quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Sufocar a loucura do escrever



No último fim de semana, lendo A gaivota, de Anton Tchekhov, fiquei um bom tempo matutando sobre o ofício da escrita literária, principalmente depois de topar com esta fala do personagem Trigórin:

"Se eu morasse numa propriedade como esta, à beira de um lago, vocês acham que eu teria vontade de escrever? Eu trataria de sufocar essa loucura e não faria outra coisa senão pescar no lago"

Convém, entretanto, ressaltar que pode não haver sinceridade no que foi dito - a vontade de escrever, qualquer um poderia objetar, em nada se assemelha à loucura. Além disso, segundo Trepliov (outro personagem da peça, também um escritor), "Trigórin desenvolveu algumas técnicas para uso próprio e assim ficou fácil para ele...". Falemos um pouco dessas duas figuras.

O jovem Trepliov é melancólico e inseguro. Acredita que a dramaturgia (e a literatura, por extensão) precisa de "formas novas" ("Formas novas são indispensáveis e, se não existirem, então é melhor que não haja nada"). Mas, no último ato de A gaivota, revê suas convicções iniciais:

"Cada vez mais me convenço de que a questão não consiste em formas novas e formas velhas, mas sim em que a pessoa escreva sem pensar em formas, sejam quais forem, que ela escreva porque isso flui livremente da sua alma".

Por sua vez, Trigórin, homem já de meia idade, é um autor renomado na Rússia (embora aqueles que passarem pelo seu túmulo, no futuro, talvez digam: " 'Aqui jaz Trigórin. Foi um bom escritor, mas não escrevia tão bem quanto Turguêniev' ").

E entre esses dois, existe Nina, uma ingênua moça do interior, aspirante a atriz. Após um período de desilusão e sofrimento em Moscou, ela afirma agora compreender que

"no nosso trabalho, representando no palco ou escrevendo, o que importa não é a glória, não é o esplendor, não é aquilo com que eu tanto sonhava, mas sim a capacidade de suportar. Aprenda a carregar a sua cruz e acredite. Eu acredito e, assim, nem sofro tanto e, quando penso na minha vocação, não sinto medo da vida".

A narrativa de Tchekhov assume duas funções. A primária, obviamente, é ser uma peça de teatro na qual, vale notar, a ação é sofreada pelos devaneios e frustrações confessadas de seus personagens (sem qualquer prejuízo, é bom que se diga, para a qualidade do texto). E a função secundária é veicular algumas das reflexões do autor sobre o fazer literário.

O que se pode concluir a partir daí?

Tchekhov parece não estar disposto a conceber o trabalho do escritor como sendo apenas uma questão de escolher as palavras certas para compor uma história qualquer. Sobre as falas de alguns personagens de A gaivota paira a sensação de que produzir arte deve ser algo mais profundo do que isso: Trepliov alude à importância da "alma"; Nina fala em "carregar a sua cruz". Até mesmo o profissional e bem sucedido Trigórin, numa conversa com a garota interiorana que o admirava, declara:

"E é sempre assim, sempre, nunca dou sossego a mim mesmo e tenho a sensação de que estou devorando a minha própria vida, tenho a sensação de que, para fabricar o mel que entrego, num vazio, a pessoas que nem mesmo sei quem são, eu retiro o pólen das minhas melhores flores, arranco da terra essas mesmas flores e pisoteio suas raízes". 

Um pouco mais à frente, Trigórin revela a própria insegurança, mesmo sendo uma celebridade literária:

"Será que não estou louco? Será que meus conhecidos e amigos se dirigem a mim como a uma pessoa sã? 'O que o senhor anda escrevendo? Com que nos brindará a seguir?' Sempre a mesma coisa, sempre a mesma coisa, e fico com a impressão de que essa atenção de meus conhecidos, os elogios, a admiração, tudo isso é uma mentira, tenho a sensação de que estão me enganando, como fazem com uma pessoa doente, e às vezes tenho medo de que eles se aproximem sorrateiramente pelas minhas costas, me agarrem e me arrastem para o hospício, como ocorreu a Popríchin, o personagem de Gógol"

Por que diabos algumas pessoas se metem a fazer literatura/arte? - essa parece ser uma das questões a emergir nessa valiosa peça de Anton Tchekhov. Felizmente, para nós, apreciadores desse ofício, autores e autoras de talento (como o dramaturgo russo) preferiram não sufocar em si a loucura do escrever

* TCHEKHOV, Anton. A gaivota. São Paulo: Cosac & Naify, 2004 [Tradução de Rubens Figueiredo]
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Este blog encerra seus trabalhos no ano de 2015 e retornará ao batente - espero - em 1º de fevereiro do próximo ano. Ao(à) eventual leitor(a), boas festas e um aprazível (ou pelo menos suportável) 2016!

BG de Hoje

Este foi um dos piores anos da minha vida. Para encerrá-lo, acho que seria bem adequado escutar uma canção de que sempre gostei, desde garoto: Nostradamus, de EDUARDO DUSEK


terça-feira, 15 de dezembro de 2015

A crítica de Merleau-Ponty ao fascismo

"Ora, a crítica política não se ocupa somente com ideias mas também com as condutas que tais ideias mascaram em vez de exprimir"

Maurice Merleau-Ponty




Um dos três livros que pretendo comprar em breve e ler durante as benditas e intensamente desejadas férias é Como conversar com um fascista: reflexões sobre o cotidiano autoritário brasileiro, da filósofa e escritora Márcia Tiburi.

O Brasil atravessa, a meu ver, um período no qual declarações e posicionamentos reacionários e antidemocráticos são despejados na esfera pública sem o menor pejo, muitas vezes intimidando ou calando à força as vozes divergentes. Seus arautos estão por quase toda parte: lideranças religiosas das igrejas caça-níqueis, parlamentares filhotes-da-ditadura, "celebridades" televisivas de talento questionável, jornalistas paus-mandados dos chefões da nossa mídia oligopolizada... Isso sem falar nos milhões de "comentaristas de redes sociais", com sua truculência, grosseria e desinformação, infestando o Twitter, Facebook e Whatsapp, vinte e quatro horas por dia. O livro de Márcia Tiburi, espero, talvez possa me ajudar a respirar e pensar melhor nesse pântano de involução política em que estamos nos atolando.

Os reacionários com pretensões autoritárias de nossos dias são frequentemente chamados de fascistas. Essa denominação é válida?

Penso que sim.

Embora o fascismo, stricto sensu, esteja relacionado ao período entre 1922 (quando Benito Mussolini chega pela primeira vez ao poder na Itália) e 1945 (quando o ditador é fuzilado), seu ideário, obviamente, não ficou circunscrito a um único país, nem deixou de se propagar através do tempo. O fascismo, como um conjunto organizado de princípios, sobrevive em estado de latência em nosso tempo - algumas vezes sendo testado e revivido na prática, para nosso repúdio, horror e vergonha. Seus ideólogos contemporâneos dificilmente se assumirão como tal em público. Nada, porém, nos autoriza a considerá-lo uma etapa histórica já vencida.

Entretanto, é preciso notar que, durante uma certa época pelo menos, aqueles encarregados das tarefas mais intelectualizadas entre os defensores e entusiastas do fascismo não agiam dissimuladamente quando se tratava de afirmar sua ideologia com todas as letras. É a um desses indivíduos que o filósofo Maurice Merleau-Ponty se dirige, especificamente, no ensaio Em torno do marxismo*. Apesar de reconhecer que há "lucidez", bem como "honestidade e vigor", nas reflexões de um tal Thierry Maulnier (o autor de direita cujos textos critica), Merleau-Ponty procura demonstrar que essas mesmas reflexões são conformistas e retrógradas pois cessam "de fato de escolher a revolução".

