quinta-feira, 23 de abril de 2009

"Todos têm a vidinha deles" (1)

Há um poema de Murilo Mendes* de que gosto muito. Abaixo reproduzo-o na íntegra:


NOTURNO RESUMIDO

A noite suspende na bruta mão que trabalhou no circo das idades anteriores
as casas que o pessoal dorme comportadinho
atravessado na cama
comprada no turco a prestações.


A lua e os manifestos de arte moderna
brigam no poema em branco.

A vizinha sestrosa da janela em frente

tem na vida um camarada

que se atirou de um quinto andar.
Todos têm a vidinha deles.


As namoradas não namoram mais

porque nós agora somos civilizados,
an
damos no automóvel gostoso pensando no cubismo.

A noite é uma soma de sambas

que eu ando ouvindo há muitos anos.

O tinteiro caindo me suja os dedos

e me aborrece tanto:
não posso escrever a obra-prima que todos esperam do meu talento.

Publicado no livro de estreia do poeta mineiro (Poemas, 1930), Noturno resumido traz, explicitamente, as marcas de seu pertencimento - ou melhor, sua filiação - ao movimento modernista que acabara de ser deflagrado. Mas não é isso que pretendo discutir. Quero me deter num único verso: "Todos têm a vidinha deles".

Na obra de onde este poema foi extraído, há diversos outros textos que retratam ambientes comuns da vida privada, como, por exemplo, Perspectiva da sala de jantar ("A filha do modesto funcionário público/ dá um bruto interesse à natureza morta/ da sala pobre no subúrbio".) Ao fazer isso, qual fora o objetivo do poeta? Acredito que Murilo Mendes intentava nos lembrar que as vidas das pessoas - da imensa maioria delas, inclusive a minha, de vários conhecidos, amigos e parentes - é absolutamente banal, comum (aliás, o verso Todos têm a vidinha deles é de uma trivialidade atroz, se lido fora do contexto em que se originou).

E aproveito agora este poema para falar de algo que me incomoda profundamente: a projeção e a hipertrofia de vidas privadas (mesmo que estas nada tenham de extraordinário), fenômeno explícito hoje em dia e exacerbado pelas tecnologias de comunicação e informação.

No final do ano passado, li um artigo do escritor norte-americano Jonathan Franzen (Amor sem pudor**) em que surgem certeiras observações sobre o fenômeno acima mencionado. Ao referir-se ao uso de celulares nos espaços públicos, com gente falando aos berros em seus aparelhos (a noção de espaço público nunca mais será a mesma), Franzen escreve:

"O componente celular de minha irritação é simples e direto. Simplesmente não quero - enquanto estou comprando meias [...] ou na fila para comprar um ingresso e me ocupando de meus pensamentos pessoais ou tentando ler um romance num avião quando o embarque ainda não foi encerrado - ser arrastado em minha imaginação para o mundo pegajoso da vida doméstica de algum ser humano próximo.

A própria essência do que é tão desagradável no celular como fenômeno social é que ele possibilita e incentiva o ato de impor o pessoal e individual ao público e comunal.

E não existe declaração de mais alto calibre que 'eu te amo' - não há nada pior que um indivíduo possa impor a um espaço público comum [quando grita essa frase num celular]. Mesmo 'vá à merda, imbecil!' é menos invasivo, na medida em que é o tipo de coisa que as pessoas iradas às vezes gritam em público e que pode igualmente bem ser dirigido a um estranho".


Claro que há exposições da vida privada igualmente irritantes além do uso do celular. Mas isso fica para a próxima postagem.
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* MENDES, Murilo. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997

** FRANZEN, Jonathan. Amor sem pudor. Folha de S. Paulo, São Paulo, 16 nov. 2008. Caderno Mais!, p. 4-6.