segunda-feira, 27 de abril de 2009

"Todos têm a vidinha deles" (3)

A internet também tem seus "apóstolos". De Nicholas Negroponte a Pierre Lévy, todos eles ressaltam as maravilhas da web. Nesses últimos anos de internauta, porém, só tenho a dizer que educadores como eu continuam a ser tão mal remunerados como sempre foram...

Mas voltemos ao tema. A superxposição de vidas privadas e o culto em torno do eu ganharam notável impulso com o advento das tecnologias de comunicação e informação, como os celulares - o que já observamos. E, logicamente, situação similar pode ser percebida também na Internet.

Dos sites de relacionamento, passando pelo envio de e-mails com piadinhas e fotos, inclusão de videos domésticos no Youtube e chegando à blogosfera, temos acesso, de forma sem precedente na história, ao que acontece na "vidinha" de centenas de milhares de totais desconhecidos. E antes que me classifiquem como o maior "apocalíptico" da era da Internet, deixo registrado que mantenho um perfil no Orkut (e em outros sites do tipo), troco e-mails além daqueles necessários ao trabalho, divirto-me muito no Youtube e, como se pode facilmente constatar, aderi ao mundo dos blogs. Não sou tão infenso às tecnologias; o ponto de discussão aqui é outro.

Pergunto: o que fazer com tanta "informação" sobre situações particulares de gente que nunca vimos mais gorda? A resposta mais simples (e melhor): nada. Felizmente, não há viés utilitário (pelo menos, não imediato) em cada um desses estoques de dados sobre vidas privadas.

Contudo, meu receio surge em razão do que é que se está perdendo ao mergulharmos de cabeça nesse tsunami de particularismo. E neste caso - e só neste caso - concordo com as opiniões de autores como Mark Bauerlein (que escreveu The Dumbest Generation), quando argumentam que a era digital, apesar de toda a acessibilidade que deu ao conhecimento historicamente acumulado, pode criar "vácuos intelectuais" na sociedade, ao estimular (até involuntariamente) o abandono de meios tradicionais de veiculação do saber e da informação e favorecer uma excessiva imersão nas vidas privadas (próprias e alheias).

No mês passado li um artigo* de Nicholas D. Kristof, jornalista do New York Times. Kristof tratava de uma tendência da era da Internet: escolher somente aquilo que vai ao encontro de nosso ponto de vista e de nossa visão de mundo. Na busca individual por notícias, ele afirma que

"[...] em geral, não desejamos realmente informações confiáveis, e sim as que confirmem nossas ideias preconcebidas. Podemos acreditar intelectualmente no valor do choque de opiniões, mas na prática gostamos de nos encerrar no útero tranquilizador de uma câmara de eco".

Kristof alerta para os riscos de, por exemplo, selecionar os blogs a serem lidos apenas por afinidades ideológicas e/ou afetivas. Pode-se argumentar que ele, no fundo, está apenas defendendo os chamados "jornalões" (dos quais é funcionário), mas é difícil não refletir sobre alguns de seus argumentos:

"[...] vamos nos irritar menos com o que lemos e veremos nossas ideias preconcebidas confirmadas com mais frequência. O perigo é que esse ' noticiário ' autosselecionado aja como entorpecente, mergulhando-nos num estupor autoconfiante por meio do qual enxergaremos as coisas em preto e branco, sendo que os fatos normalmente se desenrolam em tons de cinza".

Diante deste cenário de extremo particularismo e concentração no círculo privado da existência - que gera, a meu ver, consequências danosas, entre elas, maior intolerância e enfraquecimento de vínculos de solidariedade suprafamiliar - acho que o ato de ler Literatura, por incrível que pareça, pode servir de atenuante. Mas isso fica para o último texto da série.
 
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* KRISTOF, Nicholas D. O meu jornal diário. Folha de S. Paulo, São Paulo, 29 mar. 2009, Caderno Mundo, p. 18.

"Todos têm a vidinha deles" (2)

"A nós nos bastem nossos próprios ais,
Que a ninguém sua cruz é pequenina.

Por pior que seja a situação da China,
Os nossos calos doem muito mais".


Mario Quintana

 
 
Procure ser sincero na resposta. As conversas que você mantém com as outras pessoas de sua convivência têm sido satisfatórias, equilibradas, reconfortantes? É, também tenho detestado...