É estranho, reconheço, escrever sobre um artigo (quase) de circunstância publicado há 70 anos. É estranho, sobretudo, quando, como gosta de dizer certa gente influente e "formadora de opinião", estaríamos vivenciando uma era "pós-ideológica". Tenho, entretanto, duas intenções: a primeira é lembrar que o debate político, ao longo da história, nem sempre ficou amesquinhado pelo disse-me-disse dos bastidores da administração estatal ou pelas torcidas organizadas de agremiações partidárias; e a segunda é reconhecer que contrapor-se ao fascismo, na primeira metade do século passado, tinha um outro sentido - mais profundo, talvez. Tentemos compreender isso um pouco melhor.

Se considerarmos o fascismo (mesmo que apenas) em seu sentido estrito, verificaremos que muitas atitudes e opiniões circulando atualmente na esfera pública nacional e internacional refletem concepções fascistas já presentes nos anos 1920, tais como racismo, xenofobia, apego ao militarismo, defesa do estabelecimento dos regimes de exceção a qualquer momento e desprezo pela noção de direitos humanos válidos para todos. Acrescentaria, ainda, o comportamento hostil em relação às minorias e o anti-intelectualismo. Mas deve-se lembrar que, em suas origens, o fascismo pretendia instaurar uma nova sociedade a partir, sobretudo, de ações "salvadoras" na economia. E é no campo econômico que se nota a diferença entre os fascismos contemporâneos e o fascismo "original", digamos assim.

Regimes políticos fascistas caracterizavam-se por um enorme intervencionismo estatal na atividade econômica, visando incrementar áreas consideradas estratégicas, sobretudo aquelas ligadas ao setor bélico. Sabemos, contudo, que muitos dos reacionários atuais têm verdadeiro horror a controles e regulamentações, de qualquer natureza (principalmente da parte do Estado), quando se trata de seu deus, o Mercado**.

Merleau-Ponty escreveu Em torno do marxismo num contexto em que o debate ideológico ainda era muito relevante, já que se tratava de apontar, de forma crucial, como a sociedade deveria conduzir-se (ou ser conduzida) economicamente. De uns tempos pra cá, lamentavelmente, esse debate não parece fazer mais sentido, pois somos levados a crer que o mundo como o conhecemos não pode ser mudado.

Como bom marxista, Merleau-Ponty acredita que "se conhecerá mais seguramente a essência de uma sociedade pela análise das relações inter-humanas cristalizadas e generalizadas na vida econômica do que pela análise de movimentos de ideias frágeis e fugazes, assim como se conhece melhor o homem por suas condutas do que por seus pensamentos" [grifos meus]

Por isso sua critica ao fascismo tenciona saber quais mudanças estruturais, de natureza econômica, esse ideário político poderia apresentar. Em termos marxistas: como ele resolveria a questão fundamental da luta de classes?
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A democracia é um grande valor. Mas é apenas isso. Ela não é garantida por nenhuma lei universal presente na natureza. Atentemos para essa passagem de Em torno do marxismo:

"O otimismo democrático admite que, num Estado onde os direitos do homem são garantidos, nenhuma liberdade usurpa as outras liberdades e a coexistência dos homens como sujeitos autônomos e racionais encontra-se assegurada. Isto significa supor que a violência faz uma aparição episódica na história humana, que as relações econômicas, em particular, tendem por si mesmas a realizar a justiça e a harmonia e, enfim, que a estrutura do mundo natural e humano é racional. Hoje sabemos que a igualdade formal dos direitos e a liberdade política mascaram relações de força, em vez de suprimi-las. E, assim, o problema político consiste em instituir estruturas sociais e relações reais entre os homens tais que a liberdade, a igualdade e o direito tornem-se efetivos. A fraqueza do pensamento democrático reside no fato de ser menos uma política e mais uma moral, visto que não coloca qualquer problema de estrutura social e considera as condições do exercício da liberdade como dadas com a humanidade. Contra tal moralismo, nós nos alinhamos do lado do realismo, desde que este seja entendido como uma política ocupada com a realização das condições de existência dos valores por ela escolhidos". [grifos meus]

"[...] a igualdade formal dos direitos e a liberdade política mascaram relações de força, em vez de suprimi-las"... Posso até participar de eleições periodicamente e imaginar que meu direito a um salário digno ou a igualdade perante a lei estão assegurados. Tudo isso, entretanto, é ilusório. Bilhões de indivíduos como eu (e outros tantos ainda mais pobres) somos manietados e arrastados diariamente pelas decisões tomadas por conglomerados empresariais globais e pelo setor bancário transnacional, para os quais o bem-estar das pessoas localizadas na base da pirâmide econômica é irrelevante. Diante dessa situação, como não reconhecer que a luta de classes - opondo os detentores do capital e plutocratas ao restante de nós - é um traço definidor da realidade? E que a grande batalha é  tentar "instituir estruturas sociais e relações reais" que possam tornar efetivas "a liberdade, a igualdade e o direito"?

Mas essas questões não são sequer cogitadas pelos fascistas. Aferrados a um conceito não igualitário de sociedade, a "solução" que poderiam apresentar para os problemas sociais passa, inevitavelmente, pelo que pensam as suas elites dirigentes. E estas são o núcleo-duro do conservadorismo econômico e político, posicionado no lado que está, há séculos, vencendo a luta de classes.
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Para Merleau-Ponty - assim como para boa parte dos pensadores marxistas - as condições de existência só serão alteradas por meio da ação revolucionária. É preciso admitir, contudo, que um dos motivos pelos quais o marxismo é desprestigiado hoje em dia tem a ver com o fato de que a ideia de revolução foi perdida.

De todo modo, apesar de meu conformismo, procurarei sempre ter em mente estas palavras, com as quais encerro a postagem de hoje:

"Todavia, se a alternativa é: ou socialismo ou caos, então a imprudência estará do lado daqueles que contribuem para agravar o caos sob o pretexto de que a revolução é um risco. Reconduzido ao essencial, o marxismo não é uma filosofia otimista - é somente a ideia de que uma outra história é possível, que não há destino e que a existência do homem é aberta. É a tentativa resoluta por esse futuro que ninguém no mundo, nem fora do mundo, sabe se será ou não será".
____________
* MERLEAU-PONTY, Maurice. Em torno do marxismo. São Paulo: Abril Cultural, 1980. [Tradução de Marilena Chauí] (Coleção Os pensadores)

** Há ainda, para o fascismo "original" outra deusa - no caso, a Nação. O integralismo de Plínio Salgado, nos anos 1930, manteve essa tendência ultranacionalista aqui no Brasil. Porém, é curioso notar que muitos brasileiros de hoje, entusiastas de ideias e noções de cunho fascista, apesar de vestirem o verde e amarelo quando se manifestam, têm imenso desejo de se mudar para o estrangeiro, principalmente para os EUA.

BG de Hoje

Semana passada assisti a um programa de TV, no estilo documentário, sobre o Nirvana. Deu-me então uma grande vontade de rememorar a cena grunge (na minha opinião, o último grande momento criativo do velho rock). Passei um fim-de-semana todo ouvindo os discos de Kurt Cobain e cia., Alice In Chains (minha banda favorita), Pearl Jam e SOUNDGARDEN (este último, o mais subestimado dos grupos grunge de sucesso comercial) Reforcei minha convicção de que Chris Cornell é um cantor fenomenal, o melhor - disparado - entre todos os que fizeram parte daquela cena musical. Você pode perceber isso conferindo, por exemplo, Burden in my hand.

segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Falou e disse...

LIMITE *

E quando a palavra
apodrece
num corredor
de sílabas ininteligíveis.

E quando a palavra
mofa
num canto-cárcere
do cansaço diário.

E quando a palavra
assume o fosco
ou o incolor da hipocrisia.

E quando a palavra
é fuga
em sua própria armadilha.

E quando a palavra
é furada
em sua própria efígie.

A palavra
sem vestimenta,
nua,
desincorporada.

* VENTURA, Adão. Costura de nuvens. Sabará: Dubolsinho, 2010. p. 37


sexta-feira, 20 de novembro de 2015

O mundo continua Caim: lendo a poesia de Adão Ventura


        

    "É hora
de sair do gueto/eito
    senzala
e vir para a sala
- nosso lugar é junto ao Sol."



