrei de um artigo do Vladimir Safatle publicado no jornal El País em setembro passado.O professor de Filosofia da USP argumenta que uma das ilusões das quais precisamos nos livrar "é aquela que leva alguns a acreditar que nosso momento histórico pede mais diálogo". Para ele, em muitos casos, "é necessário dar forma à recusa clara em dialogar. Quem dialoga com pessoas que louvam torturadores e assassinos como 'heróis nacionais' não sabe qual o valor das palavras [...] Não é de diálogo que o Brasil precisa. É de ruptura".

Ou seja: chega de tanta falação (ainda que carregada de inconformidade)! Nossas desigualdades e clivagens não vão ser resolvidas na base da conversa. A indignação precisa virar ação.

Voltando à frase de H. L. Mencken, podemos também dizer que a justiça por aqui (e justiça, nesse caso mais restrito, entendida como equivalente à atuação do Poder Judiciário) não fere, a não ser aqueles e aquelas definidos por ela de antemão como alvos a serem atingidos de acordo com interesses inconfessáveis, como pudemos testemunhar no lawfare que culminou na prisão do favorito a vencer a última disputa eleitoral para presidente. Essa mesma justiça  revela uma seletividade racial e de classe abominável, que resulta, por exemplo, nos mais de 230.000 detentos provisórios que aguardam julgamento.

Veríssimo observa que

"alguém já disse que uma condição para que o estado constitucional sobreviva no Brasil é que a Constituição não seja levada muito a sério. Poderia se dizer, com a mesma sabedoria ou cinismo, que uma condição para que a justiça funcione mais ou menos no Brasil é não exigir que ela funcione melhor, mais disposta a contrariar interesses, revolucionar costumes, aplicar a retórica e dar dentes ao discurso. Ou seja, mais disposta a ferir".

Com tantos juízes e promotores julgando-se membros de uma casta superior de indivíduos, desconectados das angústias das classes populares, além de inumeráveis legisladores que combinam venalidade e obscurantismo, é provável que nunca teremos uma justiça com as características descritas acima.


E nós, posicionados no campo progressista, não vamos além da nossa retórica da inconformidade. Até o dia em que seremos totalmente espoliados pelos detentores do capital e massacrados (literalmente) pelas tropas neofacistas proliferantes

¹ VERÍSSIMO, Luis Fernando. O poder do nada. In: VERÍSSIMO, Luis Fernando et al. O desafio ético. Rio de Janeiro: Garamond, 2000. p. 13-30

BG de Hoje

Poucas vezes ouvi uma canção com um trabalho de guitarra tão sensacional como o de Love Spreads, da banda britânica THE STONE ROSES. Tem uma pegada bluesy, quase "ledzeppeliniana" (aliás, no disco do qual ela faz parte - Second Coming, lançado no finalzinho de 1994 -, há outra joia em matéria de guitarra, a faixa Driving South). 

quinta-feira, 29 de agosto de 2019

Falou e disse...

"Não é tarefa simples construir algum grau de entendimento sobre os assuntos humanos. Sob certos aspectos, é mais difícil que nas ciências naturais, onde, se a mãe natureza não nos dá respostas de bandeja, pelo menos não se dá ao trabalho de colocar obstáculos ao entendimento. Nos assuntos humanos, esses obstáculos são a regra. É necessário desmantelar as estruturas de falsificação erguidas pelos sistemas doutrinários, cujos muitos ardis fluem de maneira absolutamente natural dos circuitos onde se concentra o poder". *

* CHOMSKY, Noam. Estados fracassados: o abuso do poder e o ataque à democracia. 2 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2009. p. 120 [Tradução de Pedro Jorgensen Jr.]

terça-feira, 20 de agosto de 2019

Uma narradora sincera


Já disse, em postagens anteriores, que não sou chegado em histórias de amor (tratei um pouco disso aqui e aqui, por exemplo). Mas o que fazer diante de uma narrativa cujo título é tão tentador e propositalmente desleixado como O que deu para fazer em matéria de história de amor?

Cheguei ao livro de maneira fortuita. Estava atrás de um determinado romance de Elvira Vigna (no caso, Como se estivéssemos em palimpsesto de putas) e acabei topando com esse outro numa das bibliotecas públicas que frequento aqui em Belo Horizonte.

São duas histórias paralelas: a do vínculo entre a narradora e Roger e a do vínculo entre Rose e Arno. No seu esforço para recontar/reconstruir o que se passou com o outro par, a narradora (cujo nome jamais é mencionado) talvez consiga entender o rumo do seu próprio caso:

"Há mais nesta história" - diz ela ¹ - "que já não sei mais se é minha, de Roger, ou de Arno e Rose, que invento para ocupar nosso lugar em um passado em que ainda não existíamos - para que assim tenhamos um futuro que ainda não existe e que não sei se vai existir. Ou se quero que exista.

E este a mais, a ser adicionado, dependendo de como, pode fornecer afinal uma explicação - lá desde sempre, e desdenhada".

A narradora e Roger mantém um relacionamento há décadas. E como ela própria observa, "a palavra 'relacionamento' substituindo, aqui como algures, a frase: alguém está me fodendo em mais sentidos do que um". Considero uma das melhores passagens do livro.

É comum hoje em dia ouvirmos frases do tipo: "saí de um relacionamento que durou X meses/anos"; "nosso relacionamento está dando certo" ou "meus relacionamentos costumam terminar rápido". O que se quer dizer, de fato, com isso?

Não se trataria apenas de sexo - embora sexo geralmente seja um componente crucial. Tratar-se-ia, supostamente, de algo mais significativo. Quando alguém usa a palavra relacionamento, quer acrescentar, acho eu, uma ou duas camadas extras de expressividade a noções mais básicas, como a de namoro, ou adoçar termos mais insípidos e formalizados, como união estável ou mesmo casamento. Tudo fazendo parte da (tantas vezes incoercível) necessidade humana de conferir um sentido mais profundo a experiências tantas vezes acidentais e comezinhas (mas a narradora reconhecerá na 3ª e última parte do livro: "somos todos sem sentido algum mesmo, em nossas vidinhas em que nada acontece").

Num momento em que a ideia de amor romântico passa por contestação e recusa, a leitura de O que deu para fazer em matéria de amor é quase obrigatória. Elvira Vigna (falecida em 2017) soube imprimir o tom certo em sua narradora. Ela é crível e franca (o tanto quanto podem ser críveis e francas as criações ficcionais), mesmo que algumas "revelações" só sejam apresentadas ao leitor na terceira e última parte. Sua sinceridade pode ser medida em passagens com esta:

"Há um cachorro amarelo e magro que olha para o lixo e para mim, em tristezas alternadas. Não consegue se decidir de onde haverá mais chance de aparecer algo de bom. Concordo com ele".

Ou nesta outra, sensacional, no penúltimo capítulo do livro:

"Pontos-finais têm sempre este lado, de alívio, mesmo se pontuam o final de algo muito bom. E não foi muito bom.

Ou sou eu. Vai ver sou eu a pessoa dura e fria que enxergo nos outros. Eu, que nunca estou com Roger sem pensar em não estar".

Ainda assim, a narradora admitirá que precisa "de uma história que não tenha acabado". É isso que a faz "ir em frente. Até aparecer outra coisa". Algo que o final aberto da narrativa evidencia.

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¹ VIGNA, Elvira. O que deu para fazer em matéria de história de amor. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

BG de Hoje

Às vezes me pergunto por que o grupo VERUCA SALT não atingiu fama mundial (nem nos EUA a banda de Chicago alcançou grande popularidade). Surgido no esteio da cena grunge, o quarteto tinha uma boa levada pop que combinava com as guitarras pesadas (basta ouvir a canção mais conhecida do grupo, Volcano Girls). Após um período de inatividade, a banda retornou em 2013 e em 2015 lançou o disco Ghost Notes. Uma das faixas acrescentadas a esse álbum é a excelente The Museum Of Broken Relationships, que serve de BG para a postagem de hoje (a propósito, existe de fato um Museu dos Relacionamentos Rompidos, cujas sedes ficam em Los Angeles e Zagreb).

sexta-feira, 26 de julho de 2019

Os medalhões e o "regime debilitante"


Atualmente, fama e popularidade são verdadeiras obsessões para muitos indivíduos, mesmo que seus atos pouco ou nada tenham de brilhantismo e nem sua - discutível - condição de figura pública justifique reconhecimento como "pessoa famosa". O que se quer, a todo custo, é tornar-se uma celebridade ou mesmo um digital influencer. A concorrência, porém, é gigantesca; tenta-se de tudo para ganhar atenção. E dá-lhe publicidade, seja aquela contratada junto a profissionais do ramo, seja aquela realizada pelo próprio aspirante à notoriedade, utilizando os meios de que se disponha.