Em uma passagem de Quarup (livro de Antonio Callado*), o inverossímil ex-padre, protagonista do romance, em determinado momento faz a seguinte reflexão:

"As palavras, as palavras, pensou Nando. A luz só nasce dos monólogos. Firma-se em diálogos de monólogos ou em debates de monólogos. De palavras em debate não. Só areando todas as palavras de novo. Esfregando. Até reluzirem outra vez".


Penso que o romancista, neste trecho, desejava referir-se a um tema recorrente na Literatura: a (im)possibilidade de "libertar" certas palavras, termos, formas linguísticas e narrativas dos lugares-comuns, das conotações que se tornam convencionais. Para a continuação de nosso assunto, contudo, vou me valer apenas desse achado que é a expressão "diálogo de monólogos".

Espanta-me, frequentemente, a observação dos bate-papos (OK, reconheço, sou indiscreto centenas de vezes). Há muito pouco respeito pelos turnos da conversação: não se espera que o interlocutor termine sua fala; atropela-se o que está sendo dito, sem o menor constrangimento. Ou, em outros casos, aquele que fala, numa ânsia patética, procura não deixar brechas para que o interlocutor faça suas observações. Qual a razão disso?

Bem, não sou psicólogo nem estudioso de comportamentos. Dou de barato que tais situações se dão, em parte, por causa das rotinas sufocantes em que vivemos. Corre-se da casa para o trabalho, depois do trabalho para outro compromisso, daí para casa, já que é imprescindível dormir cedo para fazer tudo de novo no outro dia, e "tempo é dinheiro". Massacrados por horários, temos poucas oportunidades para qualquer tipo de conversa fiada com aqueles que nos são mais próximos. Resultado: quando uma dessas oportunidades aparece, despeja-se (a palavra é essa mesma), até nos ouvidos de pessoas nem tão íntimas, toda a nossa (humana) necessidade de comunicar o que vai por nossos corações e mentes.

Não me oponho a conversas desinteressadas (se é que essas existem); como dito acima, são uma necessidade humana. Mas as conversas adquiriram o formato de diálogos de monólogos, a meu ver, insuportáveis. Fala-se muito de si mesmo - e o que é pior - fala-se muito de meras banalidades e insignificâncias das quais todos nós estamos carecas de saber e experimentar em nossas próprias "vidinhas".

Essa característica dos colóquios (palavra antiquada esta, não?) acima apontada é, segundo penso, mais um desdobramento dessa projeção e hipertrofia do eu que venho discutindo desde a postagem anterior, ao falar do uso de celulares. Além disso e dos "diálogos de monólogos", a avalanche do eu (da qual, voluntária ou involuntariamente, também faço parte) não poderia encontrar lugar melhor para se acomodar no que a internet. Prossigo em outra postagem.

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* CALLADO, Antonio. Quarup. 12 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984

quinta-feira, 23 de abril de 2009

"Todos têm a vidinha deles" (1)

Há um poema de Murilo Mendes* de que gosto muito. Abaixo reproduzo-o na íntegra:


NOTURNO RESUMIDO

A noite suspende na bruta mão que trabalhou no circo das idades anteriores
as casas que o pessoal dorme comportadinho
atravessado na cama
comprada no turco a prestações.


A lua e os manifestos de arte moderna
brigam no poema em branco.

A vizinha sestrosa da janela em frente

tem na vida um camarada

que se atirou de um quinto andar.
Todos têm a vidinha deles.


As namoradas não namoram mais

porque nós agora somos civilizados,
an
damos no automóvel gostoso pensando no cubismo.

A noite é uma soma de sambas

que eu ando ouvindo há muitos anos.

O tinteiro caindo me suja os dedos

e me aborrece tanto:
não posso escrever a obra-prima que todos esperam do meu talento.

Publicado no livro de estreia do poeta mineiro (Poemas, 1930), Noturno resumido traz, explicitamente, as marcas de seu pertencimento - ou melhor, sua filiação - ao movimento modernista que acabara de ser deflagrado. Mas não é isso que pretendo discutir. Quero me deter num único verso: "Todos têm a vidinha deles".