Adão Ventura (do poema Agora)


 
 
Aprecio muito um site chamado I fucking love science (www.iflscience.com). O negócio por lá é vulgarização científica, se possível com um toque de bom humor. Mesmo tendo como objetivo tornar o universo das ciências um pouco mais compreensível para os leigos em geral (como este blogueiro), o site produz artigos bem elaborados - a despeito da pequena extensão deles - e tem o cuidado de sempre indicar as fontes originárias das informações divulgadas. Mas apesar de gostar bastante do I fucking love science, acabei tendo um ligeiro desagrado com algo que foi postado em sua página do Facebook.

Era um meme composto por uma foto de Bill Nye (conhecido nos EUA pelo programa de TV Bill Nye the Science Guy) e a seguinte declaração dele:

"Along with the evidence of common sense, researchers have proven scientifically that humans are all one people... The color of our ancestors skin and ultimately my skin and your skin is a consequence of ultraviolet light, of latitude and climate. Despite our recent sad conflicts here in the U. S., there really is no such thing as race. We are one species. Each of us much, much more alike than different. We all come from Africa. We all are of the same stardust. We are all going to live and die on the same planet, a pale blue dot in the vastness of space. We have to work together". [grifos do original]  *

Acho Bill Nye um cara inteligente e boa-praça. Suas palavras reproduzidas acima são inspiradoras, bem intencionadas e - sob um perspectiva estrita -, cientificamente corretas. Então por que fiquei incomodado com isso? Explicarei. E por ser um assunto complexo, tenho que estender este texto para além do tamanho habitual das minhas postagens aqui no blog. Peço compreensão e paciência do(a) eventual leitor(a).

Geneticamente falando - garantem-nos a biologia e a paleoantropologia -, não há realmente essa coisa de raça ("there really is no such thing as race"). Entretanto, como observou muito bem Ellis Cashmore**, o termo raça adquiriu ao longo dos séculos muitos sentidos, variando no decorrer do tempo:

"É importante ressaltar essas mudanças porque há uma suposição de que a palavra só pode ser usada de uma única maneira cientificamente válida. As diversidades físicas atraem a atenção das pessoas tão prontamente que elas não percebem que a validade da raça como conceito depende do seu emprego numa explicação. De acordo com esse ponto de vista, a questão principal não é o que vem a ser 'raça', mas o modo como o termo é empregado. As pessoas elaboram crenças a respeito de raça, assim como a respeito de nacionalidade, etnia e classe, numa tentativa de cultivar identidades grupais".

Desse modo, o termo raça indica também uma construção sociocultural, tal como brasileiro, judeu ou classe média. É por causa de sua polissemia que o termo " 'raça' é um significante mutável que significa diferentes coisas para diferentes pessoas em diferentes lugares na história e desafia as explicações definitivas fora de contextos específicos", diz Cashmore. Ainda segundo o autor, há quatro sentidos principais para essa palavra. O último deles - "um grupo de pessoas socialmente unificadas numa determinada sociedade em virtude de marcadores físicos como a pigmentação da pele, a textura do cabelo, os traços faciais, a estatura e coisas do gênero" - é o que este blogueiro tem em mente todas as vezes em que usa a palavra raça aplicada a grupos humanos. E é importante dizer que "quase todos os cientistas sociais usam o termo somente neste quarto sentido de grupo social definido pela visibilidade somática".

Ou seja: se por um lado não faz sentido falar em raças humanas no contexto da biologia (ou melhor dizendo, no contexto da genética), faz todo sentido falar em diferenças e pertencimento raciais no contexto sociológico.

Se é verdade, como assinalou Ellis Cashmore, que a maioria das sociedades não fizeram distinções internas em relação aos grupos humanos que as compunham, fica difícil, por sua vez, não constatar que a civilização ocidental moderna o fez (e continua fazendo):

"As sociedades que reconhecem as raças sociais são invariavelmente racistas, no sentido de que as pessoas, em especial os membros do grupo racial dominante, acreditam que os fenótipos físicos estão ligados a características intelectuais, morais e comportamentais. Raça e racismo, portanto, andam de mãos dadas".

Estamos acostumados com declarações do tipo "raça não existe, somos todos iguais", "eu não olho a cor das pessoas, só aquilo que elas tem por dentro", "devemos comemorar o dia da consciência humana, e não negra", às quais poderíamos adicionar uma que ficou bem na moda ultimamente: "#SomosTodosBláBláBlá". É bastante sintomático que essas frases partam, na maioria das vezes, de indivíduos para os quais não há interdições, obstáculos ou constrangimentos ocasionados por seu fenótipo. Noutras palavras: quem lança esses lugares-comuns vazios (mas aparentemente bem intencionados) é geralmente branco, do mesmo modo que são brancos a maioria esmagadora dos astros de cinema, os modelos da publicidade, os executivos mais poderosos e os donos dos grandes conglomerados. E, se considerarmos o caso brasileiro, também os ocupantes dos postos de poder dentro da administração pública.

Todas essas pessoas brancas têm alguma vivência como objetos de ações racistas? Por que diabos estariam essas pessoas mais capacitadas do que as outras, não-brancas, para dizer o que é ou não racismo, sendo que o segundo grupo de indivíduos é geralmente o alvo preferencial da discriminação, do preconceito e da intolerância?

Sei que o tema pede maior aprofundamento e uma discussão mais detida; receio, contudo, estar me demorando. E ainda nem sequer comecei a tratar do assunto central dessa postagem, para o qual o texto até então elaborado está servindo apenas como preâmbulo. Avancemos, então. Espero que o(a) eventual leitor(a) tenha me acompanhado até aqui e permaneça até o final.

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E já que se falou tanto em raça, é necessário reconhecer que nunca faltou ao poeta mineiro Adão Ventura a consciência de seu pertencimento racial. Essa consciência evidencia-se em vários de seus textos***:

"Faça sol ou faça tempestade
meu corpo é fechado 
por esta pele negra"
                                  (Do poema Faça sol ou faça tempestade)

"Em negro
teceram-me a pele
Enormes correntes
amarram-me ao tronco
de uma nova África"
                                 (Do poema Um)

É preciso dizer, sem véus retóricos, as muitas implicações da negritude:

"Para um negro
a cor da pele
é uma sombra
muitas vezes mais forte
que um soco"
                                 (Do poema Para um negro)

Não falta ao poeta, obviamente, o conhecimento de nossa história. E, numa estrofe apenas, desmonta-se a farsa de nossa propalada "democracia racial":

"Minha carta de alforria
não me deu fazendas
nem dinheiro no banco
nem bigodes retorcidos"
                                (Do poema Negro forro)

Tem razão Sebastião Nunes**** ao dizer que a poesia de Ventura "vai direto na veia, ataca no ponto certo, expondo as feridas da raça, abertas por séculos de humilhação, nas senzalas e nas casas-grandes, nas vilas e nas cidades, nos salões e nas ruas, no passado e no presente".

Essa poesia amarga e autêntica olha a realidade sem ilusões. Daí qualificar esse nosso mundo torpe como um "mundo Caim", aludindo ao nefando personagem bíblico:

"O mundo continua Caim
Uma bomba comprime meu coração
reduzindo-o a chumbo e pólvora.
Restam-me os sonhos,
também já quase plastificados".

Para que as palavras não assumissem "o fosco/ou o incolor da hipocrisia" (como se lê no belíssimo poema Limite), Adão Ventura lutou em cada um de seus escritos.

* tradução aproximada: "Ao lado da evidência de senso comum, pesquisadores provaram, cientificamente, que os humanos são todos um único povo... A cor da pele de nosso ancestral e, finalmente, da minha pele e da sua pele é a consequência da luz ultravioleta, da latitude e do clima. Apesar dos recentes e tristes conflitos aqui nos EUA, não há realmente essa coisa de raça. Nós somos uma única espécie. Cada um de nós é muito mais parecido do que diferente. Nós todos viemos da África. Nós todos somos o mesmo pó estelar. Nós todos vamos viver e morrer no mesmo planeta, um pálido ponto azul na vastidão dos espaço. Nós temos que trabalhar juntos". [grifos do original]

**  CASHMORE, Ellis. Dicionário de relações étnicas e raciais. São Paulo: Summus, 2000.[Tradução de Dinah Klevel] 

* * * VENTURA, Adão. Costura de nuvens: antologia poética. Sábara: Dubolsinho, 2010.