Se o(a) eventual leitor(a) conhece o conto Teoria do medalhão, de Machado de Assis, há de se lembrar da passagem em que o pai discorre sobre "os benefícios da publicidade" ¹ . Sugere ao filho que é necessário por "o teu nome ante os olhos do mundo" dezenas de vezes, valendo-se do puxa-saquismo ou de "pequenos mimos, confeitos, almofadinhas, cousas miúdas". Há outras opções:

"Os sucessos de certa ordem, embora de pouca monta, podem ser trazidos a lume contanto que ponham em realce a tua pessoa. Explico-me. Se caíres de um carro, sem outro dano, além do susto, é útil mandá-lo dizer aos quatro ventos, não pelo fato em si, que é insignificante, mas pelo efeito de recordar um nome caro às afeições gerais".

Vale mencionar que expediente similar aparece em outro texto machadiano: Quincas Borba. O protagonista do romance, Rubião, acabara de salvar uma criança, quase atropelada por cavalos. Ele, então, despretensiosamente, narra o caso ao amigo Camacho, o qual decide publicar a história em seu jornal. A princípio, Rubião se irrita com a história publicada, mas vendo que a nota lhe trouxe uma ligeira fama, carregada de palavras lisonjeiras, muda de opinião a ponto de "comprar uns tantos exemplares da folha para os amigos de Barbacena".

Fazer-se lembrado é o primeiro mandamento publicitário. No Rio de Janeiro do final do século XIX, isso só podia ocorrer através dos jornalecos impressos que pipocavam aqui e ali. Nos tempos atuais - pode-se dizer um tantinho exageradamente - a publicidade está em todo lugar.

Fama e publicidade produzem distinção, muito embora grande parte de seus agraciados não faça jus a essa proeminência (o que não os impede, claro, de obter as vantagens financeiras frequentemente advindas dessa situação). Mas... e daí?, objeta a patuleia. A idiotice, a frivolidade e a inaptidão de fulano ou sicrana não são problema para nós; o que importa é serem famosos.

Como se pode depreender, a fama injustificada muitas vezes converte-se num recurso eficaz para se dar bem. Não à toa, obtê-la é parte crucial da estratégia recomendada em Teoria do medalhão. Voltemos, pois, ao conto de Machado de Assis.

Ainda que o subtítulo da narrativa (Diálogo) nos faça imaginar interlocutores em pé de igualdade, apenas um deles de fato fala - o pai -, não restando ao outro - Janjão, o filho que acabara de completar 21 anos - muito o que dizer.

Segundo o pai, a vida "é uma enorme loteria; os prêmios são poucos, os malogrados inúmeros, e com os suspiros de uma geração é que se amassam as esperanças de outra. Isto é a vida; não há planger, nem imprecar, mas aceitar as coisas integralmente, com seus ônus e percalços, glórias e desdouros, e ir por diante"

A partir dessa concepção conformista e egocentrada, ele enfileira uma série de recomendações e advertências que, "guardadas as proporções", são tão úteis quanto "o Príncipe, de Machiavelli". Sua intenção é que o filho se torne "grande e ilustre, ou pelo menos notável", e que se levante "acima da obscuridade comum".

Ora, aqui estamos no terreno em que Machado de Assis melhor joga: no desvelamento da mediocridade de nossas elites.

Janjão, aos 21 anos, ao contrário da imensa maioria dos jovens naquela época, possui "algumas apólices, um diploma" e, se desejar, tem "infinitas carreiras" diante de si. Caso não dê certo em nenhuma delas, poder-se-á sempre virar um medalhão, dada a sua condição de privilegiado.

De acordo com o dicionário Houaiss ², há duas acepções de sentido figurado para o termo medalhão: pode denotar um "indivíduo importante; figura de projeção", mas pode ser também o "indivíduo posto em posição de destaque, mas sem mérito para tal". A segunda acepção é a que nos interessa.

Não é preciso demonstrar competência em nada para ser uma medalhão. O importante é ter os contatos certos, encenar os rapapés de praxe e estar em evidência para obter cargos, ocupar postos e ganhar sinecuras. E embora o "ofício" leve tempo para ser aprendido, assim que o indivíduo é alçado a medalhão, entra "na terra prometida":

"Verás cair as muralhas de Jericó ao som das trompas sagradas. Só então poderás dizer que estás fixado. Começa nesse dia a tua fase de ornamento indispensável, de figura obrigada, de rótulo. Acabou-se a necessidade de farejar ocasiões, comissões, irmandades; elas virão ter contigo [...]"

Quantas pessoas não temos visto por aí - na imprensa, na política, no mundo artístico e do entretenimento - sem nenhuma credencial de maior quilate do que o seu status de medalhão?

No conto de Machado de Assis o pai diz ao filho que para entrar nessa "carreira" é preciso "por todo o cuidado nas ideias que haverás de nutrir para uso alheio e próprio", mas que o melhor é "não as ter absolutamente". Ele acredita que o filho pode ir longe pois é "dotado na perfeita inópia mental, conveniente ao uso deste nobre ofício". Para um(a) candidato(a) a medalhão, não é proveitoso fazer uso do pensamento apurado. Fosse assim, ele ou ela nunca transcenderiam "os limites de uma invejável vulgaridade" e assim não conheceriam "os elementos dessa arte difícil de pensar o pensado".

Porém, para que um medalhão chegue , penso não ser suficiente apenas a sua própria "inópia mental". Aqueles que possibilitaram a sua ascensão, bem como lhe abriram o caminho para a glória certamente são tão ou mais imbecis do que o próprio medalhão. E imbecilidade, convenhamos, é o que nunca faltou nessas terras brasileiras (e alhures).

Há uma expressão, no conto do qual estamos falando, de que gosto particularmente. Insistindo que é fundamental asfixiar as ideias (ou seja, reprimir o exercício do pensamento), o pai apregoa "um regime debilitante" (importante frisar que tanto os medalhões quanto os basbaques que os veneram seguem a mesma dieta). As sugestões do personagem para atingir esse fim descrevem, naturalmente, atividades típicas de sua época (como jogar whist, por exemplo). Não é difícil, entretanto, conjecturar sobre as ações que comporiam um tal regime debilitante em nosso tempo. Posso imaginar algo como: recusar-se a ler textos complexos; usar como "fonte de informação confiável" o WhatsApp e posts apócrifos espalhados em mídias sociais; ir ao cinema para assistir coisas como Velozes & Furiosos; repetir a torto e a direito lugares-comuns surrados, muitas vezes tirados de memes da internet, como se fossem a quintessência da sabedoria humana. E por aí vai.

Escapar do regime debilitante não é tão simples quanto se pode supor. Mas caso se deseje fazê-lo, ler Machado de Assis ajuda bastante.
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¹ ASSIS, Machado de. Teoria do medalhão. In:_______________. 50 contos. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 82-90 [seleção, introdução e notas de John Gledson]

² MEDALHÃO. In: DICIONÁRIO Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. p. 1262

BG de Hoje

O rock deixou de ser um gênero com apelo junto ao público adolescente/jovem, o principal consumidor de música pop desde que a indústria do setor se estabeleceu. É ouvido, nos dias de hoje, principalmente por gente que envelheceu ou está envelhecendo. E embora ficar idoso seja uma merda, o mesmo não se aplica a uma forma de arte. Como escreveu Bill Flanagan num ótimo artigo publicado pelo New York Times em 2016, "rock is now where jazz was in the early 1980s. Its form is mostly fixed". Tornou-se um know-how, uma tradição e uma escola musicais. Qualquer artista interessado nesse tipo de som terá que levar em conta a história do gênero, caso queira produzir algo relevante. Um dos grandes nomes do rock atual, JACK WHITE, tem essa postura. Isso se reflete em todos os seus trabalhos, inclusive na sua banda recente, THE RACONTEURS. Confira nesta faixa, Sunday Driver.

 

domingo, 7 de julho de 2019

10 anos de Besta Quadrada. O que há pra dizer?


Blogosfera... Alguém ainda usa essa palavra?

Em 2005, quando inciei minha experiência com blogs (através do extinto Ração das Letras), o termo não só era largamente utilizado, como ainda respondia por boa parte da interação buscada pelos diversos perfis "soltos" na rede, além de representar satisfatoriamente, naquela época, o fetiche do "conteúdo produzido pelo próprio usuário", elementos incrementados (e valorizados) a partir da chegada daquilo que se convencionou chamar de Web 2.0.

