Terei que parar mais uma vez.
Não estou aguentando. Me sinto morto, por dentro e por fora.
Tentarei acumular algum ânimo para voltar, quem sabe, no ano que vem.
Até um dia, eventual leitor(a).
Terei que parar mais uma vez.
Não estou aguentando. Me sinto morto, por dentro e por fora.
Tentarei acumular algum ânimo para voltar, quem sabe, no ano que vem.
Até um dia, eventual leitor(a).
Ah, quanta merda se proclama em nome da família!
Se eu pudesse acrescentar algo à conhecidíssima frase atribuída a Samuel Johnson, seria: "O patriotismo é o último refúgio de um canalha [, porque a família, possivelmente, está entre os primeiros]".
Os discursos conservadores mais extremados, vira e mexe, lançam mão do termo família para sustentar posicionamentos (e atos) excludentes, discriminatórios e que não contribuem para a emancipação de ninguém. Proteger a família é o subterfúgio mais usado por velhacos da política e líderes de igrejas caça-níqueis (entre outros pilantras) na hora de atormentar pessoas LGBTQIA+, na hora de enfraquecer a laicidade do Estado, na hora de negar os direitos reprodutivos e sexuais das mulheres, na hora de obstruir ações educativas que discutam questões de gênero e a estrutura patriarcal da sociedade.
Têm amantes e filhos desassistidos fora do casamento, mas batem no peito moralista para dizer que "só a família tradicional é que deve existir". Condenam a descriminalização da maconha "porque vai acabar com as famílias", enquanto lucram secretamente com as operações de milícias envolvidas diretamente com o narcotráfico.
"Valores familiares" - uma noção bastante discutível (para não dizer completamente vaga) - são invocados por esses indivíduos, a torto e a direito, para justificar opressões diversas.
O que escrevi até agora não foi um libelo contra a família. Um número imenso de pessoas só consegue sobreviver neste mundo desgraçado graças ao apoio dos arranjos familiares aos quais se vinculam. Não por acaso, aliás, costumam estar fora do enquadramento empregado pelos reacionários hipócritas e oportunistas, quando mascaram sua intolerância e venalidade através do discurso falsamente pró-família, porque esses arranjos não são compostos por papai, mamãe e filhinhos de comercial de margarina.
Contudo, embora sejam importantes pontos de apoio e eixos que sustêm muitas pessoas, outros tantos não encontram amparo (vai além de grana, a despeito da importância de se ter dinheiro) ou não mais preservam o sentimento de pertencimento nas famílias que lhes couberam. Foi o que ficou em mim ao acompanhar os últimos seis dias do personagem-narrador Oséias em O verão tardio, romance de Luiz Ruffato publicado em 2019.
Após muitos anos, de volta à cidade de Cataguases, sem saber o que esperar, mas certo de que naquele momento encontram-se "enosados os fios que atam o começo e o fim" ¹, Oséias busca, talvez, um acerto ou, quem sabe, uma reconciliação com o passado.
O primeiro contato com um conhecido dos tempos de escola já é agressivo e intimidador. Não, definitivamente não será uma volta feliz. "A cidade está feia, suja, fedendo a mijo. O lixo se espalha pelos meios-fios. Mendigos e camelôs disputam os passantes. Nos botequins, bares e restaurantes, televisores ligados hipnotizam os clientes". A descrição vale para qualquer metrópole brasileira e é de se notar que, em breve, cidades do interior idílicas e limpinhas (afinal, Cataguases não passsa de 80.000 habitantes) serão apenas lenda.
No reencontro com Marilda, a ex-namorada da adolescência (que acabou se casando com um homem brutal), ouve a frase: "Às vezes penso que a vida é puro arrependimento...". Divorciado e sem contato com o filho único, viciado em drogas, Oséias se questiona:
"Em que momento as coisas começaram a desandar? Por que atalhos se meteram minhas pernas, sem que eu desse conta? Este desconforto, sempre... E eu tinha alguma expectativa... No entanto, nem essa, pouca, se cumpriu".
"Caminho sem retorno, erros que levam a outros erros, e cinquenta e três anos pelo ralo. É isso a vida?"
Ao rever as irmãs e o irmão, cada um parecendo viver em ilhas só deles, a constatação de um afastamento irreversível. O verão tardio focaliza uma família, mas o individualismo excessivo e a incapacidade de ser solidário são marcas das sociedades contemporâneas, tudo sendo mais dramático ainda em países de tanta desigualdade - e em um evidente processo de clivagem ideológica e cultural - como o Brasil.
P.S: Ontem à noite, quando já tinha finalizado a redação desta postagem, acabei me deparando com o ótimo artigo Descaminhos e desesperança: o Brasil de Luiz Ruffato em O verão tardio, de Enio Passiani. Se voltar a escrever sobre este romance, certamente discutirei esse estudo.