Na obra de onde este poema foi extraído, há diversos outros textos que retratam ambientes comuns da vida privada, como, por exemplo, Perspectiva da sala de jantar ("A filha do modesto funcionário público/ dá um bruto interesse à natureza morta/ da sala pobre no subúrbio".) Ao fazer isso, qual fora o objetivo do poeta? Acredito que Murilo Mendes intentava nos lembrar que as vidas das pessoas - da imensa maioria delas, inclusive a minha, de vários conhecidos, amigos e parentes - é absolutamente banal, comum (aliás, o verso Todos têm a vidinha deles é de uma trivialidade atroz, se lido fora do contexto em que se originou).

E aproveito agora este poema para falar de algo que me incomoda profundamente: a projeção e a hipertrofia de vidas privadas (mesmo que estas nada tenham de extraordinário), fenômeno explícito hoje em dia e exacerbado pelas tecnologias de comunicação e informação.

No final do ano passado, li um artigo do escritor norte-americano Jonathan Franzen (Amor sem pudor**) em que surgem certeiras observações sobre o fenômeno acima mencionado. Ao referir-se ao uso de celulares nos espaços públicos, com gente falando aos berros em seus aparelhos (a noção de espaço público nunca mais será a mesma), Franzen escreve:

"O componente celular de minha irritação é simples e direto. Simplesmente não quero - enquanto estou comprando meias [...] ou na fila para comprar um ingresso e me ocupando de meus pensamentos pessoais ou tentando ler um romance num avião quando o embarque ainda não foi encerrado - ser arrastado em minha imaginação para o mundo pegajoso da vida doméstica de algum ser humano próximo.

A própria essência do que é tão desagradável no celular como fenômeno social é que ele possibilita e incentiva o ato de impor o pessoal e individual ao público e comunal.

E não existe declaração de mais alto calibre que 'eu te amo' - não há nada pior que um indivíduo possa impor a um espaço público comum [quando grita essa frase num celular]. Mesmo 'vá à merda, imbecil!' é menos invasivo, na medida em que é o tipo de coisa que as pessoas iradas às vezes gritam em público e que pode igualmente bem ser dirigido a um estranho".


Claro que há exposições da vida privada igualmente irritantes além do uso do celular. Mas isso fica para a próxima postagem.
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* MENDES, Murilo. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997

** FRANZEN, Jonathan. Amor sem pudor. Folha de S. Paulo, São Paulo, 16 nov. 2008. Caderno Mais!, p. 4-6.

quarta-feira, 22 de abril de 2009

O fantástico na Literatura Brasileira

Abençoado feriadão! Diferentemente de uma certa parcela da população, da grande imprensa, de políticos demagogos e dos "formadores de opinião" campeões da virtude, adoro a quantidade - deveriam ser mais! - de dias ociosos no Brasil. Há um moralismo econômico (hipócrita, como todo moralismo) na crítica ao número de feriados. Só me provoca bocejos: bocejos de quem, paradoxalmente, dormiu bastante, pôde dar uma faxina em sua moradia e, junto com as leituras não-ficcionais, indispensáveis para o trabalho e os estudos, mergulhou em três boas antologias (aliás, o tipo de publicação ideal para dias de folga).

A primeira foi Lições de Gramática para quem gosta de Literatura, organizada por Carmen Lúcia da Silva Campos e Nilson Joaquim da Silva (Ed. Panda Books, 2007), coligindo crônicas e pequenos contos, mais puxados para o humor. A segunda antologia, organizada por Magda Lopes Gebrim, reúne diversos Contos, de Jack London (Ed. Expressão Popular, 2001). Mas é sobre a terceira delas que trato nessa postagem.

Páginas de sombra: contos fantásticos brasileiros (Ed. Casa da Palavra, 2003) justificaria uma passada de olhos, de qualquer interessado em Literatura, ao menos pelo pequeno (e ótimo) ensaio Nas periferias do real ou o fantástico e seus arredores, de autoria de Braulio Tavares, o responsável pela seleção dos contos que compõem a coletânea.