Escrevia-se ou exibiam-se fotos/vídeos de curta duração. Outros perfis faziam comentários (em geral, respeitosos e civilizados e, por isso, respondidos por quem mantinha o blog). O negócio era bem simples, sem a necessidade de criar (e pagar) por um domínio/website específico. Os mais populares costumavam gerar muitos comentários. Sujeitos insignificantes (como este que vos escreve), bem como jornalistas, acadêmicos/as, escritores/as, artistas em geral - muita gente via a parada com bons olhos. Havia blogs de culinária e moda; de divulgação científica e sobre fotografia; espaços de denúncia e de reportagem independente; narrativas ficcionais e produção de poesia, entre outros. E, naturalmente, ao lado de trabalhos excelentes, circulava também muita porcaria.

Mídias sociais já faziam parte do cotidiano em 2005: o Orkut era uma febre (pelo menos no Brasil) e o MySpace acabava de dar as caras (falando assim, parece que foi tudo numa era distaaaante...). Entretanto, nenhum destes conseguiu canibalizar a blogosfera. Essa tarefa seria executada por tudo aquilo que veio depois - Facebook, Twitter, Youtube, WhatsApp e Instagram. NOTA: Espero que o(a) eventual leitor(a) não me entenda mal. Não estou colocando a pecha de "vilão" em nenhum desses aplicativos/mídias sociais. As mudanças tecnológicas nesse campo têm sido vertiginosas, numa trajetória praticamente impossível de alterar (ou de deter, caso se deseje fazê-lo). Quando falo em canibalização, quero apenas ressaltar que Facebook, Twitter, Youtube, WhatsApp e Instagram, de modos diferentes e às vezes complementares, não só incorporaram os recursos existentes nos blogs, como foram muito além, em matéria de interatividade e veiculação de conteúdo, tornando estes obsoletos. Assim opera a tecnologia, ainda mais quando há corporações e perspectivas de lucro permeando e conduzindo o processo.

Claro, os blogs ainda estão por aí. Muitos deles, porém, atrelam-se a portais mantidos por conglomerados de entretenimento/jornalismo e funcionam quase como as tradicionais colunas dos veículos impressos, sem nada de muito singular, inovador ou atrativo. Talvez nem devessem ser chamados de blogs. Pouquíssimos dão atenção à seção de comentários. Seus autores e autoras são geralmente indivíduos cuja experiência profissional ou fama não derivou da blogosfera. E milhões de outros blogs, criados por amadores e diletantes, foram deixando de ser atualizados. De vez em quando alguém topa com um desses "cadáveres" internéticos.

Penso não ser exagero afirmar que os blogs estão fadados a desaparecer. Não obstante, o mundo vai continuar girando. As bolsas de valores não vão cair por causa disso nem lágrimas de desespero e angústia serão derramadas.

Então por que sinto uma aura de lamento e queixume envolvendo esta postagem ?

Bem... Pode não parecer, mas a minha atividade como blogueiro - com a qual, convém lembrar mais uma vez, não ganho nenhum centavo - é a coisa mais importante que faço. Desconfio também de que é a única coisa que não me deixa desmoronar, mentalmente falando.

. . . . . . .

Há alguns meses, escrevi aqui que milhões e milhões de seres humanos, em todo o planeta, veem-se obrigados a realizar, quase diariamente, tarefas das quais não extraem qualquer satisfação ou alegria - e pior -, nem experimentam sentimentos de realização pessoal (sem mencionar que muitas dessas tarefas resultam em muito cansaço físico e/ou esgotamento mental). Embora admita ser um privilegiado por meu emprego não envolver incumbências penosas nem degradação, estou, como a maioria dos indivíduos, atolado até a alma no pantanal da semi-compulsoriedade alienante do trabalho que é impingida a enormes contingentes da população nas sociedades capitalistas.

Não, definitivamente, meu emprego não tem qualquer relevância. Nem social, nem pessoal. Dependo dele para poder sobreviver, contudo, e não posso simplesmente abandoná-lo, a despeito de não me trazer nenhum contentamento.

Talvez devesse então tentar encontrar alento emocional e psíquico na família, nos amigos ou, quem sabe, em potenciais relacionamentos "amorosos", certo?

Errado.

Meu irmão e minhas irmãs nunca me abandonaram. Pelo contrário: se não fosse por eles nem sei onde estaria hoje. Por isso sempre terão minha gratidão, respeito e, quando precisarem, também auxílio. Todavia, nunca desenvolvemos vínculos afetivos fortes entre nós. É duro reconhecer isso, mas é a verdade.

Quanto às amizades, com toda a franqueza, inexistem. Se desejasse telefonar, neste momento, para qualquer um(a) a quem já considerei amigo(a), para combinarmos um simples bate-papo, não encontraria ninguém com disponibilidade. Teríamos que entrar naquele aflitivo jogo das desculpas-clichês que todos damos e ouvimos: "meu tempo tá uma loucura ultimamente!"; "vamos marcar pra outro dia?"... Há algo mais profundo também: nossas trajetórias existenciais tomaram rumos tão diferentes, nossas visões de mundo se modificaram tanto, que já não há possibilidade de compreensão mútua. Sem julgamentos, sem apontar dedos e imputar erros - são circunstâncias da vida. Nada resta a fazer senão aceitar.

Relacionamentos "amorosos" (ênfase nas aspas) são um tópico desagradável. Talvez fale disso noutra oportunidade. Ou, mais provavelmente, não.

O problema é que, infelizmente, assim como as outras pessoas, às vezes também sinto necessidade de me comunicar. Minha atividade blogueira remedia parte dessa necessidade, além de me trazer grande satisfação às vezes, quando avalio que consegui produzir um bom texto sobre um assunto de que gosto.

Tem sido assim desde o Ração das Letras, em 2005. Continuou com o Sinistras Bibliotecas, durante um curto espaço de tempo, entre 2007 e 2008. E prossegue agora, neste Besta Quadrada, que completou uma década em 2019.

Aqui neste espaço posso imaginar o interlocutor que gostaria de ter no mundo offline. Acabo falando sozinho, naturalmente, mas o(a) eventual leitor(a) não tem noção de como isso me faz bem.

É verdade que deixei de lado o Besta Quadrada neste ano. Meu expediente de serviço aumentou, as funções se modificaram, há uma enorme dificuldade de adaptação ao novo posto de trabalho. Não estou sabendo administrar meu tempo longe do emprego. Além disso, nunca me senti tão amofinado e apático como nos últimos meses. Tenho lido pouco - algo bastante prejudicial para minha atividade blogueira, baseada principalmente no relato de minhas impressões de leitura.

Não quero encerrar este blog, contudo. Tornou-se um espaço vital, indispensável para minha sanidade. Espero conseguir me equilibrar nos próximos dias, ao menos o suficiente para continuar falando sozinho por aqui.

Preciso disso. Desesperadamente.

Na próxima postagem, darei uma olhada num dos mais célebres contos de Machado de Assis, Teoria do medalhão.

Inté.
BG de Hoje

Se há um pessoal cujo som escapa das rotulações que costumamos aplicar a artistas pop é a banda norte-americana OZOMATLI. Num mesmo álbum, diferentes gêneros e subgêneros musicais comparecem (embora o hip-hop seja o grande referencial do grupo, temperado com a latinidade originária de seus membros) e, quase sempre, o resultado é excelente, como nesta faixa caracteristicamente funk, Magnolia Soul, presente no 4º disco lançado por eles, em 2007.

quarta-feira, 13 de março de 2019

Falou e disse...

ANTES DO NOME *

Não me importa a palavra, esta corriqueira.
Quero é o esplêndido caos de onde emerge a sintaxe,
os sítios escuros onde nasce o 'de', o 'aliás',
o 'o', o 'porém' e o 'que', esta incompreensível 
muleta que me apoia.
Quem entender a linguagem entende Deus
cujo Filho é Verbo. Morre quem entender.
A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda,
foi inventada para ser calada.
Em momentos de graça, infrequentíssimos,
se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão.
Puro susto e terror.

* PRADO, Adélia. Antes do nome. In: ________. Poesia reunida. São Paulo: Siciliano, 1991. p. 22 (Este poema integra o livro Bagagem, publicado originalmente em 1976)

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

Jack e nós


[Postagem atualizada em 03/03/2019]


Conheci O senhor das moscas, excepcional romance de William Golding publicado pela primeira vez em 1954, quando já era adulto, há uns 15 anos (escrevi sobre ele anteriormente aqui).

