sábado, 29 de maio de 2010

Jogando água no chope da virtualidade (5)

"O deslumbramento das pessoas ante os triunfos do telégrafo e do telefone leva-as a esquecer com frequência o fato de que aquilo que realmente importa é o valor do que se tem a dizer e que, em comparação a isso, a velocidade ou lentidão dos meios de comunicação é uma preocupação que apenas por usurpação pôde alcançar o presente status [...]. Essa preponderância dos meios sobre os fins encontra a sua apoteose no fato de que o periférico na vida, aquilo que está fora de sua essência básica, se assenhorou do seu centro e até de nós mesmos [...]. Se considerarmos a totalidade da vida, então o controle da natureza por meio da tecnologia só é possível ao preço de nos escravizarmos a ela e de abandonarmos a espiritualidade como o alvo central da vida".

Georg Simmel (1907)


Já se discutiu aqui o conceito (mais amplo) de virtual. Nesta e nas postagens seguintes, porém, quando empregar o termo virtual ou virtualidade, estarei usando-o em sentido restrito, para me referir às redes de comunicação do ciberespaço.

E está na hora de deixar as coisas mais claras: a crítica que venho fazendo à era virtual incide particularmente sobre alguns modelos comportamentais e respectivo quadro de valores, e que os produtos típicos dessa era - celulares,  computadores pessoais, notebooks, consoles de videogame, i-qualquer-coisa, mp-qualquer-coisa, etc. -   ajudam a propagar. Tais modelos comportamentais, segundo penso, baseados na supervalorização da velocidade e da novidade per se, na  mais  irracional tecnofilia (paradoxalmente!) e no individualismo predatório, não preveem a "espiritualidade" como "o alvo central da vida". Sem pejo, admito que minha crítica é de caráter moral. E que fique claro: ela não se dirige a objetos, mas sim à apropriação que se faz destes.

Certamente parecerá estranho ao leitor habitual do blog ler a palavra espiritualidade neste espaço, uma vez que sou ateu. Mas não é o sentido místico do termo que busco: aqui, neste contexto, a palavra remete ao exercício de autocrítica, autorreflexão e aprimoramento ético, moral e intelectual que deveria ser feito, cotidianamente, por cada indivíduo, e que julgo essencial para que se viva em uma coletividade menos boçal e ordinária.

Não quero com isso assumir papel de "santo" e "cagar regras" para que os outros (e só os outros) sigam. Falo apenas de minha utopia. Frei Betto, em artigo* a ser retomado brevemente, considera que "a questão da espiritualidade não é uma questão simplesmente religiosa, é uma questão de educação da subjetividade, da interioridade". E acrescenta, como seria esperado de um católico:  "é uma questão de nos reeducarmos para a comunhão conosco mesmos, para a comunhão com a natureza, para a comunhão com o próximo e com Deus". Exceção à menção da divindade, concordo com o que afirma o escritor.

Em entrevista ao programa Roda Viva (TV Cultura), em 2001 (transcrição disponível aqui), Pierre Lévy - o filósofo com quem venho "debatendo" - justificou seu apreço pela era virtual com o seguinte argumento, entre outros:

[O fato de favorecerem o progresso das democracias] é um dos motivos pelos quais sou um grande entusiasta dessas técnicas de comunicação. Não pela proeza técnica em si, mas porque há uma relação profunda entre o progresso das formas de comunicação e o progresso da democracia, o progresso da emancipação do ser humano".

Não há dúvida de que as formas de comunicação recém-incorporadas culturalmente - através da telefonia móvel, da Internet, etc - são capitais para o combate a regimes ditatoriais por parte das populações subjugadas por estes, além de facilitar o acesso dos indivíduos a  informações, serviços e produtos antes restritos. Mas não vejo ao meu redor sinais dessa "emancipação", se tomarmos  a expressão com um significado mais amplo, relacionado à espiritualidade tal como foi definida acima.

Lévy, contudo, nos convida a analisar o atual cenário com  larga visão histórica, de forma retrospectiva e (principalmente) prospectiva: "[...] seria bom não ter o nariz colado na situação contemporânea, deixar-se levar pelos próprios fantasmas [...]". Concordo, mas meu objetivo é fazer uma alerta agora, no presente, a partir de situações que testemunho, já que não disponho da habilidade e nem dos instrumentos adequados para falar de outros tempos.

O ciberespaço nos permite visitar museus,  bastando, para isso, clicar o mouse; disponibiliza o conteúdo dos melhores jornais do mundo; nos faculta acesso a milhões de páginas de excelentes textos ficcionais. Mas prefere-se passar horas e horas fofocando no Orkut e no MSN ou atirando em inimigos feitos de uma infinidade de pixels. Isso, aliás, não deveria me surpreender. Os livros impressos, com o formato que atualmente conhecemos, apareceram há centenas de anos. Nem por isso as pessoas com quem convivo apreciam a leitura e o que ela pode proporcionar...

Talvez - e é muito provável que seja - meu modo de observar revele conservadorismo, preso a um modelo de cultura e educação, antes visto como emancipatório, e que já não faz sentido algum na era virtual. Preciso reaprender muita coisa.

A propósito, na entrevista citada, o filósofo francês observa:

"O que é aprender? É abandonar velhos reflexos, abandonar os preconceitos e penetrar em um conhecimento diferente. E isso é doloroso. É aceitar se transformar, aceitar e ir em direção à alteridade. Aprender é isso. Pensar é isso. Ir em direção de outra coisa".

Antes, porém, deixarei expostas minhas objeções e descontentamento com o que vejo a meu redor.
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* FREI BETTO (Carlos Alberto Libânio Christo). Crise da modernidade e espiritualidade. In: NASCIMENTO, Elimar Pinheiro do (Org.). Ética. Rio de Janeiro, Garamond, 1997

** Pierre Lévy no programa Roda Viva. Transcrição da entrevista disponível em http://www.rodaviva.fapesp.br/materia_busca/47/pierre%20l%E9vy/entrevistados/pierre_levy_2001.htm   Acesso em 19/05/2010

BG de Hoje

Se já não falei, falo agora: o grupo ALICE IN CHAINS é minha banda favorita. Numa época difícil, precisando arrumar emprego e sem moradia definida, tudo me parecia pior do que sempre foi. Até a música da época eu considerava chata e repetitiva. Um dia, contudo, liguei o rádio na Terra, extinta (e saudosa) emissora de BH que só tocava rock, e ouvi uma voz estranha e desesperada, acompanhada de um som lembrando épocas mais brilhantes da música pesada. Abaixo, versão ao vivo de It Ain't Like That, bela canção do primeiro disco do AIC e que até hoje, na minha opinião (suspeita) de fã, é subvalorizado.