**** Essas considerações fazem parte do prefácio da antologia Costura de nuvens acima referida. E aproveito para reconhecer aqui o trabalho heróico de Sebastião Nunes através da Edições Dubolsinho, enfrentando as adversidades desse mercado editorial tão cruel com a poesia e as pequenas editoras.

BG de Hoje

Assim como JAMES BROWN, hoje eu canto:  Say it loud (I'm black and I'm proud)

terça-feira, 17 de novembro de 2015

Negritude, um retrato da juventude africana e a mitologia iouruba em quadrinhos

Nesta semana, as postagens do blog serão alusivas ao Dia Nacional da Consciência Negra (20 de novembro). Como faz tempo que não escrevo sobre quadrinhos, aproveito logo para destacar hoje três obras do gênero.
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Muita gente já disse que os estrangeiros em geral conseguem perceber os problemas raciais do Brasil de forma mais realista, sem o "filtro rosa" com o qual diversos brasileiros - por má fé, ignorância ou mesmo ingenuidade - preferem olhar para a questão*. É algo a se verificar. Mas posso dizer, sem dúvida, que no caso de Negrinha (Editora Desiderata, 2009), elaborado pelos franceses Jean-Christophe Camus e Olivier Tallec, os artistas conseguiram dar ao tema o tratamento apropriado, sem falsas amenidades.

A história se passa em 1953, no Rio de Janeiro. Maria é uma adolescente negra, de pela mais clara e cabelos lisos (dentro do peculiar colorismo da sociedade brasileira, talvez até poderia ser vista como branca). Dona Olinda, sua mãe, é negra de pele escura e trabalha como empregada doméstica. Dona Olinda saiu do morro do Cantagalo para que a filha vivesse no "asfalto" e, segundo Carmen, tia da menina,

"fez de tudo pra não faltar nada pra você [Maria], pra você ser criada em um bairro de rico, estudar em um bom colégio. Tudo o que ela fez foi pra você ter uma vida melhor do que a dela... Melhor do que a nossa... Você é descendente de escravos, meu amor, e apesar de a escravidão ter sido abolida 65 anos atrás [em relação à epoca em que a história em quadrinhos se desenrola], pode acreditar, é melhor ser branco do que ser preto... A menos que você seja músico ou jogador de futebol..."

Negrinha expõe muitas das facetas do racismo que caracteriza nosso país, como a subalternidade dos postos de trabalho aos quais a maioria das pessoas negras é confinada, ou a brutalidade policial e a violência oriunda do crime, cujas vítimas, em seu maior número, são pessoas negras. A escrita de Jean-Christophe Camus flui com simplicidade, sem, no entanto, render-se às simplificações. E os desenhos de Olivier Tallec, aquarelados, fornecem a delicadeza necessária à matéria narrada.

Enfim, um trabalho de primeira.

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Aya de Yopougon (Editora L & PM, 2012) tem como protagonista uma jovem de 19 anos, cujo principal objetivo é ser médica. Vive com as amigas num bairro popular de Abidjan, a maior cidade da Costa do Marfim (e que foi capital do país na época em que a história se passa - finalzinho dos anos 1970).

Escrita por Marguerite Abouet e ilustrada por Clément Oubrerie, Aya de Yopougon tem bom ritmo e diversos momentos cômicos, o que não impede a narrativa de incorporar tópicos tais como o machismo, a gravidez não planejada e a desigualdade social.

É pena que somente as duas primeiras partes dessa obra foram publicadas no Brasil (originalmente, são seis). Ah, e vale também dizer que a história foi adaptada, com sucesso, para o cinema de animação, num desenho de longa-metragem lançado em 2013.

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Orixás: do Orum ao Ayê (Editora Marco Zero, 2011), ainda que tenha seus méritos, infelizmente não é tão boa quanto as duas obras já destacadas. Sua proposta gráfica é a das publicações standard norte-americanas sobre super-heróis. Tudo é muito bem desenhado, com acabamento bem feito, mas carece um pouco de originalidade. Faltou também um pouco de ação (falha que já havia detectado noutra adaptação de narrativas mitológicas - naquele caso, judaico-cristãs - e que discuti noutra ocasião anterior).

De todo modo, trata-se de um bom título para servir de introdução (sobretudo para as crianças e para os adolescentes) a uma parte integrante essencial do patrimônio cultural ioruba (ou yorubá, como queiram), tão relacionado com a cultura afro-brasileira. A esse respeito, a propósito, também vale a pena conhecer Os príncipes do destino: histórias da mitologia afro-brasileira, de Reginaldo Prandi, e o ótimo Ogum, o rei de muitas faces e outras histórias dos orixás, escrito por Lídia Chaib e Elizabeth Rodrigues. NOTA: Estes dois últimos títulos citados não são HQs.

Na próxima postagem, falo do poeta Adão Ventura.

* Gilberto Gil - que assina o prefácio de Negrinha - prefere dizer que a história ilustra à miscigenação brasileira e não menciona em nenhum momento o termo racismo (que é, como já disse, brilhantemente tematizado pelos autores franceses nessa obra). Claro que Gil não se esquivou da questão da desigualdade racial ao longo de sua carreira (e seu extraordinário cancioneiro comprova isso), mas é perceptível que até mesmo ele - e desconheço os motivos - não se sentiu à vontade para trazer esse tópico à baila ao apresentar o livro ao público brasileiro.

BG de Hoje

Acho que já disse, noutra oportunidade, que considero CHICO CÉSAR um letrista sensacional. Isso fica comprovado, por exemplo, desde o título desta canção: Respeitem meus cabelos, brancos. Com apenas uma vírgula, transforma o que era um simples adjetivo da conhecida expressão popular em um vocativo que define claramente para quem vai o recado dado na canção. Ah, e é claro, tenho que mencionar o ritmo contagiante dessa faixa.


sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Livro: entre o poder simbólico e a obsolescência (III)


[Atenção: o texto abaixo é o terceiro de uma discussão 
iniciada aqui (1ª parte) e que teve prosseguimento aqui (2ª parte)]

Na primeira postagem desta série, deixei no ar algumas perguntas. E uma delas foi: o fim do livro - se é que isto vai acontecer num futuro imediato - deixará um certo tipo de leitor (como este blogueiro) desamparado? 

Eu pensava, ao formular esse questionamento, no livro como suporte material (possivelmente o mais tradicional deles) para os textos elaborados pelas mentes humanas. Leitores inteligentes, entretanto, sabem que o mais importante numa obra é o seu conteúdo (suas ideias e formulações conceituais e, no caso da Literatura, também sua estilística). Buscamos num texto, antes de tudo, o seu lado, digamos, "espiritual" e não nos importa que a sua - ainda me valendo da mesma representação - forma "corpórea" esteja materializada num rolo de papiro, num codex de pergaminho, numa brochura de papel ou na tela de um notebook. Noutras palavras, o livro é só um objeto, um instrumento.

Mas lá do fundo da minha cabeça vem uma voz rouquenha, com um sotaque fora de moda (se percebe no seu tom) que me diz: "Absolutamente! Não é um objeto!". O livro impresso - o nosso tão familiar livro de papel - deveria erigir-se do terreno mundano das mercadorias (ele próprio uma mercadoria obsoleta, diriam muitos por aí) e atingir as alturas do sublime, digno de veneração.

Pronto: eis a armadilha do fetichismo:

É então que me lembro do conceito marxista. Num arguto ensaio* (ao qual retornarei mais adiante) o antropólogo Igor Kopytoff considera que:

"Para Marx, o valor das mercadorias é determinado pelas relações sociais ocorridas na sua produção; mas a existência do sistema de troca faz com que o processo produtivo se transforme em algo remoto e mal entendido, e ele 'mascara' o valor real da mercadoria [...] Isso permite que a mercadoria seja socialmente dotada de um 'poder' de fetiche que não se liga ao seu valor real".