Por isso confesso ter ficado um pouco surpreso ao saber, tempos atrás, que o livro costuma ser muito utilizado no ensino básico da Grã-Bretanha e dos EUA, sobretudo no high school, em aulas de Literatura. Basta dar uma olhada no Youtube para encontrar encenações teatrais escolares feitas por estudantes, baseadas no texto de Golding (só por curiosidade, há uma paródia muito engraçada do livro dentro de um episódio dos Simpsons, na nona temporada).

Suponho que, por se tratar de uma narrativa alegórica, O senhor da moscas permite uma boa exploração didática. E o fato da história desenvolver-se em torno de um grupo de crianças também pode explicar a "popularidade" do livro no ambiente escolar, pelo menos em países anglófonos (mal comparando, é parecido com o que acontece aqui no Brasil com Capitães da areia, de Jorge Amado). Ainda assim, fico me perguntando se o leitor juvenil será capaz de chegar ao fundo das especulações que se pode engendrar a partir da leitura do romance. Algumas dessas especulações, inescapavelmente, tangenciam a questão da natureza humana.

Como alguém identificado com o pensamento existencialista, vejo-me compelido a rechaçar o conceito: natureza humana é, desse ponto de vista, apenas uma expressão retórica. Cada pessoa a surgir no mundo não está predeterminada a ser isto ou aquilo (por mais que o determinismo genético diga o contrário). Os humanos, ao longo do processo de existir, vão se constituindo aos poucos como humanos, por meio da cultura e do contato com os outros, sendo capazes de se descolar (com limitações, claro) do programa estabelecido pela natureza. Não estamos completamente à mercê de nossos instintos (assim, aliás, consideramos, pelo menos desde a antropologia filosófica inaugurada por Rousseau).

Mas... A despeito de tudo isso, não transcendemos por inteiro nossa animalidade (algo impossível, em última instância). Os impulsos naturais continuam fazendo parte do que somos. Como a agressividade, por exemplo.

Combinemos assim, então, eventual leitor(a). Embora o conceito de natureza humana seja, filosoficamente, (muito) questionável (para dizer o mínimo), a expressão não deixará de ser empregada nesta postagem. Caberá ao(à) eventual leitor(a) julgar se a sua utilização é pertinente ou não.

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Sempre que se fala em natureza costuma-se não perder de vista sua "contraparte", a cultura, cuja sinonímia abrange a palavra civilização.

O senhor das moscas dramatiza, entre outras coisas, o choque natureza X civilização. 

Se pensarmos nas três figuras centrais do livro - Ralph, Porquinho (Piggy, na língua original) e Jack - podemos dispô-los da seguinte forma: Porquinho localiza-se no lado da civilização; Ralph ocupa uma posição intermediária; Jack, por sua vez, aninha-se no polo da natureza (diria até, no polo da selvageria). Na discussão proposta hoje, esse personagem nos interessa muito.

É bastante significativo que, no começo da narrativa, Jack Merridew apareça inteiramente uniformizado (tal como seus "subordinados" do coro). A vestimenta era só outra forma de traduzir sua vontade de mostrar-se superior aos outros e não um apreço especial por qualquer requinte civilizado.

Segundo o narrador ¹, Jack tinha "a voz de alguém que sabia o que queria". Seu desejo de mando é expresso logo no primeiro capítulo: "Eu devo ser o chefe - disse Jack, com ingênua arrogância -, pois sou o chefe do coro e solista. Posso cantar em dó sustenido". Desde o início, qualquer leitor de O senhor das moscas suspeita que a posição ulterior de Ralph como líder eleito se fragilizará até o final da história, dadas as características de Jack.

No primeiro capítulo também ficamos sabendo que Jack tem uma faca, assim como Ralph. Importante notar, porém, que nas páginas seguintes não há relatos de uso do instrumento por parte de Ralph (pode-se supor que o objeto foi empregado durante a montagem das cabanas ou para se alimentar, mas o narrador não faz qualquer menção). Por outro lado, há várias passagens nas quais Jack faz uso de sua faca, inclusive algumas em que o objeto é cravado num tronco de árvore como forma de intimidação. Jack simboliza a força, claro, mas é também um representante da violência - não necessariamente da crueldade, é bom esclarecer; esse papel está reservado a outro personagem, Roger, que será um dos mais diligentes sequazes de Jack.

Ainda que, como dissemos acima, a noção de natureza humana seja problemática, do ponto de vista filosófico, não foram poucos os pensadores (lembro, por exemplo, de Hobbes e de Freud) aterrados pelas "propensões naturais" dos seres humanos para as condutas hostis e violentas. Nesse sentido, penso não ser equivocado ver em O senhor das moscas um exercício estético-imaginativo cuja intenção (entre outras) é responder a seguinte pergunta: até onde somos capazes de ir, para o bem ou (sobretudo) para o mal, sem os limites que a vida civilizada impõe à natureza humana?

Atentemos para a passagem abaixo, extraída do 4º capítulo. Roger, um dos "meninos grandes" (acima dos 11 anos de idade) vê Henry, um dos "meninos pequenos" (abaixo dos 7 anos) construindo castelos de areia na praia. O grande decide "brincar" disfarçadamente com o pequeno:

"Roger agachou-se, pegou uma pedra, mirou e a jogou em Henry - mas não para acertar. A pedra, uma relíquia de outros tempos, passou a uns cinco metros à direita de Henry e caiu na água. Roger pegou um punhado de pedras e começou a atirá-las. Mas havia um espaço ao redor de Henry, talvez com uns seis metros de diâmetro, em que ele não ousava acertar. Aí, invisível mas poderoso, surgia o tabu da vida antiga. Em volta do menino ajoelhado, havia a proteção dos pais, da escola, da polícia e da lei. O braço de Roger era condicionado por uma civilização que nada sabia dele e estava em ruínas".



Caso o(a) eventual leitor(a) não tenha lido O senhor das moscas, convém fazer uma breve sinopse. Um grupo de garotos vai parar em uma ilha tropical deserta após a queda do avião em que estavam (a aeronave tentava sair de uma zona de guerra, daí o narrador falar em "civilização em ruínas" no trecho acima). Não há nenhum adulto com eles. (Ah, e quando o narrador mencionou "vida antiga", quis dizer aquela anterior à da ilha).

A "nova vida" permitirá o afloramento de muita coisa. Um sujeito como Roger logo, logo se sentirá livre do condicionamento civilizatório e será terrível...

Chegamos ao ponto principal de minha análise hoje.

Todas as vezes que releio essa obra-prima de William Golding não consigo deixar de pensar que, embora a narrativa seja construída de modo tal que o leitor dificilmente desenvolverá um sentimento positivo pelos personagens situados no polo da natureza - e, apenas para os objetivos desta postagem, isso quer dizer no polo da força e da violência - seres como Jack sempre existirão nos agrupamentos humanos, por mais civilizados que estes sejam. E  - direi isto com certo temor e muito embaraço - talvez precisemos deles ocasionalmente, embora seja custoso admiti-lo.

Falemos com honestidade. Creio ser bastante difícil encontrar um membro da espécie humana sem qualquer pendor para a violência. Sempre me lembro de um trecho no capítulo 5, quando os garotos estão preocupados (alguns, como os pequenos, muito assustados) com a possibilidade de haver na ilha uma criatura misteriosa e ameaçadora. É quando um deles, Simon (meu personagem favorito), conjectura:

"- Talvez - disse hesitante -, talvez haja um bicho.
[...]
 - O que quero dizer é... talvez sejamos nós.
 - Está louco!
  Esta última exclamação foi de Porquinho, que chegou a perder o controle. Simon continuou.
 - Poderíamos ser uma espécie de...
Simon não conseguiu falar, no seu esforço de exprimir o mal essencial da humanidade [...]"

Boa parte das pessoas - como você, eventual leitor(a) e eu - pode até não perpetrar atos violentos em seu cotidiano, mas isso não significa que não tenha capacidade ou disposição para fazê-lo.

Além disso (e é difícil negá-lo), há ocasiões em que não há outro meio a ser empregado senão a força bruta - por exemplo, para caçar animais visando a sobrevivência, como fazem Jack e sua tribo no romance do qual estamos falando, ou afugentar agressores vindos de outro lugar, como sempre aconteceu na história humana.

Muitas pessoas ficam aliviadas que sejam outros (e não elas próprias) a executarem a ação violenta da qual não se consegue prescindir (este blogueiro é uma dessas pessoas). A questão de fundo, porém, não desaparece: o emprego da violência executado por indivíduos dispostos a exercê-la (como Jack) poderia deixar de acontecer, como nos casos exemplificados no parágrafo anterior?

