Atualmente, fama e popularidade são verdadeiras obsessões para muitos indivíduos, mesmo que seus atos pouco ou nada tenham de brilhantismo e nem sua - discutível - condição de figura pública justifique reconhecimento como "pessoa famosa". O que se quer, a todo custo, é tornar-se uma celebridade ou mesmo um digital influencer. A concorrência, porém, é gigantesca; tenta-se de tudo para ganhar atenção. E dá-lhe publicidade, seja aquela contratada junto a profissionais do ramo, seja aquela realizada pelo próprio aspirante à notoriedade, utilizando os meios de que se disponha.
Se o(a) eventual leitor(a) conhece o conto Teoria do medalhão, de Machado de Assis, há de se lembrar da passagem em que o pai discorre sobre "os benefícios da publicidade" ¹ . Sugere ao filho que é necessário por "o teu nome ante os olhos do mundo" dezenas de vezes, valendo-se do puxa-saquismo ou de "pequenos mimos, confeitos, almofadinhas, cousas miúdas". Há outras opções:
"Os sucessos de certa ordem, embora de pouca monta, podem ser trazidos a lume contanto que ponham em realce a tua pessoa. Explico-me. Se caíres de um carro, sem outro dano, além do susto, é útil mandá-lo dizer aos quatro ventos, não pelo fato em si, que é insignificante, mas pelo efeito de recordar um nome caro às afeições gerais".
Vale mencionar que expediente similar aparece em outro texto machadiano: Quincas Borba. O protagonista do romance, Rubião, acabara de salvar uma criança, quase atropelada por cavalos. Ele, então, despretensiosamente, narra o caso ao amigo Camacho, o qual decide publicar a história em seu jornal. A princípio, Rubião se irrita com a história publicada, mas vendo que a nota lhe trouxe uma ligeira fama, carregada de palavras lisonjeiras, muda de opinião a ponto de "comprar uns tantos exemplares da folha para os amigos de Barbacena".
Fazer-se lembrado é o primeiro mandamento publicitário. No Rio de Janeiro do final do século XIX, isso só podia ocorrer através dos jornalecos impressos que pipocavam aqui e ali. Nos tempos atuais - pode-se dizer um tantinho exageradamente - a publicidade está em todo lugar.
Fama e publicidade produzem distinção, muito embora grande parte de seus agraciados não faça jus a essa proeminência (o que não os impede, claro, de obter as vantagens financeiras frequentemente advindas dessa situação). Mas... e daí?, objeta a patuleia. A idiotice, a frivolidade e a inaptidão de fulano ou sicrana não são problema para nós; o que importa é serem famosos.
Como se pode depreender, a fama injustificada muitas vezes converte-se num recurso eficaz para se dar bem. Não à toa, obtê-la é parte crucial da estratégia recomendada em Teoria do medalhão. Voltemos, pois, ao conto de Machado de Assis.
Ainda que o subtítulo da narrativa (Diálogo) nos faça imaginar interlocutores em pé de igualdade, apenas um deles de fato fala - o pai -, não restando ao outro - Janjão, o filho que acabara de completar 21 anos - muito o que dizer.
Segundo o pai, a vida "é uma enorme loteria; os prêmios são poucos, os malogrados inúmeros, e com os suspiros de uma geração é que se amassam as esperanças de outra. Isto é a vida; não há planger, nem imprecar, mas aceitar as coisas integralmente, com seus ônus e percalços, glórias e desdouros, e ir por diante"
A partir dessa concepção conformista e egocentrada, ele enfileira uma série de recomendações e advertências que, "guardadas as proporções", são tão úteis quanto "o Príncipe, de Machiavelli". Sua intenção é que o filho se torne "grande e ilustre, ou pelo menos notável", e que se levante "acima da obscuridade comum".
Ora, aqui estamos no terreno em que Machado de Assis melhor joga: no desvelamento da mediocridade de nossas elites.
Janjão, aos 21 anos, ao contrário da imensa maioria dos jovens naquela época, possui "algumas apólices, um diploma" e, se desejar, tem "infinitas carreiras" diante de si. Caso não dê certo em nenhuma delas, poder-se-á sempre virar um medalhão, dada a sua condição de privilegiado.
De acordo com o dicionário Houaiss ², há duas acepções de sentido figurado para o termo medalhão: pode denotar um "indivíduo importante; figura de projeção", mas pode ser também o "indivíduo posto em posição de destaque, mas sem mérito para tal". A segunda acepção é a que nos interessa.