____________
¹ RUFFATO, Luiz. O verão tardio. São Paulo: Companhia das Letras, 2019
BG de Hoje
Parece que, no estágio socioeconômico e político em que nos encontramos, a única coisa que os indivíduos comuns podem fazer é resistir. Não propor algo realmente novo, não partir para o enfrentamento do que (e de quem) nos está fodendo, não derrubar estruturas que precisam ser derrubadas: o máximo que conseguimos é oferecer resistência. Só. Isso é bem triste. De todo modo, adoro essa canção do duo CALLE 13: El Aguante.
Não consigo rever Amistad, de Steven Spielberg.
Considero um dos grandes trabalhos do cineasta norte-americano, não me entenda mal, mas há aquela sequência do testemunho de Cinqué (interpretado pelo sempre ótimo Djimon Hounsou) no tribunal, descrevendo, com a ajuda do intérprete, a horripilante travessia dele e dos outros homens e mulheres escravizados, dentro do navio do qual provém o título do filme. O relato é transformado em imagens (afinal, trata-se de uma narrativa audiovisual) fortes e impactantes.
Eu chorei. Simplesmente não conseguiria assistir de novo.
Recuso-me a rever Despedida em Las Vegas. A cena em que a personagem interpretada por Elisabeth Shue é brutalizada e estuprada tornou-se, na minha opinião, num dos momentos mais atrozes do cinema. Intolerável. NOTA: No livro de John O'Brien (do qual o filme é uma adaptação), o episódio é ainda mais torturante e doloroso, dizem. Nunca o li.
Como terá sido durante a gravação? Como terá reagido a equipe presente - operadores de câmera, diretores, assistentes, além dos atores diretamente envolvidos?
Sabemos que se trata de um artifício - a violência e a crueldade foram simuladas - ; não obstante, não é possível passar por cenas como essas incólume, sem ficar agoniado ou pelo menos experimentar algum desconforto (eu não conseguiria). Estou falando do ponto de vista do espectador, mas creio que deve ter sido angustioso, em alguma medida, também para os que tornaram possíveis as cenas.
Não deve ser "de boa" representar e expor o horror.
Terminei recentemente minha segunda leitura do Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago. É um texto que provoca grande aflição (por isso demorei mais de vinte anos para decidir voltar a ele). Nos seus Cadernos de Lanzarote (reunião de diários escritos entre 1993 e 1998), o autor registrou ¹:
"Lutei, lutei muito, só eu sei quanto, contra as dúvidas, as perplexidades, os equívocos que toda a hora se me iam atravessando na história e me paralisavam. Como se isso não fosse o bastante, desesperava-me o próprio horror do que ia narrando. Enfim, acabou, já não terei de sofrer mais".
Saramago levou cerca de três anos para terminar o livro e, como se lê acima, não são apenas os que o leram que se atormentaram.
É uma narrativa alegórica, em que se tenta dizer ao leitor - registra-se nos Cadernos de Lanzarote -:
"que a vida que vivemos não se rege pela racionalidade, que estamos usando a razão contra a razão, contra a própria vida. Tentei dizer que a razão não deve separar-se nunca do respeito humano, que a solidariedade não deve ser a exceção, mas a regra. Tentei dizer que a razão está a comportar-se como uma razão cega que não sabe aonde vai nem quer sabê-lo. Tentei dizer que ainda nos falta muito caminho para tentar chegar a ser autenticamente humanos e que não seja boa a direção em que vamos".
O pessimismo do escritor elevou-se à enésima potência no Ensaio sobre a cegueira. Logo no segundo capítulo, antes mesmo do confinamento e da propagação da cegueira branca, o médico constata: "É desta massa de que somos feitos, metade de indiferença e metade de ruindade" ². O evento catastrófico em torno do qual a história se constrói faz emergir a monstruosidade latente em nós, seres humanos, assim como, em poucos dias de flagelo, volvemos ao bicho que nunca deixamos de ser. O estilo de Saramago - os parágrafos espessos e as circunvoluções em torno de uma mesma expressão ou frase - manteve-se inalterado ao contar essa história de horror, única do gênero na obra do artista português.
A abjeção a que foram condenados os cegos dentro do romance nos martiriza, mas pensamos pouco na omissão e na insensibilidade dos que continuaram a enxergar, pelo menos por um pouco mais de tempo do que os outros. "O medo cega", diz a rapariga dos óculos escuros em determinado momento e outro personagem secunda: "São palavras certas, já éramos cegos no momento em que cegamos, o medo nos cegou, o medo nos fará continuar cegos".
Já que mencionei a rapariga dos óculos escuros (é dela também a frase mais famosa do livro: "Dentro de nós há uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos"), pode-se afirmar sem hesitação que o Ensaio... deve a maior parte de sua pujança às personagens femininas (as mulheres, aliás, é que foram supliciadas para que todos pudessem obter comida no local de confinamento, com a aceitação covarde dos homens "bons", inclusive...). E nenhuma personagem é tão grandiosa (como criação artística, mas também no sentido moral, ético) como a mulher do médico, a testemunha ocular de toda aquela desgraça, literalmente.