Paro por aqui, ciente de que meu texto ficou manco. Procurarei ler um pouco mais sobre alguns dos temas ventilados aqui e, quem sabe, retornarei a essa discussão. O que é certo, posso dizer desde já, é que O senhor das moscas voltará a ser assunto aqui no Besta Quadrada, como é praxe com os livros pelos quais tenho especial consideração.
__________
¹ GOLDING, William. O senhor das moscas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006 [Tradução de Geraldo Galvão Ferraz]

BG de Hoje

Nunca entendi por que Trent Reznor é considerado por muitos uma espécie de gênio do rock pesado. Nunca gostei do som do NINE INCH NAILS. Bem, isso foi só até eu ouvir Every Day Is Exactly The Same, que faz parte do álbum With Teeth, lançado em 2005 (eu tenho esse CD). Já foi BG anteriormente, mas não me importo de repeti-la. Gosto de tudo nessa faixa, desde o discreto toque de piano na abertura, a letra (a começar pelos versos iniciais - "I believe I can see the future/Cause I repeat the same routine" - que ajudam a estabelecer o tom melancólico da canção), a linha de baixo, bateria, a guitarra típica do chamado rock/metal industrial... Cara, que trabalho magnífico!

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

Parando para pensar


CENA 1:

"Ponciá Vicêncio gostava de ficar sentada perto da janela olhando o nada. Às vezes, se distraía tanto que até se esquecia da janta e, quando via, o seu homem estava chegando do trabalho. Ela gastava todo o tempo com o pensar, com o recordar. Relembrava a vida passada, pensava no presente, mas não sonhava e nem inventava nada para o futuro. O amanhã de Ponciá era feito de esquecimento. Em tempos outros, havia sonhado tanto!". A personagem também desejava um outro nome pois "sentia-se ninguém". O homem com quem ela vivia e dividia o seu barraco acabara de chegar e "viu a mulher distraída na janela. Olhou para ela com ódio. A mulher parecia lerda. Gastava horas e horas ali quieta olhando e vendo o nada. [...] Uma noite ela passou todo o tempo diante do espelho chamando por ela mesma. Chamava, chamava e não respondia. Ele teve medo, muito medo. De manhã, ela parecia mais acabrunhada ainda. Pediu ao homem que não a chamasse mais de Ponciá Vicêncio. Ele, espantado, perguntou-lhe como a chamaria então. Olhando fundo e desesperadamente nos olhos dele, ela respondeu que poderia chamá-la de nada".

CENA 2:

"Ponciá Vicêncio deitou-se na cama imunda ao lado do homem e de barriga para cima ficou com o olhar encontrando o nada. Veio-lhe a imagem de porcos no chiqueiro que comem e dormem para serem sacrificados um dia. Seria isto vida, meu Deus? Os dias passavam, estava cansada, fraca para viver, mas coragem para morrer, também não tinha ainda. O homem gostava de dizer que ela era pancada da ideia. Seria? Seria! Às vezes, se sentia, mesmo, como se a sua cabeça fosse um grande vazio, repleto de nada e de nada.

Quando Ponciá Vicêncio resolveu sair do povoado onde nascera, a decisão chegou forte e repentina. Estava cansada de tudo ali. De trabalhar o barro com a mãe, de ir e vir às terras dos brancos e voltar de mãos vazias. De ver a terra dos negros coberta de plantações, cuidadas pelas mulheres e crianças, pois os homens gastavam a vida trabalhando nas terras dos senhores, e depois a maior parte das colheitas ser entregue aos coronéis. Cansada da luta insana, sem glória, a que todos se entregavam para amanhecer cada dia mais pobres, enquanto alguns conseguiam enriquecer-se a todo o dia".


As duas passagens acima fazem parte do romance Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo ¹. O fluxo da narrativa vai e volta no tempo por meio, sobretudo, das lembranças da protagonista - "Ponciá gastava a vida em recordar a vida. Era também uma forma de viver", registra a voz narradora à certa altura. No primeiro excerto destacado nesta postagem, pode-se perceber o peso conferido ao ato de lembrar na composição psicológica da personagem central.

A propensão para o ensimesmamento é um dos principais traços de Ponciá Vicêncio, pela necessidade dela de retornar ao passado através das recordações. Há também, por outro lado, um certo alheamento, ocasiões frequentes em que ela é "tomada pela ausência", contemplando "sempre um outro lugar de outras vivências". Esse sair de si não significa enlevo: por vezes identifica-se com o adoecimento mental (isso acabará sendo evidenciado no romance, sem contar as reiteradas menções à "herança" do avô da personagem). Observe-se a passagem a seguir:

"Nas primeiras vezes que Ponciá Vicêncio sentiu o vazio na cabeça, quando voltou a si, ficou atordoada. O que havia acontecido? Quanto tempo tinha ficado naquele estado? Tentou relembrar os fatos e não sabia como tudo se dera. Sabia apenas que, de uma hora para outra, era como se um buraco abrisse em si própria, formando uma grande fenda, dentro e fora dela, um vácuo com o qual ela se confundia. Mas continuava, entretanto, consciente de tudo ao redor. Via a vida e os outros se fazendo, assistia aos movimentos alheios se dando, mas se perdia, não conseguia saber de si. No princípio, quando o vazio ameaçava encher a sua pessoa, ela ficava possuída pelo medo. Agora gostava da ausência na qual ela se abrigava, desconhecendo-se, tornando-se alheia de seu próprio eu".
Esse "olhar para o vazio", esse "ver o nada", pode, a princípio, ser interpretado como a total passividade. Entretanto, seria um erro, pois, a meu ver, a postura de Ponciá revela ainda um outro sentido, relacionado ao profundo gesto de parar para pensar, de refletir sobre a existência e suas condições.

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Em outro texto escrito por Conceição Evaristo, O cooper de Cida ², testemunhamos um despertar de consciência.

Nesse conto, a personagem carregava, desde criança, "um sentimento de urgência". Acreditava que era preciso ser rápida, não perder tempo na competição representada pela própria vida em sociedade: "corria sobre a corda bamba, invisível e opressora do tempo. Era preciso avançar sempre e sempre". Em visita ao Rio de Janeiro pela primeira vez aos 11 anos, vinda de uma cidadezinha interiorana onde as pessoas "andavam, falavam e viviam de-va-gar-zi-nho", Cida encantou-se com a metrópole:

"Descobriu no turbilhão da cidade um jogo de caleidoscópio formado por peças, gente-máquinas se cruzando, entrecortando braços, rodas, cabeças, buzinas, motos, pernas, pés e corpos aromatizados pela essência da gasolina. Cida descobriu outras pessoas também portadoras da urgência de vida que ela trazia em si".

Aos 29 anos, já estabelecida na capital fluminense, "a vida seguia no ritmo acelerado de seu desejo. Trabalho, trabalho, trabalho. O dia entupido de obrigações". Afinal, "é preciso correr, para chegar antes, conseguir a vaga, o lugar ao sol, pegar a fila pequena no banco, encontrar a lavanderia aberta, testemunhar a metade da missa".

E, literalmente, Cida tinha o hábito de correr. "Todas as manhãs, os pés de Cida pisavam rápido o calçadão da praia. Iam e vinham em toques rápidos e furtivos, como se estivessem envergonhados dos carinhos que o solo pudesse lhes insinuar no decorrer da marcha".

Naquele dia, porém, algo diferente se deu: "um sentimento pachorrento", somado a "um desejo de querer parar, de não querer ir" apoderou-se dela. E "sem perceber, permitiu uma lentidão aos seus passos, e pela primeira vez viu o mar". É quando a personagem para pra pensar (nesse ponto, o conto assemelha-se a algumas narrativas de Clarice Lispector, como por exemplo, Amor, do livro Laços de família). A sensação inicial é de tédio - o oceano comporta-se sempre do mesmo modo há milhões de anos. Até perceber que a repetição vista no mar também pode ser constatada nos "principais atos dela: levantar, correr, sair, voltar".

Atenção para esta passagem:

"Contemplou os rostos que passavam, conhecia todos de relance. Todas as manhãs topava com aquelas faces suadas diante de si. Assustou-se. Percebeu que não estava correndo. Estava andando em câmera lenta, quase. Sentiu a planta dos pés, mesmo guardada nos tênis, tocando o solo. Ela estava andando, parando, andando, parando, parando. Todos os seus membros estavam lassos, só o coração batia estonteado. Cida levou a mão ao peito. Sentiu o coração e os seios. Lembrou-se então de que era uma mulher e não uma máquina desenfreada, louca, programada para correr-correr. Envergonhou-se dos orgasmos premeditados, cronometrados que vinha cultivando até ali. Ela não se entregava nunca e repudiava qualquer gesto de abandono que alguém pudesse ter diante dela. A corda bamba do tempo, varal no qual estava estendida a vida, era frágil, podendo se romper a qualquer hora. Era preciso, pois, um constante estado de alerta"

Pensar sobre a existência e suas condições é o que faz Cida, dirigindo o olhar para o mar e desacelerando. A transformação da personagem ocorre após um irrefreável e intenso exercício reflexivo.

