sexta-feira, 20 de novembro de 2015

O mundo continua Caim: lendo a poesia de Adão Ventura


        

    "É hora
de sair do gueto/eito
    senzala
e vir para a sala
- nosso lugar é junto ao Sol."



Adão Ventura (do poema Agora)


 
 
Aprecio muito um site chamado I fucking love science (www.iflscience.com). O negócio por lá é vulgarização científica, se possível com um toque de bom humor. Mesmo tendo como objetivo tornar o universo das ciências um pouco mais compreensível para os leigos em geral (como este blogueiro), o site produz artigos bem elaborados - a despeito da pequena extensão deles - e tem o cuidado de sempre indicar as fontes originárias das informações divulgadas. Mas apesar de gostar bastante do I fucking love science, acabei tendo um ligeiro desagrado com algo que foi postado em sua página do Facebook.

Era um meme composto por uma foto de Bill Nye (conhecido nos EUA pelo programa de TV Bill Nye the Science Guy) e a seguinte declaração dele:

"Along with the evidence of common sense, researchers have proven scientifically that humans are all one people... The color of our ancestors skin and ultimately my skin and your skin is a consequence of ultraviolet light, of latitude and climate. Despite our recent sad conflicts here in the U. S., there really is no such thing as race. We are one species. Each of us much, much more alike than different. We all come from Africa. We all are of the same stardust. We are all going to live and die on the same planet, a pale blue dot in the vastness of space. We have to work together". [grifos do original]  *

Acho Bill Nye um cara inteligente e boa-praça. Suas palavras reproduzidas acima são inspiradoras, bem intencionadas e - sob um perspectiva estrita -, cientificamente corretas. Então por que fiquei incomodado com isso? Explicarei. E por ser um assunto complexo, tenho que estender este texto para além do tamanho habitual das minhas postagens aqui no blog. Peço compreensão e paciência do(a) eventual leitor(a).

Geneticamente falando - garantem-nos a biologia e a paleoantropologia -, não há realmente essa coisa de raça ("there really is no such thing as race"). Entretanto, como observou muito bem Ellis Cashmore**, o termo raça adquiriu ao longo dos séculos muitos sentidos, variando no decorrer do tempo:

"É importante ressaltar essas mudanças porque há uma suposição de que a palavra só pode ser usada de uma única maneira cientificamente válida. As diversidades físicas atraem a atenção das pessoas tão prontamente que elas não percebem que a validade da raça como conceito depende do seu emprego numa explicação. De acordo com esse ponto de vista, a questão principal não é o que vem a ser 'raça', mas o modo como o termo é empregado. As pessoas elaboram crenças a respeito de raça, assim como a respeito de nacionalidade, etnia e classe, numa tentativa de cultivar identidades grupais".

Desse modo, o termo raça indica também uma construção sociocultural, tal como brasileiro, judeu ou classe média. É por causa de sua polissemia que o termo " 'raça' é um significante mutável que significa diferentes coisas para diferentes pessoas em diferentes lugares na história e desafia as explicações definitivas fora de contextos específicos", diz Cashmore. Ainda segundo o autor, há quatro sentidos principais para essa palavra. O último deles - "um grupo de pessoas socialmente unificadas numa determinada sociedade em virtude de marcadores físicos como a pigmentação da pele, a textura do cabelo, os traços faciais, a estatura e coisas do gênero" - é o que este blogueiro tem em mente todas as vezes em que usa a palavra raça aplicada a grupos humanos. E é importante dizer que "quase todos os cientistas sociais usam o termo somente neste quarto sentido de grupo social definido pela visibilidade somática".

Ou seja: se por um lado não faz sentido falar em raças humanas no contexto da biologia (ou melhor dizendo, no contexto da genética), faz todo sentido falar em diferenças e pertencimento raciais no contexto sociológico.

Se é verdade, como assinalou Ellis Cashmore, que a maioria das sociedades não fizeram distinções internas em relação aos grupos humanos que as compunham, fica difícil, por sua vez, não constatar que a civilização ocidental moderna o fez (e continua fazendo):

"As sociedades que reconhecem as raças sociais são invariavelmente racistas, no sentido de que as pessoas, em especial os membros do grupo racial dominante, acreditam que os fenótipos físicos estão ligados a características intelectuais, morais e comportamentais. Raça e racismo, portanto, andam de mãos dadas".