E esse "poder" acaba conferindo a determinadas coisas - neste caso, livros - um verniz de prestígio ainda bastante reluzente nos dias atuais, quando todos admitem a trivial condição delas como produtos comercializáveis.

O fetichismo em torno desse objeto remete-me ao ensaio Do fim da cultura ao fim do livro, de Sérgio Paulo Rouanet** (já mencionado aqui). Segundo o ensaísta, "todos nós, intelectuais, vivemos dos livros e para os livros" e "como se isso não bastasse, somos incorrigíveis fetichistas, fascinados pelos livros enquanto objetos, e não somente enquanto depositários de ideias e informações". Sendo "filhos da 'galáxia de Gutenberg' ", teríamos restrições em "aceitar facilmente a passagem para outra galáxia". Nossa inadaptação às mudanças provocadas pelo atual cenário tecnológico pode explicar muitas das alegações a respeito do fim do livro. E, se "levado às últimas consequências, esse comportamento é, certamente, irracional", adverte Rouanet. Os novos suportes e recursos informacionais são uma realidade incontestável e, à sua maneira, disseminam conhecimento como nenhum outro instrumento o fez até hoje.

O que estamos vivenciando hoje, talvez, seja "uma crise da cultura da qual a crise do livro seria, senão um epifenômeno, pelo menos um sintoma", pensa Sérgio Paulo Rouanet. O autor considera que

"As pessoas não leem, não por serem analfabetas, mas por serem vítimas do fenômeno social do 'iletrismo', ou seja, a recusa de ler, mesmo quando elas dominam a técnica da leitura. É nisso, fundamentalmente, que a globalização é trágica, não por dissolver identidades, mas por 'planetarizar' a massificação, carregando os detritos culturais até os confins do universo e, assim, destruindo a curiosidade intelectual sem a qual deixa de existir o prazer da leitura".

Para o ensaísta, o ser humano contemporâneo, globalizado,

"foi condicionado para deixar de ler, passando por uma pedagogia da não-leitura; não lê porque a leitura exige esforço, enquanto a mídia lhe oferece uma satisfação instantânea [...] não lê porque passa por uma aprendizagem regressiva que faz com que regrida do estágio do pensamento conceitual, sem o qual nenhuma leitura é possível, para o estágio do pensamento por imagens, efêmeras por natureza, sem vínculos entre si, e que nada podem fazer além de refletir um mundo igualmente desconexo - por essa razão, ininteligível - e, por consequência, não transformável. É evidente que o contrário é, igualmente, verdadeiro: por não ler, o homem não aprende a pensar segundo os princípios da causalidade, do ponto de vista histórico e político".

O livro, símbolo do pensamento conceitual e da capacidade de olhar o mundo de uma perspectiva histórica e política, é considerado obsoleto na atualidade, possivelmente não pela materialidade de que é feito, mas pela função sociocultural que exerce.

Continuo na próxima postagem.
____________
* KOPYTOFF, Igor. A biografia cultural das coisas: a mercantilização como processo. In: APPADURAI, Arjun. A vida social das coisas: as mercadorias sob uma perspectiva cultural. Niterói: Editora da UFF, 2010. p. 89-121 [Tradução de José Augusto Drummond]

** ROUANET, Sérgio Paulo. Do fim da cultura ao fim do livro. In: PORTELLA, Eduardo (Org.). Reflexões sobre os caminhos do livro. São Paulo: Moderna, 2003. p. 57-77

BG de Hoje

Cada vez que noto alguém ouvindo música-porcaria, me pergunto: porque fechar a sua mente com tanta má qualidade? É tão mais fácil hoje encontrar bons artistas espalhados por esse mundão... Como, por exemplo, a cantora e compositora franco-nigeriana ASA (pronuncia-se 'ASHA'). A canção chama-se Jailer.

quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Livro: entre o poder simbólico e a obsolescência (II)


(Esta postagem dá continuidade ao texto anteriormente publicado aqui)

Há uma passagem de Quincas Borba* da qual sempre me lembro quando o assunto é o livro, na sua condição material de objeto. Rubião, protagonista desse extraordinário romance de Machado de Assis, acaba de saber que o filósofo amalucado para quem trabalhou o nomeara "herdeiro universal". E passa a imaginar os bens legados:

"E quanto seria tudo? ia ele pensando. Casas, apólices, ações, escravos, roupa, louça, alguns quadros, que ele teria na Corte, porque era homem de muito gosto, tratava de cousas de arte com grande saber. E livros? devia ter muitos livros, citava muitos deles".

No rol dos itens acima, dois deles prendem minha atenção.

Parte da herança de Rubião era composta por escravos. Nunca, nunca mesmo, podemos esquecer que um enorme segmento da população brasileira foi, durante séculos, considerado mercadoria, sem direitos de qualquer natureza, sem cidadania. A história e a trajetória sociocultural do país foram profundamente marcadas por esse flagelo. Nunca nos esqueçamos disso.

O outro item a ser destacado são os livros, para os quais o personagem olha apenas com interesse venal, pois, no decorrer da narrativa, revelar-se-á um tremendo ignorante, não desejando aprimorar-se por meio da leitura. E parece espantoso para nós, viventes do século XXI, que o livro um dia possa ter sido tão valioso - tomado, exclusivamente, como bem material - a ponto de ser um item relevante das heranças.

Hoje os livros são um produto relativamente barato**. Mas nem sempre foram. Steven Roger Fischer, na sua ótima História da leitura***, assevera que

"A partir do final do século XII, os livros - ou seja, códices em pergaminho escritos à mão, muitos deles, no norte da Europa, consistindo em pele de bezerros - passaram a ser lucrativos artigos comerciais. [...] Os que emprestavam dinheiro, reconhecendo o valor comercial dos livros, chegavam a aceitá-los como garantia; em particular, os estudantes tinham os costume de tomar dinheiro emprestado mediante o valor de um volume estimado. No século XV, as importantes feiras em Frankfurt e Nördlingen, na Alemanha, passavam também a comercializar livros".

O alto preço desse objeto se devia, principalmente, ao custo da mão-de-obra (aqui no sentido literal, pois os livros eram todos manuscritos) e ao material utilizado. Wilson Martins, em seu precioso e enciclopédico trabalho A palavra escrita****, observa que "as informações [registradas ao longo da história] sobre o preço do pergaminho, embora dificilmente avaliável em moeda atual, demonstram que era elevadíssimo em comparação com outros bens de consumo".

A invenção da prensa e da tipografia, além do surgimento do papel, foram fatores que diminuíram o preço do produto, mas não tanto assim. Não havia condições sociais e econômicas para o estabelecimento de um grande contingente de consumidores. "Ainda bastante raros" - anota Steven Roger Fischer - "os livros eram quase tão valorizados na Renascença quanto na Idade Média, sendo seu roubo muitas vezes punido com a pena de morte por se tratar de artigos equiparados a bens como cavalos e gado".

Livros só se tornarão mercadorias acessíveis às diversas classes sociais a partir da primeira metade do século XIX, com a produção em escala industrial e o surgimento de um autêntico mercado editorial, possibilitado pela escolarização em massa.
. . . . . . . 

Ainda que, na atualidade, os livros sejam encontrados em centenas de milhões de lares mundo afora, não consigo deixar de me encafifar.

Duvido que eu faça parte de uma sociedade leitora, em seu sentido pleno, e não só meramente alfabetizada.

Não acredito, de modo algum, que a maioria das pessoas com quem convivo valorize os livros, não como objetos em si, mas naquilo que eles simbolizam como nenhum outro artefato humano conseguiria sê-lo: fontes essenciais para o aprimoramento de nossa cognição.

Continuo na próxima postagem.
 