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O que estou querendo dizer com a expressão parar para pensar?

Milhões e milhões de seres humanos, em todo o planeta, veem-se obrigados a realizar, quase diariamente, tarefas das quais não extraem qualquer satisfação ou alegria - e pior -, nem experimentam sentimentos de realização pessoal (sem mencionar que muitas dessas tarefas resultam em muito cansaço físico e/ou esgotamento mental). Desses milhões (poderia dizer bilhões), uma parcela imensa não conheceu outra vida que não aquela pautada pela precariedade. Entretanto, não são poucos os indivíduos submetidos a essas condições que, se perguntados sobre o porquê disso tudo, se a vida não reservaria outras possibilidades, prostram-se numa mudez resignada ou, quando se pronunciam, recorrem aos bordões que lhes foram inculcados ao longo do tempo: "As coisas são assim desde que o mundo é mundo" ou "É a vontade de Deus".

Há ainda aqueles que, menos ameaçados pela escassez material (ainda que igualmente imersos em atividades laborais alienadoras), aceitam sem questionar a ideia de que a vida não passa de uma disputa (a maioria não vence) e não se pode perder tempo - afinal, tempo é dinheiro.

Em todos esses casos, as pessoas são sujeitadas pela opressão socioeconômica. Trabalha-se até o limite da resistência física e mental para se alcançar a mera subsistência; trabalha-se em ritmo incessante - na "correria", como se costuma dizer -, pois esse é o éthos que se julga adequado para "não ficar para trás" (e ganhar, muitas vezes, resulta num processo de desumanização).

Pois bem, parar para pensar é subtrair-se, através do pensamento, dos condicionamentos e interdições impingidos a nós pelo ambiente sociocultural opressor e, nesse exercício, questionar a si e ao mundo. Parar para pensar pode ser subversivo, libertador, revolucionário.

Infelizmente, é de se supor, contudo, serem poucos, muito poucos, aqueles que - a despeito do cansaço físico e mental, da necessidade de obter o "pão de cada dia", da crença de que viver em sociedade significa apenas competir uns contra os outros - conseguem realizar a pausa necessária e erguer a cabeça para fora desse quadro de opressão, ainda que momentaneamente.

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Voltemos aos textos de Conceição Evaristo.

Num dos capítulos de Ponciá Vicêncio, a personagem se pergunta como o homem com quem vivia podia dormir tão tranquilamente, "como se estivesse com a vida resolvida".

"Deus meu, será que o homem não desejava mais nada? Para ele bastava o barraco, a comida posta na lata de goiabada vazia? O pó, a poeira das construções civis, o gole de pinga nos finais de semana? O papo rápido com os amigos? Será que só isso bastava?"

Apesar de tudo, porém, Ponciá percebe nele "um vislumbre de tristeza". Gostaria de conversar, desabafar, mas desiste em razão da brutalidade e mutismo do outro. Uma das lições extraídas após a leitura do romance é que a inclinação para o pensar, para o refletir, pode implicar muita solidão (e tanto pior para quem é como Ponciá Vicêncio, cheia de um "desesperado desejo de encontro").

Em O cooper de Cida, embora o leitor não saiba que rumo a vida da personagem seguirá após a sua tomada de consciência quando parou para pensar diante do oceano Atlântico, pode-se especular que ela pelo menos tentará não sucumbir por completo diante da opressão.

Posso dizer também que há uma valiosa lição nesse conto. Cida observa um nadador brincando na água. Ela

"Aguardou cá fora desejando ansiosa que ele saísse. Ela queria saber do tempo dele, barganhar momentos, pedir um tempo emprestado talvez. Como uma pessoa, em plena terça-feira, às seis e cinquenta e cinco da manhã podia estar tão tranquilamente brincando no mar? Deveria ser extremamente rico. Viver de juros. Lembrou-se dos mendigos que constantemente cruzavam o seu caminho. Eram extremamente pobres. Ou o tempo não se media com moeda, ou as horas, os dias, os anos não seriam medidas justas do tempo".

Entre os muitos sinais de uma vida carregada de privilégios está a maneira como se pode dispor do tempo.

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Antes de encerrar, acho oportuno reproduzir aqui um trecho da entrevista de Conceição Evaristo feita pela Carta Capital em maio de 2017. Quando perguntada sobre a publicação propriamente dita de seus textos, Evaristo respondeu que

"as feministas brancas usam uma máxima quando elas falam que escrever é um ato político. Para nós mulheres negras, escrever e publicar é um ato político. Por causa da minha primeira publicação, Ponciá Vicêncio, fiquei um ano no vermelho para pagar a editora Mazza, em 2003. Eu paguei a primeira e segunda edição e, anos depois, esse livro foi para o vestibular da Universidade Federal de Minas Gerais. A partir daí a editora assumiu sozinha. Becos da Memória, outro livro meu, a editora assumiu sozinha. Com outros livros, eu dividi os custos [Hoje os livros da autora fazem parte do catálogo da editora Pallas]. Então esse processo de publicação infelizmente ainda hoje é necessário. Eu tenho dito para as mulheres negras que a gente precisa encontrar formas coletivas de publicar. Publicar é um ato político para nós e precisamos jogar isso na cara de quem está aí para confrontar".

É preciso não ter ilusões: ainda é muito difícil para a obra de autores afro-brasileiros (sobretudo a das mulheres afro-brasileiras) ganhar visibilidade. Os entraves são consideráveis (inclui-se, como visto no relato acima, arcar com custos de publicação/impressão). O racismo estrutural manifesta-se também no campo literário. Como observa Conceição Evaristo na mesma entrevista, "a literatura ainda é um espaço de interdição. A literatura como sistema, porque o texto é uma coisa, mas o sistema literário é formado por editoras, por críticos, pela mídia, pelas bibliotecas, livrarias, prêmios" e esse sistema "está na mão das pessoas brancas".

Caso o(a) eventual leitor(a) tenha interesse, escrevi sobre outro romance de Conceição Evaristo, Becos da Memória, em novembro de 2009 (para acessar, clique aqui).

Na próxima postagem, destacarei um dos meus livros prediletos: O senhor das moscas, de William Golding.

__________
¹ EVARISTO, Conceição. Ponciá Vicêncio. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2003

² EVARISTO, Conceição. O cooper de Cida. In: ___________. Olhos d'água. Rio de Janeiro: Pallas; Fundação Biblioteca Nacional, 2016. p. 65-70

BG de Hoje

Acho que todo mundo tem uma lista de canções que, mesmo sendo muito tocadas (no rádio, por exemplo), nunca cansamos de escutar. Fallin', da talentosíssima ALICIA KEYS, faz parte da lista deste blogueiro.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

O que esperar quando se aposta na burrice e na estupidez?


[Postagem atualizada em 21/01/2019]

 

"A força da burrice vem da sua incapacidade de compreender. A lei do menor esforço e a lei do mais forte se retroalimentam. Para que pensar, se podemos calar quem se esforça em fazê-lo? É aí que a imbecilidade se confunde com a má-fé que a instrumentaliza.

[...]

A burrice exige que se explique tudo de novo, desde o zero. O bê-a-bá, sempre, em vão. É uma tática eficaz. A estupidez vence pela exaustão".

Bernardo Carvalho - A burrice vence pela exaustão e quer calar quem pensa



"Há uma espécie de orgulho de ser burro", observou o jornalista Ayrton Centeno num bem-humorado texto sobre o período pré e pós-eleição presidencial de 2018. "Como escreveu um amigo, é a 'burrice-ostentação'. Algo que não exige maior esforço. Afinal, não é necessário estudar para ser fascista. É uma ideologia absorvida mais pelo emocional do que o racional. Mais pelo bíceps do que pelo cérebro. E, para azar do Brasil, muito mais vem a caminho".

Asneiras e barbaridades já não são coisas que se diz em surdina, acompanhadas de um certo embaraço. "Muito pelo contrário. São gritadas para o mundo na rua, no whatsapp, no facebook, no instagram, nas caixas de comentários" (ressalvando que as manifestações de imbecilidade e selvageria nas mídias sociais e nas seções de comentários de sites/portais de internet não são algo recente, nem restritas à realidade brasileira).