Estamos acostumados com declarações do tipo "raça não existe, somos todos iguais", "eu não olho a cor das pessoas, só aquilo que elas tem por dentro", "devemos comemorar o dia da consciência humana, e não negra", às quais poderíamos adicionar uma que ficou bem na moda ultimamente: "#SomosTodosBláBláBlá". É bastante sintomático que essas frases partam, na maioria das vezes, de indivíduos para os quais não há interdições, obstáculos ou constrangimentos ocasionados por seu fenótipo. Noutras palavras: quem lança esses lugares-comuns vazios (mas aparentemente bem intencionados) é geralmente branco, do mesmo modo que são brancos a maioria esmagadora dos astros de cinema, os modelos da publicidade, os executivos mais poderosos e os donos dos grandes conglomerados. E, se considerarmos o caso brasileiro, também os ocupantes dos postos de poder dentro da administração pública.

Todas essas pessoas brancas têm alguma vivência como objetos de ações racistas? Por que diabos estariam essas pessoas mais capacitadas do que as outras, não-brancas, para dizer o que é ou não racismo, sendo que o segundo grupo de indivíduos é geralmente o alvo preferencial da discriminação, do preconceito e da intolerância?

Sei que o tema pede maior aprofundamento e uma discussão mais detida; receio, contudo, estar me demorando. E ainda nem sequer comecei a tratar do assunto central dessa postagem, para o qual o texto até então elaborado está servindo apenas como preâmbulo. Avancemos, então. Espero que o(a) eventual leitor(a) tenha me acompanhado até aqui e permaneça até o final.

. . . . . . .

E já que se falou tanto em raça, é necessário reconhecer que nunca faltou ao poeta mineiro Adão Ventura a consciência de seu pertencimento racial. Essa consciência evidencia-se em vários de seus textos***:

"Faça sol ou faça tempestade
meu corpo é fechado 
por esta pele negra"
                                  (Do poema Faça sol ou faça tempestade)

"Em negro
teceram-me a pele
Enormes correntes
amarram-me ao tronco
de uma nova África"
                                 (Do poema Um)

É preciso dizer, sem véus retóricos, as muitas implicações da negritude:

"Para um negro
a cor da pele
é uma sombra
muitas vezes mais forte
que um soco"
                                 (Do poema Para um negro)

Não falta ao poeta, obviamente, o conhecimento de nossa história. E, numa estrofe apenas, desmonta-se a farsa de nossa propalada "democracia racial":

"Minha carta de alforria
não me deu fazendas
nem dinheiro no banco
nem bigodes retorcidos"
                                (Do poema Negro forro)

Tem razão Sebastião Nunes**** ao dizer que a poesia de Ventura "vai direto na veia, ataca no ponto certo, expondo as feridas da raça, abertas por séculos de humilhação, nas senzalas e nas casas-grandes, nas vilas e nas cidades, nos salões e nas ruas, no passado e no presente".

Essa poesia amarga e autêntica olha a realidade sem ilusões. Daí qualificar esse nosso mundo torpe como um "mundo Caim", aludindo ao nefando personagem bíblico:

"O mundo continua Caim
Uma bomba comprime meu coração
reduzindo-o a chumbo e pólvora.
Restam-me os sonhos,
também já quase plastificados".

Para que as palavras não assumissem "o fosco/ou o incolor da hipocrisia" (como se lê no belíssimo poema Limite), Adão Ventura lutou em cada um de seus escritos.

* tradução aproximada: "Ao lado da evidência de senso comum, pesquisadores provaram, cientificamente, que os humanos são todos um único povo... A cor da pele de nosso ancestral e, finalmente, da minha pele e da sua pele é a consequência da luz ultravioleta, da latitude e do clima. Apesar dos recentes e tristes conflitos aqui nos EUA, não há realmente essa coisa de raça. Nós somos uma única espécie. Cada um de nós é muito mais parecido do que diferente. Nós todos viemos da África. Nós todos somos o mesmo pó estelar. Nós todos vamos viver e morrer no mesmo planeta, um pálido ponto azul na vastidão dos espaço. Nós temos que trabalhar juntos". [grifos do original]

**  CASHMORE, Ellis. Dicionário de relações étnicas e raciais. São Paulo: Summus, 2000.[Tradução de Dinah Klevel] 

* * * VENTURA, Adão. Costura de nuvens: antologia poética. Sábara: Dubolsinho, 2010.

**** Essas considerações fazem parte do prefácio da antologia Costura de nuvens acima referida. E aproveito para reconhecer aqui o trabalho heróico de Sebastião Nunes através da Edições Dubolsinho, enfrentando as adversidades desse mercado editorial tão cruel com a poesia e as pequenas editoras.

BG de Hoje

Assim como JAMES BROWN, hoje eu canto:  Say it loud (I'm black and I'm proud)