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* ASSIS, Machado de. Quincas Borba. Rio de Janeiro: Garnier, 1998

** Quero deixar bem claro que NÃO sou daqueles indivíduos que ficam papagueando: "Livros são caros! Livros são caros!". Noutra oportunidade, escreverei sobre isso.

*** FISCHER, Steven Roger. História da leitura. São Paulo: UNESP, 2006 [Tradução de Claudia Freire]

**** MARTINS, Wilson. A palavra escrita: história do livro, da imprensa e da biblioteca. 3 ed. rev. e ampl. São Paulo: Ática, 2002

BG de Hoje

Houve uma época (ah, como o tempo voa!...) que os TITÃS formavam uma excelente banda de rock. Õ Blésq Blom, disco lançado em 1989, representa, na minha opinião, o ápice criativo daqueles caras. E Flores é a canção que melhor demonstra isso. Começa pelo riff de guitarra simples, rascante e inesquecível de Tony Belloto, depois a linha de baixo bem melódica, tocada por Nando Reis, e o coroamento nos solos de sax executados pelo Paulo Miklos. Um musicaço!


sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Esporte, a figura do ídolo e o dinheiro



Na última postagem, estava tratando do livro enquanto objeto que carrega consigo, ao mesmo tempo, tanto um poder simbólico e cultural imenso quanto o estigma da obsolescência e da inadequação a estes novos tempos internéticos. Deveria dar continuidade ao tema, mas não gostei dos textos que elaborei nas últimas semanas. Tentarei modificá-los; se ficarem pelo menos razoáveis, volto ao assunto. Hoje escreverei sobre outra coisa.

. . . . . . .

Neste mês de outubro a edição 1407 da revista Placar* publicou uma matéria em que se divulgava uma daquelas famosas listas da Forbesnesta, em particular, o destaque eram os atletas mais bem pagos do planeta. Um dado logo chama atenção: só há duas mulheres entre os 100 esportistas com melhor remuneração. São duas tenistas: a russa Maria Sharapova e a norte-americana Serena Williams, representantes daquele que é "possivelmente o esporte menos machista da atualidade e da história", segundo Edgardo Martolio, que assina a matéria da Placar. NOTA: Embora Sharapova tenha um desempenho esportivo inferior ao de Serena (basta olhar a posição ocupada por elas no ranking da WTA), o faturamento da russa é maior, sobretudo por causa dos contratos publicitários (para isso há uma explicação - nem um pouco nobre - como já escrevi aqui).

E por falar em publicidade, parte significativa do ganho dos atletas mais ricos vem dessa área e não somente dos salários e prêmios que recebem ao competir. São as grandes corporações e empresas querendo associar sua marca a certos esportistas vistos pelo público como seres humanos fora do comum. Por isso não é de se espantar que 62% da lista da Forbes seja made in USA, a nação que - gostemos ou não - mais sabe lucrar com o marketing esportivo.

Olho para este nosso mundão globalizado - em que o grande capital dita as regras do jogo (valendo-se de todos os recursos de que dispõe, inclusive da publicidade) - e confesso não saber como me posicionar (politicamente, quero dizer) diante desse fenômeno tão característico de nossas sociedades de massa chamado esporte profissional.

Esclareço que não costumo formular questionamentos do tipo "é justo que Beltrano ganhe X milhões por ano?". Pessoalmente, acho que atletas devem ganhar bem simplesmente porque acho que qualquer trabalhador deveria ser bem remunerado, independentemente da atividade que exerça. Tenho consciência de que isso é tremendamente utópico (e até ingênuo), pois o capitalismo, que tem como um de seus fundamentos a desigualdade econômica, precisa sobrevalorizar determinadas ocupações em detrimento de outras para perpetuar sua existência. As estrelas do esporte são uma das muitas engrenagens desse mecanismo. Não vou, entretanto, colocá-las no papel de vilão (até porque esse não é o meu ponto de vista).

Creio que os atletas profissionais funcionam como modelo e espelho para um sem-número de pessoas por aí. Seria burrice, penso eu, menosprezar a grande influência que esses esportistas exercem sobre o comportamento e as escolhas de seus fãs. Este blogueiro é um exemplo: decidi praticar o basquete, quando era jovem, por causa de um dos meus maiores ídolos, a ex-jogadora da seleção brasileira (Magic) Paula. Até sonhei em seguir carreira, mas faltavam alguns requisitos (talento, por exemplo). Ainda assim, a prática esportiva amadora, durante muito tempo, me trouxe grande satisfação.

Contudo, preocupo-me com a imensa concentração de dinheiro em determinadas modalidades (e, consequentemente, a falta de grana noutras). Só há 7 esportes representados pelos 50 atletas mais ricos do mundo - Boxe, Futebol, Futebol Americano, Tênis, Basquetebol, Golf e Baseball. Devo acrescentar que há entre eles um representante do críquete e quatro da Fórmula 1 (embora eu tenha certa resistência para considerar corridas de automóvel como sendo um esporte...). Penso que seria bem melhor para o universo esportivo - e para a sociedade em geral - se o leque de modalidades exploradas como entretenimento (e investimento) fosse maior. Ídolos surgidos noutras atividades menos badaladas poderiam estimular parcelas da população que não se reconhecem nos atuais astros dos esportes mais lucrativos.

Acredito que esporte é um assunto tão sério quanto qualquer outro poderia ser. É provável que volte a falar disso em breve.

* Os 100 atletas mais bem pagos do mundo, na última temporada. Placar. n. 1407, out. 2015. p. 36-41

BG de Hoje

Uma música ideal pra se ouvir tomando uma cerveja gelada (algo que farei daqui a pouco): Show me your soul, RED HOT CHILI PEPPERS.


quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Livro: entre o poder simbólico e a obsolescência (I)


Há uma conhecida praça em Berlim chamada Bebelplatz*. O local é usado às vezes para eventos públicos e manifestações políticas. Também é muito procurado por turistas. Muitas dessas pessoas, lá chegando, põem-se a olhar para um recorte quadrado no chão, coberto por vidro resistente. Trata-se de um monumento, colocado no subsolo, intitulado (Versunkene) Bibliothek ["Biblioteca (afundada)", em português].

Concebido pelo artista plástico israelense Micha Ullman e inaugurado em março de 1995, Bibliothek é um memorial que faz referência à queima de aproximadamente 20.000 livros, ocorrida naquela mesma praça, em 10 de maio de 1933. Integrantes da Liga de Estudantes Nazistas, grupos da Juventude Hitlerista e membros da SS, espicaçados pelo discurso de Joseph Goebbels (o ministro da Propaganda do governo de Hitler), foram os responsáveis por essa ação bárbara e estúpida.

O monumento é constituído, basicamente, por estantes vazias, em cujo espaço poderiam caber os vinte milhares de livros queimados pelos nazistas. Na placa do memorial foram reproduzidos versos do escritor Heinrich Heine: "Das war ein Vorspiel nur, dort wo man Bücher verbrennt, verbrennt man am Ende auch Menschen" ("Isso foi apenas um prelúdio: onde se queimam livros, no final irão também queimar pessoas", seria o sentido aproximado em português).

Nessa mesma Bebelplatz, durante a Copa do Mundo de 2006, ficou em exibição uma escultura de 12 metros de altura intitulada Der moderne Buchdruk ("A moderna tipografia" ou "A moderna impressão", em português). É a sua imagem, ali no alto, que ilustra esta postagem. A obra fazia parte do projeto Terra de Ideias, cujo objetivo era destacar a contribuição dos alemães em determinadas áreas**. Além dos pensadores e literatos incluídos nas lombadas da pilha de livros, Der moderne Buchdruk nos remete, implicitamente, a Johannes Gutenberg, o "pai" da imprensa moderna.

A meu ver, tanto a (Versunkene) Bibliothek quanto a  Der moderne Buchdruk representam, inequivocamente, o (ainda) prestigioso lugar ocupado pelo livro em nossas sociedades, enquanto objeto-símbolo do saber. No primeiro caso, os livros (e o conhecimento contido nestes) foram considerados inimigos de um regime político iníquo. No segundo, os livros (e as ideias e/ou recursos artísticos contidos nestes) atingiram tamanha envergadura que influenciaram não só uma nação, mas boa parte da cultura ocidental.