O ensaio analisa as várias faces das narrativas fantásticas - ghost story, a ficção científica, a "ciência gótica", o realismo mágico - e Tavares, refletindo sobre a baixa produção de textos do tipo em nossa Literatura, afirma, acertadamente:

"Ainda estamos tentando domesticar o realismo, e cultivar o fantástico não é prioridade por enquanto. Nossa literatura, vista em conjunto, pretende enxergar o Brasil, imaginar o Brasil, extrair de nossas experiências contraditórias uma imagem plausível do Brasil. Não creio que o realismo seja a única estratégia narrativa capaz de se desincumbir desta tarefa, mas reconheço que a literatura fantástica dá a muitas pessoas a sensação de nos afastar do mundo (que nos exige respostas imediatas a problemas urgentes) para nos puxar de volta a uma zona crepuscular onde somos dominados por forças além da razão".


Quanto à antologia propriamente dita, tem o mérito de, ao lado de nomes consagrados (Murilo Rubião, Machado de Assis, Lygia Fagundes Telles, etc.), incluir autores hoje praticamente esquecidos (Berilo Neves, Coelho Neto, Humberto de Campos, etc.). Além disso, tive a oportunidade de ler, pela primeira vez, textos de escritores que eu desconhecia por completo e que me encantaram, como Luvibórix, de Carlos Emílio Corrêa Lima, Íblis, de Heloísa Seixas e A escuridão - o melhor deles - de André Carneiro.

As diversas narrativas, como reconhece o próprio organizador, não possuem "a mesma sofisticação literária", sendo seu principal critério para a seleção a pertinência temática: "cada conto foi escolhido porque consegue abrir uma janela interessante sobre o tema".

Ainda que haja certo desnível qualitativo entre os textos, Páginas de sombra: contos fantásticos brasileiros é uma boa amostragem do que se produziu neste campo tão pouco fértil nas letras nacionais.


O TRISTE FIM DA TEMPORADA DE VÔLEI NO BRASIL


Como fã e ex-peladeiro de vôlei, estou preocupado com o futuro do esporte. O time feminino de Osasco, após vinte anos de atividade, parece que acabou. O grupo Bradesco, dono da Finasa (o patrocinador da equipe), não mais manterá o convênio. Atletas de alto nível, campeãs olímpicas como Sassá e Paula Pequeno, estão desempregadas. O time feminino de Brusque (SC) está ameaçado de perder o patrocínio da Brasil Telecom e a equipe praticamente não existe mais (já vi esse filme antes, quando Vasco da Gama e Flamengo montaram verdadeiros dream teams; não prosseguiram com a modalidade, porém, e deixaram diversas atletas sem pagamento). No masculino, a perspectiva do sumiço de outras equipes também é grande. E olha que o Brasil é um dos maiores vencedores mundiais da história do vôlei!

Triste, triste...

quarta-feira, 15 de abril de 2009

Pequenas testemunhas de grandes monstruosidades

É difícil que eu me sinta motivado para ler best-sellers no momento em que estes são lançados no mercado. Mesmo passados alguns anos de sua publicação, ainda não consigo sentir-me tentado a procurá-los. E não se trata de nenhum charminho intelectualóide: é que todo o auê criado em torno do livro faz com que as opiniões sejam tantas - e tão divergentes às vezes - que acabam "contaminando" meu próprio julgamento. Esse posicionamento não deve ser novidade para muita gente, pois sei de pelo menos meia dúzia de pessoas que age exatamente como descrevi. A propósito: brevemente, o tema best-seller será tratado aqui, inclusive com a participação direta - assim espero - de alguns amigos-blogueiros na composição do texto.

Mas como eu dizia, evito ler os mais badalados durante certo tempo, até que a "poeira" do marketing em torno da obra tenha baixado, as resenhas rasteiras dos "jornalões"  e dos semanários sejam esquecidas, e a "fissura" dos leitores já não seja tanta. Só que no caso de O menino do pijama listrado (Ed. Companhia das Letras, 2007, com tradução de Augusto Pacheco Calil) não tomei qualquer precaução. Ao acatar a sugestão de uma colega cá do trabalho, li o livro em poucas horas, durante uma noite dessas.

Pelo fato de contar com uma criança - na condição de protagonista - imersa num regime político marcado pelo horror e a violência, O menino do pijama listrado assemelha-se a filmes como O labirinto do fauno (dirigido por Guillermo del Toro) e, um pouco menos, àquele de Roberto Benigni, A vida é bela.

O ponto forte do livro é, paradoxalmente, o que pode ser visto também como seu ponto fraco: a simplicidade das construções frasais.