Não é preciso demonstrar competência em nada para ser uma medalhão. O importante é ter os contatos certos, encenar os rapapés de praxe e estar em evidência para obter cargos, ocupar postos e ganhar sinecuras. E embora o "ofício" leve tempo para ser aprendido, assim que o indivíduo é alçado a medalhão, entra "na terra prometida":
Quantas pessoas não temos visto por aí - na imprensa, na política, no mundo artístico e do entretenimento - sem nenhuma credencial de maior quilate do que o seu status de medalhão?
No conto de Machado de Assis o pai diz ao filho que para entrar nessa "carreira" é preciso "por todo o cuidado nas ideias que haverás de nutrir para uso alheio e próprio", mas que o melhor é "não as ter absolutamente". Ele acredita que o filho pode ir longe pois é "dotado na perfeita inópia mental, conveniente ao uso deste nobre ofício". Para um(a) candidato(a) a medalhão, não é proveitoso fazer uso do pensamento apurado. Fosse assim, ele ou ela nunca transcenderiam "os limites de uma invejável vulgaridade" e assim não conheceriam "os elementos dessa arte difícil de pensar o pensado".
Porém, para que um medalhão chegue lá, penso não ser suficiente apenas a sua própria "inópia mental". Aqueles que possibilitaram a sua ascensão, bem como lhe abriram o caminho para a glória certamente são tão ou mais imbecis do que o próprio medalhão. E imbecilidade, convenhamos, é o que nunca faltou nessas terras brasileiras (e alhures).
Há uma expressão, no conto do qual estamos falando, de que gosto particularmente. Insistindo que é fundamental asfixiar as ideias (ou seja, reprimir o exercício do pensamento), o pai apregoa "um regime debilitante" (importante frisar que tanto os medalhões quanto os basbaques que os veneram seguem a mesma dieta). As sugestões do personagem para atingir esse fim descrevem, naturalmente, atividades típicas de sua época (como jogar whist, por exemplo). Não é difícil, entretanto, conjecturar sobre as ações que comporiam um tal regime debilitante em nosso tempo. Posso imaginar algo como: recusar-se a ler textos complexos; usar como "fonte de informação confiável" o WhatsApp e posts apócrifos espalhados em mídias sociais; ir ao cinema para assistir coisas como Velozes & Furiosos; repetir a torto e a direito lugares-comuns surrados, muitas vezes tirados de memes da internet, como se fossem a quintessência da sabedoria humana. E por aí vai.
Escapar do regime debilitante não é tão simples quanto se pode supor. Mas caso se deseje fazê-lo, ler Machado de Assis ajuda bastante.
__________
¹ ASSIS, Machado de. Teoria do medalhão. In:_______________. 50 contos. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 82-90 [seleção, introdução e notas de John Gledson]
Fazer-se lembrado é o primeiro mandamento publicitário. No Rio de Janeiro do final do século XIX, isso só podia ocorrer através dos jornalecos impressos que pipocavam aqui e ali. Nos tempos atuais - pode-se dizer um tantinho exageradamente - a publicidade está em todo lugar.
Fama e publicidade produzem distinção, muito embora grande parte de seus agraciados não faça jus a essa proeminência (o que não os impede, claro, de obter as vantagens financeiras frequentemente advindas dessa situação). Mas... e daí?, objeta a patuleia. A idiotice, a frivolidade e a inaptidão de fulano ou sicrana não são problema para nós; o que importa é serem famosos.
Como se pode depreender, a fama injustificada muitas vezes converte-se num recurso eficaz para se dar bem. Não à toa, obtê-la é parte crucial da estratégia recomendada em Teoria do medalhão. Voltemos, pois, ao conto de Machado de Assis.
Ainda que o subtítulo da narrativa (Diálogo) nos faça imaginar interlocutores em pé de igualdade, apenas um deles de fato fala - o pai -, não restando ao outro - Janjão, o filho que acabara de completar 21 anos - muito o que dizer.
Segundo o pai, a vida "é uma enorme loteria; os prêmios são poucos, os malogrados inúmeros, e com os suspiros de uma geração é que se amassam as esperanças de outra. Isto é a vida; não há planger, nem imprecar, mas aceitar as coisas integralmente, com seus ônus e percalços, glórias e desdouros, e ir por diante"
A partir dessa concepção conformista e egocentrada, ele enfileira uma série de recomendações e advertências que, "guardadas as proporções", são tão úteis quanto "o Príncipe, de Machiavelli". Sua intenção é que o filho se torne "grande e ilustre, ou pelo menos notável", e que se levante "acima da obscuridade comum".
Ora, aqui estamos no terreno em que Machado de Assis melhor joga: no desvelamento da mediocridade de nossas elites.