Entretanto, todos já ouvimos que tais objetos em breve irão desaparecer. Ou, talvez, na melhor das hipóteses, "amanhã, os livros podem vir a interessar apenas a um punhado de irredutíveis que irão saciar sua curiosidade nostálgica em museus e bibliotecas", como especulou Umberto  Eco, poucos anos atrás, de maneira descompromissada, em Não contem com o fim do livro***. Seja como for, eles permanecem, por enquanto, disponíveis para uma imensa quantidade de gente.

Gostaria - com a permissão do(a) eventual leitor(a) - relatar uma situação rotineira em meu ambiente de trabalho que vai ao encontro do que estou dizendo a respeito do poder simbólico conservado (até quando?) pelos livros.

Vários estudantes (crianças e adolescentes), ao entrar na biblioteca, procuram por aquilo que eles próprios chamam de "livros grandes". E o que seriam esses "livros grandes"? Publicações com centenas de páginas, não ilustradas, preferencialmente encadernadas em capa dura e exibindo um ar de antiguidade. Qual o motivo para esse tipo de demanda entre indivíduos que, na maioria das vezes, não detêm sequer os rudimentos da alfabetização?

Perguntando aqui e ali, acabo achando a resposta. Esses estudantes querem apenas simular maior inteligência ou exibir um acervo de conhecimentos mais amplo do que de fato possuem. E ter em mãos um catatau repleto de folhas escritas é um bom ardil - mesmo que não se compreenda nenhum de seus parágrafos ou que a obra em questão seja uma rematada bobagem. Para ser justo, conheço também muitos adultos que lançam mão do mesmo estratagema.

Reconheço que a leitura (em seu sentido mais profundo, imersivo, como já discuti aqui) é uma atividade exercida, de maneira contínua, por uma minoria apenas; porém, todo o restante da sociedade (inclusive parte do imenso grupo dos não-leitores) ainda reconhece no livro, de forma positiva, um receptáculo de sabedoria.

Os questionamentos, contudo, não cessam.

Os novos suportes e tecnologias de informação que condenaram o livro à obsolescência conseguem proporcionar a mesma qualidade de interação entre texto e leitor da era pré-eletrônica/digital? Se o livro simboliza uma parte importante da cultura e da civilização, a dissipação deste implicará um declínio de determinados valores culturais e civilizacionais? O fim do livro - se é que isto vai acontecer no futuro imediato - deixará um certo tipo de leitor (como este blogueiro) desamparado?

Tratarei disso noutra ocasião.

* A praça, antigamente, era conhecida como Opernplatz

** Todas as seis obras desse projeto foram realizadas pela empresa alemã EDAG

*** CARRIÉRE, Jean-Claude; ECO, Umberto. Não contem com o fim do livro. Rio de Janeiro: Record, 2010 [Tradução de André Telles] 

BG de Hoje

Claro que considero PAULA LIMA uma cantora de primeira. Mas não posso deixar de dizer: como é linda! Feita a declaração, vamos à música: Cuidar de mim, composição de Seu Jorge, Gabriel Moura e Rogê.

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

A submissão epistemológica de Blaise Pascal



Um modo bastante corriqueiro de realizar a exegese de um texto filosófico canônico é interpretá-lo levando em consideração dados extraídos da biografia de seu autor. Para ser franco, não gosto desse expediente, pois, em muitos casos, a vida pessoal de um filósofo não ajuda a explicar sua obra. Entretanto, no caso de Blaise Pascal, a coisa muda de figura.

Devo admitir, entretanto, que, não sendo um estudioso particularmente interessado na obra pascalina, conheço apenas, de forma superficial, alguns fatos relacionados à sua biografia. Dessa maneira, prosseguirei, valendo-me somente das mais difundidas informações sobre a vida do filósofo francês.

Como se sabe, Blaise Pascal morreu antes dos 40 (1623-1662). Seus últimos anos foram bem penosos: a saúde, frágil desde a infância, esvaiu-se paulatinamente em razão das doenças constantes, incapacitando-o até mesmo para a escrita (diversos trechos de seu célebre trabalho póstumo - Pensamentos - foram ditados a terceiros). Mesmo sendo filho de um alto funcionário da burocracia estatal e não tendo que trabalhar para se sustentar, Pascal deve ter experimentado o seu quinhão de sofrimento. Mas isso não o transformaria num santo, ainda que a irmã do filósofo, Gilberte Périer, tenha tentado algo nesse sentido.

Publicada em 1684, A vida de Pascal passou a ser anexada a muitas edições ulteriores dos Pensamentos (como a que tenho em mãos agora*). A autora, como numa hagiografia**, confere ao irmão uma aura de devoção e magnanimidade sobre-humana:

"É verdade que nunca vi alma mais naturalmente superior a todas as manifestações humanas da corrupção natural; e não era somente em relação às injúrias que se mostrava tão insensível; era-o igualmente no concernente a tudo o que fere os outros homens e os apaixona. Tinha seguramente uma grande alma, mas sem ambição, não desejando nem grandeza nem poder e considerando mesmo que tudo isso comporta mais miséria do que felicidade. Só aspirava aos bens para distribuí-los aos outros e seu prazer residia na razão, na ordem, na justiça, em tudo, enfim, capaz de alimentar a alma. E só muito pouco nas coisas dos sentidos".

Esse texto um tanto mistificador deu, provavelmente, sua contribuição para que Pascal (pelo menos até o início do século XIX) fosse considerado um exemplo de (bom) caráter para muitos. Excluindo-se suas fantasias e exageros retóricos, porém, A vida de Pascal apresenta pelo menos um dado importante para meu propósito hoje. Segundo Gilberte Périer, antes do filósofo atingir os 24 anos,

"tendo-lhe a Providência divina dado a oportunidade de ler escritos devotos, Deus o iluminou de tal maneira com essa leitura que ele compreendeu perfeitamente que a religião cristã nos obriga a viver tão-somente para Deus e não ter outro objetivo senão Deus".

Ora, ainda adolescente, Blaise Pascal já era considerado um matemático genial. Sua contribuição no cálculo de probabilidades (denominado por ele de alae geometria - "geometria do acaso") é significativa. Dessa maneira, não é incômodo que um pensador com tal capacidade consagre seus esforços finais à pretensa salvação da alma num pretenso além-túmulo, afundando-se no atoleiro da religião?

Neste momento, não consigo deixar de especular: teria sido Pascal um indivíduo tão atormentado pelas agruras da existência a ponto de simular um recolhimento monástico e sujeitar seu intelecto às inconsistências da teologia? O fato de estar a todo momento sob ameaça da morte (na forma de uma ou mais doenças) foi assim determinante para o rumo tomado por suas reflexões filosóficas? Por ter adotado como divisa a renúncia aos prazeres e "a toda forma de superfluidades" - como acreditava Gilberte Périer -, o filósofo francês não encenara em vida (uma vida relativamente curta para nossos padrões atuais, diga-se de passagem) uma tragédia pessoal semelhante à perspectiva trágica de sua própria filosofia?

A maior parte dos Pensamentos me aborrece***, mas lê-los, tendo em mente os vestígios de infortúnio que atribuo ao ambiente e às circunstâncias em que a obra foi elaborada, torna tudo mais estimulante.

Ao contrário de Descartes, Pascal não admitia um ponto seguro e garantido, acessível ao ser humano, a partir do qual o conhecimento poderia ser estabelecido: noutras palavras, Pascal foi um dos primeiros filósofos modernos a questionar a supremacia absoluta da razão (embora ele próprio não deixasse de ser, a seu modo, um racionalista). A razão humana é limitada; aquilo que ela conhece será sempre limitado:

"Todo esse mundo visível é apenas o traço imperceptível na amplidão da natureza, que nem sequer nos é dado conhecer mesmo de um modo vago. Por mais que ampliemos as nossas concepções e as projetemos além dos espaços imagináveis, concebemos tão-somente átomos em comparação com a realidade das coisas. Esta é uma esfera infinita cujo centro se encontra em toda parte e cuja circunferência não se acha em nenhuma".

