segunda-feira, 23 de abril de 2012

Dor


Dias atrás, mau humorado (meu "estado de espírito" habitual) e bêbado, desagradei as pessoas com quem conversava num bar que frequento bastante. Não me lembro direito do assunto: só sei que a conversa enveredou para aquele ponto chato no qual as pessoas começam a exaltar suas "virtudes" pessoais, mentindo e autoelogiando-se. Foi quando eu disse, não sei por que: as únicas coisas com que devemos nos preocupar são o dinheiro e a dor física, o resto é conversa fiada. O clima ficou pesado. Não estava nem aí.

No outro dia, sóbrio, tentei encontrar a razão de ter dito aquilo. Suponho ter achado. Antes, porém, falemos de dois romances distintos, mas nos quais a violência tem papel destacado.

Em À espera dos bárbaros *, "fábula" escrita por J. M. Coetzee, o magistrado, personagem protagonista da narrativa, após conversa com o coronel Joll, experimentado torturador, conclui: " a dor é a verdade; tudo o mais está sujeito a dúvida".

Por sua vez, em 1984 **, distopia célebre elaborada por George Orwell, lê-se o pensamento desesperado de Winston Smith, submetido à intensa tortura a partir do final da narrativa:

"Nunca, por nenhuma razão, se poderia desejar que a dor aumentasse. Da dor, só se podia desejar uma coisa, que parasse. Nada no mundo era tão horrível como a dor física. Em face da dor não há heróis, não há heróis, ele pensou e tornou a pensar, torcendo-se no chão, segurando à toa o braço esquerdo invalidado".

No livro de Coetzee, a vida tranquila do magistrado que narra o romance é inteiramente transformada pela chegada de militares brutais, para os quais a tortura e os castigos físicos eram expedientes legítimos. Na obra de Orwell, Winston Smith experimenta todos os tipos de sofrimento físico perpetrados pelo poder oficial. Nos dois casos, qualquer oposição ou resistência é baldada: não se pode vencer a dor física.

São textos impactantes, cada um a seu modo; duas belas construções literárias, não obstante a tristeza e a desesperança que emanam delas.

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Pode-se encher a existência de sentimentalidades, convivências, convicções e valores. São ilusões que todos cultivamos, em maior ou menor grau. No fundo, a maioria dos seres humanos (inclusive este blogueiro, é óbvio) só se preocupa , egoisticamente, em arrumar dinheiro e evitar a dor física. Eis a condição humana resumida, penso eu. É cru e grosseiro, reconheço. Nem por isso, fácil de se conseguir. Muito pelo contrário.
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* COETZEE, J. M.. À espera dos bárbaros. São Paulo: Companhia das Letras, 2006 [tradução de José Rubens Siqueira ]
* * ORWELL, George. 1984. 16 ed. São Paulo: Ed. Nacional, 1983 [tradução de Wilson Velloso]