Janjão, aos 21 anos, ao contrário da imensa maioria dos jovens naquela época, possui "algumas apólices, um diploma" e, se desejar, tem "infinitas carreiras" diante de si. Caso não dê certo em nenhuma delas, poder-se-á sempre virar um medalhão, dada a sua condição de privilegiado.
De acordo com o dicionário Houaiss ², há duas acepções de sentido figurado para o termo medalhão: pode denotar um "indivíduo importante; figura de projeção", mas pode ser também o "indivíduo posto em posição de destaque, mas sem mérito para tal". A segunda acepção é a que nos interessa.
Não é preciso demonstrar competência em nada para ser uma medalhão. O importante é ter os contatos certos, encenar os rapapés de praxe e estar em evidência para obter cargos, ocupar postos e ganhar sinecuras. E embora o "ofício" leve tempo para ser aprendido, assim que o indivíduo é alçado a medalhão, entra "na terra prometida":
"Verás cair as muralhas de Jericó ao som das trompas sagradas. Só então poderás dizer que estás fixado. Começa nesse dia a tua fase de ornamento indispensável, de figura obrigada, de rótulo. Acabou-se a necessidade de farejar ocasiões, comissões, irmandades; elas virão ter contigo [...]"
Quantas pessoas não temos visto por aí - na imprensa, na política, no mundo artístico e do entretenimento - sem nenhuma credencial de maior quilate do que o seu status de medalhão?
No conto de Machado de Assis o pai diz ao filho que para entrar nessa "carreira" é preciso "por todo o cuidado nas ideias que haverás de nutrir para uso alheio e próprio", mas que o melhor é "não as ter absolutamente". Ele acredita que o filho pode ir longe pois é "dotado na perfeita inópia mental, conveniente ao uso deste nobre ofício". Para um(a) candidato(a) a medalhão, não é proveitoso fazer uso do pensamento apurado. Fosse assim, ele ou ela nunca transcenderiam "os limites de uma invejável vulgaridade" e assim não conheceriam "os elementos dessa arte difícil de pensar o pensado".
Porém, para que um medalhão chegue lá, penso não ser suficiente apenas a sua própria "inópia mental". Aqueles que possibilitaram a sua ascensão, bem como lhe abriram o caminho para a glória certamente são tão ou mais imbecis do que o próprio medalhão. E imbecilidade, convenhamos, é o que nunca faltou nessas terras brasileiras (e alhures).
Há uma expressão, no conto do qual estamos falando, de que gosto particularmente. Insistindo que é fundamental asfixiar as ideias (ou seja, reprimir o exercício do pensamento), o pai apregoa "um regime debilitante" (importante frisar que tanto os medalhões quanto os basbaques que os veneram seguem a mesma dieta). As sugestões do personagem para atingir esse fim descrevem, naturalmente, atividades típicas de sua época (como jogar whist, por exemplo). Não é difícil, entretanto, conjecturar sobre as ações que comporiam um tal regime debilitante em nosso tempo. Posso imaginar algo como: recusar-se a ler textos complexos; usar como "fonte de informação confiável" o WhatsApp e posts apócrifos espalhados em mídias sociais; ir ao cinema para assistir coisas como Velozes & Furiosos; repetir a torto e a direito lugares-comuns surrados, muitas vezes tirados de memes da internet, como se fossem a quintessência da sabedoria humana. E por aí vai.
Escapar do regime debilitante não é tão simples quanto se pode supor. Mas caso se deseje fazê-lo, ler Machado de Assis ajuda bastante.
__________
¹ ASSIS, Machado de. Teoria do medalhão. In:_______________. 50 contos. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 82-90 [seleção, introdução e notas de John Gledson]
² MEDALHÃO. In: DICIONÁRIO Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. p. 1262
BG de Hoje
O rock deixou de ser um gênero com apelo junto ao público adolescente/jovem, o principal consumidor de música pop desde que a indústria do setor se estabeleceu. É ouvido, nos dias de hoje, principalmente por gente que envelheceu ou está envelhecendo. E embora ficar idoso seja uma merda, o mesmo não se aplica a uma forma de arte. Como escreveu Bill Flanagan num ótimo artigo publicado pelo New York Times em 2016, "rock is now where jazz was in the early 1980s. Its form is mostly fixed". Tornou-se um know-how, uma tradição e uma escola musicais. Qualquer artista interessado nesse tipo de som terá que levar em conta a história do gênero, caso queira produzir algo relevante. Um dos grandes nomes do rock atual, JACK WHITE, tem essa postura. Isso se reflete em todos os seus trabalhos, inclusive na sua banda recente, THE RACONTEURS. Confira nesta faixa, Sunday Driver.