O subtítulo do livro é: "uma fábula". Portanto, conscientemente, o escritor imprime ao texto a mesma "leveza" característica das narrações do gênero: corre o risco de ser, contudo, taxado "superficial". Não se deve esquecer, porém, que é a visão de uma criança de 9 anos a principal orientação para os caminhos a serem percorridos pelo narrador. E, na minha opinião, Boyne soube escrever com muita delicadeza, não obstante tratar-se de um período extremamente doloroso da humanidade. Leiamos um trecho:

"Os homens soltaram uma gargalhada e apertaram a mão do pai. Ao sair, formaram juntos uma fila, como soldados de brinquedo, e os braços se projetaram para a frente na mesma saudação que o pai havia ensinado a Bruno, a palma estendida, vinda do peito em direção ao ar em frente a eles num movimento brusco, enquanto gritavam as duas palavras que Bruno fora ensinado a repetir, sempre que alguém as dissesse para ele. Então os homens foram embora e o pai voltou ao escritório, no qual era Proibido Entrar em Todos os Momentos sem Exceção".

Mas O menino do pijama listrado será talvez lembrado, no futuro, pela bonita história da amizade entre Bruno e Shmuel, que, mesmo separados pela cerca e pela estupidez e brutalidade humanas, acidentalmente se encontraram e depois se separaram, aliás, tragicamente:

"Os dois meninos olharam para baixo ao mesmo tempo e a diferença era evidente. Embora Bruno fosse pequeno para a idade, e certamente não era gordo, sua mão parecia saudável e cheia de vida. As veias não eram visíveis através da pele, os dedos não eram pouco mais do que galhos retorcidos e moribundos. A mão de Shmuel, entretanto, contava uma história muito diferente".

Eu teria um pouco mais a dizer, mas fica para outra oportunidade.

segunda-feira, 6 de abril de 2009

A relação autor/leitor na Literatura Infantojuvenil

Existe (o que me causa um pouco de perplexidade) certa controvérsia quando se tenta conceituar e definir o que seja Literatura Infantil; há quem diga até que esta sequer existe. Particularmente, em mais de uma década dedicada ao estudo do gênero, não tenho dúvidas para admitir não só a existência como a legitimidade da arte literária elaborada especialmente para crianças. Concordo com os diversos autores que, para operarem com o conceito, lançam mão da figura do leitor (no caso, a criança). Entre estes, Vera Teixeira de Aguiar*, para quem "a literatura infantil se define a partir de seu destinatário". E Aguiar acrescenta:

"Modalidade literária tardia, aparece só no momento em que a infância passa a ser tratada de modo especial, como idade de formação do homem. Tem, então, desde o começo, um receptor específico, que é a criança, colocada no centro das atenções da família e da comunidade. [grifo meu]

Contudo, a Literatura Infantil apresenta uma característica que a torna sempre alvo de críticas severas. Falo da assimetria existente entre o autor e o leitor. Explico.

Durante o processo de produção de um livro infantil, todos os envolvidos são adultos: o escritor, o editor, o ilustrador (além, obviamente, dos outros trabalhadores responsáveis pela materialidade da obra: diagramadores, gráficos, impressores, etc.). Mais: geralmente, cabe a outros adultos - professoras(es), mães e pais - a função de indicar determinada obra à criança. Verifica-se, então, a tal assimetria, já que são insignificantes os casos em que uma criança, dentro do mercado editorial, desempenhe qualquer papel durante a produção dos livros. E, mesmo que exista intensa comunicação entre elas, a respeito de suas leituras, a interferência de pais e professores ainda é poderosa.

Talvez, para tentar escapar dessa "limitação" (inevitável, a meu ver), é que se publica um livro - ótimo, por sinal - como Meu tempo e o seu, organizado pelos jornalistas João Basílio e Maria Teresa Leal e ilustrado por Paulo Bernardo Vaz (Editora Lê, 2005). Escritores brasileiros consagrados (Pedro Bandeira, Ziraldo, Ana Maria Machado, Tatiana Belinky, entre outros) têm, a seu lado, a companhia de crianças, estudantes de escolas públicas e privadas de Belo Horizonte e Sabará (MG).