Os burros perderam o acanhamento e estão dispostos a tomar conta do espaço público, com o auxílio luxuoso da internet, promovendo o "idiota da aldeia a portador da verdade", como disse Umberto Eco.

Mas - talvez esteja se perguntando o(a) eventual leitor(a) - como este blogueiro de merda pode ser tão arrogante a ponto de chamar os outros de burros, principalmente aqueles que se distanciam dele, politicamente falando? Deve se achar muito inteligente, o patife...

Creio, então, ser necessário estabelecer algumas definições, para tentar limpar a minha barra.

Frequentemente, os vocábulos estupidez, burrice e ignorância são usados de forma intercambiável, praticamente como palavras sinônimas. Um exame mais detido, porém, mostra-nos que não é bem assim. Para esclarecermos isso melhor, vamos partir do termo ignorância.

Como registram os dicionários, ignorância refere-se a um estado de desconhecimento, decorrente ou não da falta de instrução. Um indivíduo que não foi submetido à educação formal é ignorante em relação a muitos dos saberes que circulam no meio escolar, mas não é necessariamente estúpido ou burro. Um sujeito pode ser muito versado na matéria A ou ter décadas de treinamento em B; ainda assim, mostra-se ignorante quando inquirido sobre técnicas ou procedimentos pertencentes a C, porque não fizeram parte de sua formação profissional, ou porque não tem interesse nesse assunto, ou por outro motivo qualquer. Ignoram-se idiomas, por falta de domínio da língua; ignoram-se dados, por falta ou dificuldade de acesso a eles. Nesse sentido, todos somos ignorantes em relação a alguma coisa (na verdade, somos ignorantes em relação a uma infinidade de coisas). A ignorância é mais uma condição, uma circunstância, do que uma disposição pessoal. É na maneira como lidamos com a ignorância que está o busílis.

Vejamos agora a burrice. A acepção "falta de inteligência" é comum nos dicionários. Geralmente, quando se usa a palavra burro (quase sempre como ofensa) é isso mesmo que se quer designar: um sujeito que não possui qualquer traço de argúcia. Obviamente, por mais inteligente que alguém se ache, essa pessoa pode ser (e será) considerada burra por outrem - falemos sem hipocrisia: julgamos e somos julgados o tempo todo, independentemente de nossas "boas intenções". Entretanto, se a petulância me for permitida, quero apresentar uma outra definição do termo, conveniente para a nossa discussão: a burrice é, em muitos casos, uma ignorância deliberada, uma ignorância assumida com má-fé.

No ano passado, falando sobre o Elogio da loucura, de Erasmo de Rotterdam,  escrevi que os indivíduos confortavelmente (e, às vezes, alegremente) adaptados à sua ignorância e sem intuito de mitigar (dentro das condições possíveis) seu desconhecimento sobre as coisas e os fenômenos à nossa volta devem ser chamados de burros, sem contemporização. Noutras palavras, os indivíduos burros pelos quais tenho ojeriza escolheram permanecer na(s) sua(s) ignorância(s), mesmo tendo meios para evitá-la(s), inclusive em relação a tópicos de seu interesse. É uma das faces do "orgulho de ser burro".

O que nos encaminha para o conceito de estupidez. Certamente significa falta de discernimento, mas os lexicógrafos informam que grosseria, descortesia e indelicadeza também são sinônimos dessa palavra. Desse modo, seguindo minha linha de argumentação, a estupidez, além de ser um tipo de desconhecimento pelo qual se optou deliberadamente (tal como a burrice), é uma forma de ignorância que se expressa através da boçalidade, intencionando ferir. Portanto, a estupidez seria uma ignorância deliberada e truculenta.

Pois bem. Parece que estamos vivenciando um período em que tanto a burrice quanto a estupidez, além de "estarem na moda", passaram a ser valorizadas como capital político-eleitoral.

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A filósofa Marcia Tiburi cunhou a palavra neofundamentalismo em sua reflexão sobre "certa postura de nossa época relativa à questão da verdade quando não é a verdade que está em jogo" ¹. Apesar do termo me soar meio extravagante, tenho forte concordância com aquilo que ele denota.

"Se lembrarmos de Walter Benjamin definindo o capitalismo como religião" - escreve Tiburi -, "o neofundamentalismo analogamente corresponderia à ignorância como religião. Nele, o culto total e ininterrupto do não saber - enquanto desprezo pelo saber - não deixa espaço para nada que possa relacionar-se a algo como conhecimento. Imposta à força, a ignorância seria o sangue injetado diariamente nas veias anêmicas da cultura reduzida à sua indústria. Diálogo, uma postura aberta ao outro a partir da qual é possível o encontro com o conhecimento, com o que não está dado, não é possível para o neofundamentalista. O fundamento do neofundamentalista não é mais o dogma, porque ele não parte de uma verdade, mas de um acordo prévio com a ignorância elevada a método de dominação cultural. A ignorância é, assim, o próprio fundamento na postura do neofundamentalista".

Como se vê, não se trata aqui apenas de não saber (afinal, como já dissemos, todos somos ignorantes em relação a trocentas coisas), mas de vilipendiar o saber. O neofundamentalista (a quem estou chamando simplesmente de burro e estúpido) - para mal de nossos pecados - "cultua a mais bruta ignorância, a que despreza o conhecimento".

As recentes mostras de hostilidade contra professoras(es) no Brasil, que incluem as graves ameaças de morte à antropóloga Débora Diniz e o incitamento à censura e o ataque à liberdade de cátedra representado pelo famigerado movimento "Escola sem Partido", são muito ilustrativas dos tempos atuais, marcados por impulsos obscurantistas (e violentos), como os que caracterizaram a campanha eleitoral da candidatura presidencial vencedora e, pelo que se vê até agora, parecem ser um dos componentes essenciais do governo recém-empossado. Esses impulsos satisfazem o apetite de indivíduos que (não me cansarei de dizer isso) optaram, deliberadamente, pela ignorância, muitas vezes acompanhada da incivilidade. Há resistências, claro. Ou, pelo menos, queixas enérgicas:  recentemente, um grupo de escolas particulares de elite divulgou uma contundente carta aberta ao atual ministro da Educação, clamando ao titular da pasta que "não permita que o país entre numa rota de retrocesso, a partir da instituição escolar" (examinando artigos e falas do ministro, porém, não se deve esperar grande coisa).

O recrudescimento de grupos propagadores de discurso de ódio (como nazistas e supremacistas brancos) nos EUA, Alemanha e nos países que formavam a antiga Iugoslávia; o sempiterno fanatismo religioso (muçulmano ou cristão) cultivado em regiões do planeta atoladas em pobreza e miséria; as pautas anti-direitos humanos defendidas pelos atuais governos de nações tão distintas umas das outras quanto Hungria, Itália, Venezuela, Turquia e Filipinas indicam, a meu ver, que uma grande parte da humanidade resolveu apostar na burrice e na estupidez e adotou a ignorância como a base para o enfrentamento dos problemas. E uma parcela significativa da população brasileira embarcou nessa.

No início de mais um ano, quando se costuma fazer projeções para o futuro, devo dizer que meu pessimismo, já de hábito enorme, só faz aumentar.

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Bernardo Carvalho é, certamente, o autor brasileiro contemporâneo que mais tenho lido e apreciado. Já postei a respeito de alguns de seus livros (aqui e aqui, por exemplo). No ano passado, em conversa na Radio France Internationale, o escritor carioca (radicado em São Paulo) afirmou haver uma "especificidade" brasileira em relação a outras nações da América Latina, em se tratando de literatura. México e Argentina, por exemplo, quando vistos por europeus, costumam ser considerados países literários. O mesmo não acontece conosco. "O Brasil não é considerado um país literário, não é um lugar que as pessoas vejam como produtor de coisas intelectuais sérias". Para Carvalho, não se trata propriamente de um preconceito dos leitores da França ou da Inglaterra (embora também possa sê-lo). A avaliação negativa talvez se deva mais a percepção de que "o Brasil se tornou uma espécie de território da burrice. O que está acontecendo politicamente no Brasil, além de ser um suicídio, mostra uma burrice generalizada no país que é muito impressionante". E acrescenta: "Eu acho que, como estrangeiro, se eu visse esse país, como ele se comporta, como ele reage politicamente, para onde ele caminha, o que ele faz com seus conflitos sociais, como ele resolve esses conflitos, como ele faz esses conflitos permanecerem, eu acho que eu não levaria a sério esse lugar".