De acordo com o filósofo, à ausência de "uma plataforma firme e uma base última e permanente" sobre a qual se possa erguer o conhecimento junta-se o fato de "[as coisas] serem simples em si, enquanto nós somos compostos por duas naturezas antagônicas e de gêneros diversos, alma e corpo", completando nossa incapacidade de conhecer (e aqui estamos diante do velho dualismo que sustenta toda uma concepção metafísica da existência).

Se somos - segundo o autor de Pensamentos, OK? - "infinitamente incapaz[es] de compreender os extremos" e permanece vedado a nós "tanto o fim das coisas como o seu princípio", fechados ambos "num segredo impenetrável", o que nos resta fazer? Buscar a Deus por intermédio de Jesus Cristo, responderia Pascal, para, desse modo, aplacar "a doença principal do homem": a curiosidade.

Pascal defendia o preceito do Deus absconditus, ou seja, um ser divino "infinitamente incompreensível, pois, não tendo partes nem limites, não tem nenhuma relação conosco". Mas como se sabe que ele existe? Não se pode determiná-lo pela razão. É preciso então recorrer à fé para aceitá-lo. E o que é a fé? "É o coração que sente Deus, e não a razão. Eis o que é a fé: Deus sensível ao coração, não a razão".

Há várias menções ao coração no texto do filósofo francês (inclusive na conhecidíssima frase "O coração tem suas razões, que a razão não conhece: percebe-se isso em mil coisas"). Sendo a razão insuficiente para o conhecimento total das coisas do mundo, Pascal - e nesse caso, acertando ao mesmo tempo em que erra - torna relevantes a intuição e as emoções no conjunto das tentativas de entendimento humano. É por esse motivo que ele afirma: "Conhecemos a verdade não só pela razão mas também pelo coração".

A solução apresentada por Pascal para solucionar a incapacidade humana de conhecer é (para usar a expressão consagrada por Kierkegaard) dar um salto enorme: submeter o escrutínio racional à fé religiosa, o que resulta na paradoxal sentença: "Submissão e uso da razão, eis em que consiste o cristianismo".

Nem preciso dizer que acho essa solução desprezível. Não obstante, olho com certa simpatia para esse pensador angustiado.
__________
* PASCAL, Blaise. Pensamentos. 2 ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979 [Tradução de Sérgio Milliet] (Coleção Os pensadores)

** Vale lembrar que "vidas de santos" eram material de leitura muito difundido na Europa desde o final do século XVI até a primeira metade do século XIX.

*** Há, contudo, trechos expondo a antropologia filosófica de Pascal pelos quais tenho grande interesse e escreverei sobre eles noutra oportunidade.

BG de Hoje

Downbound train (BRUCE SPRINGSTEEN) - que em bom "mineirês" poderia ser traduzida como "Trem despinguelado" - narra a história de um cara comum, cuja vida é uma sucessão de pequenas e grandes infelicidades. E então ele se pergunta: "Don't you feel like you're a rider on a downbound train?" Eu me sinto assim quase o tempo todo.


terça-feira, 1 de setembro de 2015

Campo Geral: uma história que se lê para ficar triste


"Os outros têm uma espécie de cachorro farejador, dentro de cada um, eles mesmos não sabem. Isso feito um cachorro que eles têm dentro deles, é que fareja, todo o tempo, se a gente está mole, está sujo ou está ruim, ou errado... As pessôas, mesmas, não sabem. Mas, então, elas ficam assim com uma precisão de judiar da gente..."


Fala do Dito, personagem de Campo Geral, de João Guimarães Rosa.

 
 
O ensaísta e historiador Alberto da Costa e Silva observou, com acerto, que "poucos, pouquíssimos escritores souberam tão bem captar as iluminações da meninice quanto Guimarães Rosa. Os seus meninos são tão reais, e tão meninos, que cada um de nós neles revê suas saudades" *.

De fato, alguns dos mais inesquecíveis personagens do universo rosiano (ou roseano, como queiram) são crianças: lembro, por exemplo, do (simplesmente assim chamado) Menino, do conto As margens da alegria, ou a Nhinhinha, encantada criatura presente em A menina de lá, ambos os textos integrando o volume Primeiras estórias. Antes destes, porém, há ainda o Tiãozinho, guia de um carro puxado por sábios bovinos em Conversa de bois (de Sagarana). E, claro, há também Miguilim, protagonista da extraordinária novela Campo Geral**.

Só que quando leio (e releio) esta última história, não é saudade o que sinto, mas sim uma grande tristeza. E é justamente a sua tristeza aquilo que, na condição de leitor, busco, pois as obras de arte verdadeiras devem provocar em cada um de nós diferentes matizes de sentimentos e é isso que as torna, ao lado de suas qualidades técnicas e estilísticas, grandiosas.

Cercado por um ambiente tomado pela brutalidade, representada principalmente pela figura paterna, Miguilim estava sempre "receando os desatinos das pessoas grandes". Ao perguntar para o irmão Dito (que, embora mais novo que ele, era possuidor de maior sabedoria) se o considerava um "bobo de verdade", recebe uma sublime resposta: "É não, Miguilim, de jeito nenhum. Isso mesmo que não é. Você tem o juízo por outros lados...". Parecido com a mãe, sonhador, ficava "todo olhando para a tristeza".

Sem saber ler ou escrever, Miguilim gosta de inventar histórias. Criança dotada de uma sensibilidade ímpar, com um modo bem peculiar de reagir ao mundo, o personagem tem aversão por todos os elementos que possam transtornar seu ensimesmamento:

"Porque a alma dele temia os gritos. No sujo lamoso do chiqueiro, os porcos gritavam, por gordos demais. Todo grito, sobre ser, se estraçalhava, estragava, de dentro de algum macio miolo - era a começação de desconhecidas tristezas. O quirquincho de um tatú caçado. O afurôo dos cachorros, estrepolindo com o tatú em buraco".

Mas ele é apenas uma criança e, como lemos em certa altura da narrativa, "ser menino, a gente não valia para querer mandar coisa nenhuma". Ele sofre e não há nada que o leitor possa fazer; ambos partilhando a mesma triste impotência.

Quando li Campo Geral pela primeira vez, há muitos anos, foi um dilema ético vivenciado por Miguilim aquilo que mais atraiu minha atenção. Entregar ou não o bilhete escrito por Tio Terêz para a sua mãe: o menino fica agoniado por causa da difícil decisão e não recebe dos outros personagens a quem recorre nenhuma orientação satisfatória. É sem dúvida um momento fundamental do livro (e provavelmente escreverei sobre isso noutra ocasião), mas, após várias releituras, percebo hoje que sempre foi a figura mesma do protagonista, com a sua mistura de fragilidade e resistência, a razão do meu interesse e afeto por esse livro.

Apesar de irradiar esperança em suas últimas cenas, nunca conseguirei ler Campo Geral com o espírito leve. E é bom que seja assim.

Na próxima semana, volto a falar de filosofia, quando escreverei sobre Blaise Pascal.
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* Essa observação foi retirada de Estas Primeiras estórias, pequeno ensaio que constitui um dos prefácios da 50ª edição do livro Primeiras estórias, de João Guimarães Rosa, publicada pela Ediouro em 2011.

** ROSA, João Guimarães. Campo Geral. In: _________. Manuelzão e Miguilim: (Corpo de Baile). 11 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p. 17-152 (Não custa lembrar que Campo Geral, originalmente, integrava o livro Corpo de Baile, publicado pela primeira vez em 1956)

BG de Hoje

No começo da minha adolescência, a canção Luka, de SUZANNE VEGA, era um tremendo sucesso radiofônico. Gostava da canção - como permaneço gostando até hoje - sobretudo pela interpretação doce da cantora norte-americana. Só mais tarde fui compreender a amargura de sua letra, tratando de abuso infantil e do nosso comportamento omisso, muitas vezes, em relação ao problema.