Dividido em 10 seções, cada uma delas com um tema (BrincadeirasEscolaNamoroLivros, etc.), a publicação registra lembranças e opiniões dos autores (a crônica de Fernando Bonassi sobre a escola do "seu tempo" - Era uma vez quando não podia - é admirável).

Nos textos das crianças, apesar de terem a "cara" daquelas redações (no meu tempo de escola primária eram chamadas de composições) para cumprimento de tarefa escolar, leem-se trechos engraçados como este, de Ricardo Fratezzi Junior, de 9 anos:
"O meio de transporte de que eu mais gosto é mesmo o jet ski porque você é livre e pode fazer o que quiser nele. A asa delta, que eu nunca experimentei, deve ser melhor ainda. O pior mesmo é a charrete, muito devagar e sem graça".
Meu tempo e o seu é uma tentativa de produzir algo novo na Literatura Infantil.
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* AGUIAR, Vera Teixeira de. Leitura literária e escola. In: EVANGELISTA, Aracy Alves Martins; BRANDÃO, Heliana Maria Brina; MACHADO, Maria Zélia Versiani (Org.). A escolarização da leitura literária. 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.


quinta-feira, 2 de abril de 2009

E como é que fica o leitor?


Há uma passagem, logo no início de O prazer do texto*, em que Roland Barthes escreve:

"Apresentam-me um texto. Esse texto me enfara. Dir-se-ia que ele tagarela. A tagarelice do texto é apenas essa espuma de linguagem que se forma sob efeito de uma simples necessidade de escritura. [...] O senhor se dirige a mim para que eu o leia, mas para si nada mais sou do que essa direção; não sou a seus olhos o substituto de nada, não tenho nenhuma figura (apenas a da Mãe); não sou para si um corpo, nem sequer um objeto (isto pouco se me dá: não é a alma que reclama seu reconhecimento), mas apenas um campo, um vaso de expansão. Pode-se dizer que finalmente esse texto, o senhor o escreveu fora de qualquer fruição; frígido, como o é qualquer procura, antes que nela se forme o desejo, a neurose."

Embora eu não dê muita bola para os escritos com um pé (às vezes, os dois) na psicanálise, tenho pensado bastante nesse excerto, desde que decidi voltar a escrever cá na blogosfera.

Será que, ao lançar essas minhas impressões de leituras, eu não esteja me comportando justamente como esse "senhor do texto-tagarela"? Alguém que enxerga no futuro ou potencial leitor-visitante apenas "um vaso de expansão"? Tenho escrito coisas "fora de qualquer fruição"? 

Falo disso porque leio alguns blogs nos quais vejo, boa parte das vezes, "essa espuma de linguagem que se forma sob o efeito de uma simples necessidade de escritura", como escreveu Barthes (é preciso dar um desconto no uso que faço dessa citação, pois é preciso ter em mente que ele está falando dos textos que se arvoram literatura). 
 
São postagens tão auto-referentes (ou seria autorreferentes? - Maldita reforma ortográfica!) que às vezes me sinto como um bisbilhotário (mistura de bisbilhoteiro com otário), que nem devia estar metendo o nariz naquilo. Noutros casos, há tanta demonstração de erudição (meio postiça) que faz do espaço para comentários um mero "detalhe".

Evidentemente, não há regras estabelecidas para realizar blogs ou qualquer coisa parecida na Web. Como costuma dizer o Carlos Heitor Cony, vivemos na "era da internet lascada" Além do mais, são páginas pessoais (a propósito: o Pirata escreveu recentemente uma postagem falando sobre as características dos blogs, além de indicar alguns outros ótimos). Logo, cada um escreve o que quiser, ninguém tem nada com isso e estamos conversados. Os incomodados que cliquem em outra freguesia.

Porém, prefiro pensar que, se torno público o que escrevo, deveria me preocupar em não anular nem diminuir o outro que ocupa a posição de destino daquilo que desejo transmitir, mesmo que este outro seja percebido e considerado apenas como virtualidade (e a expressão virtualidade aqui empregada não é acidental).

Temo, contudo que eu próprio incorra, mais do que o suportável, nisso que acabei de criticar no parágrafo anterior, quando lanço minhas bobagens neste blog. Inclusive essa que você acabou de ler.

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* BARTHES, Roland. O prazer do texto (trad. J. Guinsburg). São Paulo: Perspectiva, 1987.