Recentemente, alguns dos perfis que sigo no Twitter relembraram uma matéria publicada em 2016 no blog de Maria Fernanda Rodrigues (Estadão), que apresentava os resultados da última pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, realizada pelo Ibope por encomenda do Instituto Pró-Livro. Embora a maioria da população (56%) seja considerada leitora pela metodologia da pesquisa, alguns dados chamam a atenção negativamente: cerca de 30% dos brasileiros alfabetizados nunca comprou um livro sequer; para 67% , nunca houve alguém que os incentivasse a ler; 50% de professores/trabalhadores da educação ouvidos pelo Ibope afirmaram não ter lido nenhum livro nos últimos 3 meses (para acessar o levantamento completo, clique aqui).

Números como esses, acrescidos da informação de que quase um terço da população brasileira é composta por analfabetos funcionais (e apenas 12% dos brasileiros podem ser considerados proficientes na leitura), demonstram que a avaliação de Carvalho não é equivocada. NOTA: Já que mencionei o Twitter, costumo encontrar por lá - com pequenas variações - a seguinte afirmativa divertida: um dos males contemporâneos é a falta de interpretação de texto...

Muito da burrice e da estupidez que tenho testemunhado deriva da incapacidade e/ou da indisposição de muitas pessoas para a leitura de textos menos superficiais, mais complexos, principalmente textos literários.

Assim como a pesquisadora espanhola Teresa Colomer ², acredito que a Literatura é um "gênero segundo", significando com isso que esta é "capaz de absorver qualquer discurso linguístico de maneira que [...] a literatura nos prepara para ler melhor todos os discursos sociais". Para Colomer, essa ideia "sustenta que os textos literários constituem um bom andaime educativo, não apenas para ler e escrever literatura, mas também para aprender os mecanismos do funcionamento linguístico em geral". Deveríamos, portanto, nos empenhar mais e mais em ler boa Literatura. No entanto, o que temos visto, particularmente no Brasil - e isso já vem de décadas - passa longe de um estímulo à cultura dos livros, sobretudo os de ficção ou poesia ³.

Ao contrário do que muitos pensam, mesmo com o advento de todos esses recursos eletrônicos digitais atualmente disponíveis, a leitura de obras literárias ainda é fundamental, se desejamos viver em um mundo minimamente civilizado. Como afirmou a escritora grega Amanda Michalopoulou, em tempos divisivos e (talvez, inevitavelmente) polarizados,

"A ficção nos ensina a pensar criativamente sobre a diferença. Estudos antropológicos, psicanálise, sociologia - todos oferecem descrições teóricas para aquilo que a literatura ensina por exemplo e identificação. [...] Culpa, inveja, desespero, violência, ansiedade, irracionalidade, medo da morte - nada do que é humano é estranho à literatura. Então, quanto mais a educação entra em declínio por falta de imaginação (sem mencionar recursos), mais a literatura é chamada a servir como uma outra forma de educação".

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É necessário ainda advertir que o culto à ignorância, além de repudiar a arte, a literatura e o saber humanístico em geral, também não se intimida diante do conhecimento científico.

A alegação de que a Terra é plana; a contestação da teoria da evolução motivada pela crença num mito bíblico; os movimentos antivacina; a negação diante do aquecimento global e outros problemas ambientais provocados pela atividade humana; o revisionismo histórico dirigido a acontecimentos graves e dolorosos como, por exemplo, o Holocausto e a escravização de africanos - esses e outros exemplos de burrice e estupidez são convicções partilhadas por muitos indivíduos ao redor do planeta, alguns deles localizados em diversas instâncias de poder (político e econômico).

"Sempre que nossos preconceitos étnicos ou nacionais são despertados, nos tempos de escassez, em meio a desafios à autoestima ou à coragem nacional, quando sofremos com nosso diminuto lugar e finalidade no Cosmos, ou quando o fanatismo ferve ao nosso redor - então hábitos de pensamento conhecidos de eras passadas procuram se apoderar dos controles", escreveu o astrônomo e astrofísico Carl Sagan, em um livro estupendo que nunca me canso de citar (O mundo assombrado pelos demônios ). 

Olhemos, por exemplo, como a humanidade tem respondido a alguns de seus impasses atuais mais críticos: a calamitosa e dramática situação dos refugiados. Tanto aqui no Brasil quanto na Europa, a receita adotada envolve xenofobia, traduzida em ataques violentos. Para muitos indivíduos, esse e outros problemas contemporâneos só serão resolvidos por meio do embrutecimento, com lideranças e governantes "fortes" e "duros" - ou seja, mais próximos da tirania. São "os hábitos de pensamento conhecidos de eras passadas" se apoderando dos controles... Num tal panorama, a ciência - ou, mais importante, a maneira de pensar proposta pela ciência - é abandonada. Não surpreende que todos os governos de ímpeto autoritário e antidemocrático sejam indigentes em se tratando de educação e ciência.

Atentemos para o que também escreveu Sagan:

"Os valores da ciência e os da democracia são concordantes, em muitos casos indistinguíveis. [...] A ciência confere poder a qualquer um que se der ao trabalho de aprendê-la (embora muitos tenham sido sistematicamente impedidos de adquirir esse conhecimento). Ela nutre - na verdade necessita - do livre intercâmbio de ideias: seus valores são opostos ao sigilo. A ciência não mantém nenhum ponto de observação especial, nem posições privilegiadas. Tanto a ciência como a democracia encorajam opiniões não convencionais e debate vigoroso. Ambas requerem raciocínio adequado, argumentos coerentes, padrões rigorosos de evidência e honestidade. A ciência é um meio de desmascarar aqueles que apenas fingem conhecer. É um baluarte contra o misticismo, contra a superstição, contra a religião mal aplicada a assuntos que não lhe dizem respeito. Se somos fiéis a seus valores, ela pode nos dizer quando estamos enganados [...]

O astrônomo norte-americano, contudo, não concebe a atividade científica como uma cornucópia perfeita e sabe que "os produtos da ciência também podem subverter radicalmente a democracia, de um modo jamais sonhado pelos demagogos pré-industriais". Ainda assim, vale a pena envolver-se com a ciência (e com a democracia):

"Descobrir a gota ocasional de verdade no meio de um grande oceano de confusão e mistificação requer vigilância, dedicação e coragem. Mas, se não praticamos esses hábitos rigorosos de pensar, não podemos ter a esperança de solucionar os problemas verdadeiramente sérios com que nos defrontamos - e nos arriscamos a nos tornar uma nação de patetas, um mundo de patetas, prontos para sermos passados para trás pelo primeiro charlatão que cruzar o nosso caminho".

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O que esperar quando se aposta na burrice e na estupidez? Creio que a resposta é simples: mais burrice e mais estupidez.

Pelo que estamos vendo, contudo, muitos não têm dado a mínima.

Pior para todos nós.

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¹ TIBURI, Marcia. Neofundamentalismo. In: __________. Como conversar com um fascista: reflexões sobre o cotidiano autoritário brasileiro. 9 ed. Rio de Janeiro: Record, 2017. p. 74-75

² COLOMER, Teresa. Andar entre livros: a leitura literária na escola. São Paulo: Global, 2007. [Tradução de Laura Sandroni]

³ É preciso reconhecer que, desde os anos 1980, o governo federal implementou políticas públicas visando aumentar o acesso da população aos livros, principalmente através das redes de ensino (iniciativas como o Salas de Leitura, Programa Nacional do Livro Didático, Literatura Em Minha Casa, Programa Nacional Biblioteca na Escola, entre outros), isso sem mencionar as ações realizadas pelo poder público municipal (como é o caso dos "kits literários" distribuídos pela prefeitura de Belo Horizonte nas últimas três administrações). No entanto, por mais acertada e necessária que seja, somente a iniciativa de compra e distribuição de livros não tem se mostrado suficiente para uma satisfatória promoção da leitura e consequente formação de leitores. Esse é um tema que merece ser discutido com mais profundidade; assim que possível, farei uma série de postagens sobre o assunto.

SAGAN, Carl. O mundo assombrado pelos demônios: a ciência vista como uma vela no escuro. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. [Tradução de Rosaura Eichemberg]

BG de Hoje

Oriundo da área teatral daqui de Belo Horizonte, MARCELO VERONEZ incursionou pelo terreno da música recentemente, sendo muito elogiado por seu trabalho como cantor. Um exemplo está nesta ótima versão de Nunca vi, composta e gravada antes por Marku Ribas, nos anos 1970, em plena ditadura (Ribas, que teve outras faixas censuradas, chegou a ser preso e depois partiu para o exílio).  É impressionante como a letra da canção, escrita por Paulo Coelho há mais de 40 anos, não destoa do momento que estamos vivenciando. Ah, e a banda Iconili, que acompanha Veronez nesta faixa, é sensacional!