Num dos capítulos finais, lemos o seguinte:
"As mulheres ressuscitam umas nas outras, as honradas ressuscitam nas putas, as putas nas honradas, disse a rapariga dos óculos escuros. Depois disto houve um grande silêncio, para as mulheres ficara tudo dito, os homens teriam de procurar as palavras, e de antemão sabiam que não seriam capazes de encontrá-las".
Um modo de dizer que as mulheres não se restringem (ou não deveriam se restringir) a papéis previamente delimitados ou impostos por sociedades cegas, adoecidas.
. . . . . . .
Comecei a postagem mencionando filmes. O(a) eventual leitor(a) certamente sabe que o Ensaio sobre a cegueira também foi adaptado para o cinema e lançado em 2008. O brasileiro Fernando Meirelles dirigiu.
Não sei se é tão dilacerante como o livro: ainda não assisti.
Será que eu aguentaria um outro enfoque para todo aquele horror do texto original?
______________
¹ Essa declaração e outras foram também reproduzidas em matéria publicada no jornal Estado de Minas no ano passado, assinada por Paulo Nogueira, a respeito da nova edição do Ensaio sobre a cegueira, marcando o centenário de nascimento do escritor: Saramago: personagem assumiu controle de 'Ensaio sobre a cegueira'. Disponível em: <https://www.em.com.br/app/noticia/pensar/2022/11/25/interna_pensar,1425460/saramago-personagem-assumiu-controle-de-ensaio-sobre-a-cegueira.shtml>. Acesso em: 06/09/2023
² SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995
BG de Hoje
Os textos da seção BG não costumam ser longos: só que hoje tenho muito para falar. Na época em que a cena grunge se estabeleceu, eu fiquei muito interessado naquele som. Não só o de artistas provenientes de Seattle e redondezas, mas o de outros grupos assemelhados, que despontaram no mesmo período: por exemplo, o L7 (que veio de Los Angeles). Quando comprei o disco Bricks Are Heavy (lançado em 1992 e, comercialmente falando, o mais bem sucedido da carreira delas), ouvia sem parar. A colaboração do produtor Butch Vig ajuda a explicar o parentesco grunge. Quase duas décadas depois, busquei conhecer outras gravações da banda, levando-me ao disco anterior, Smell The Magic (de 1990), que teve Jack Endino, outro lendário produtor musical daquela cena, auxiliando nos trabalhos (Endino, vale acrescentar, foi parceiro dos Titãs em Titanomaquia). Desse álbum, Smell The Magic, destaco a canção Fast And Frightening, para mostrar como as raízes do L7 estão no punk, com um show à parte da baterista Demetra "Dee" Plakas.
* Afirmações do jornalista e professor da ECA-USP Eugênio BUCCI, publicadas em entrevista reproduzida no livro Cultura digital.br, organizado por Rodrigo Savazoni e Sergio Cohn (Editora Beco do Azougue, 2009). A entrevista de Bucci faz parte da seção Comunicação digital e as afirmações estão nas páginas 206 e 207.
FLOR DO OFÍCIOEmboscada no silêncioEu preparo a rosa inútilCom as horas que salveiDo desperdício.Feito um vermeDecompondo ceticismoEm força indômita,Preparo e deito essa florNo teu caminhoPara quando o teu corpo(Tão quebrantável quanto o meu)For sozinho pastorearSeus demônios no vazio.Quase dois mil anosGuardado no desertoUm salmo esperouPara recobrar sua melodia -E eu não te esperaria?
VIGÍLIAEsta noiteNem o gozo do pensamentoTe entretém.Teu sentimentoÉ todo um espanto secoComo se te mirassemOs olhos da inocênciaE desta vez não te acudisseO desprezo.Te comoveTeu sangue trabalhandoEm silêncio,Resvalar te comove,Pode ser teu ato extremo.Nada se põe entre esta noiteE a perfeiçãoDa tua órbita no tempo.Só tuas mãos ainda servemDe instrumento,E elas se deitam.Podem alcançar adiante,Escolhem alcançarA transparência.
OS IMPUROSA peste chegandoE não soubemos ver.Fomos padecendo naturalmente,Uma figueira de pouca sombra,O tronco pesado de segundas-feiras.Por sete dias a casa vedada,Tentamos a paciência:Não disparatar,Não bulir com o silêncio,Reconsiderar as coisas pequenas.Mas a peste vencendo,Comendo as paredes,Uma vergonhaQue não imaginávamosTão prestimosa, tão perfeita,Chancelada pelo tempo.Arrasamos a casa.O chão nós arrancamos fora,O grão de onde manava a doença.Não sentimos pena.Matar, nós matamosNum sopro de gentileza.
MEMORANDO
Não há grandes notícias.
Uma torre desapareceu,
O inverno expandiu-se
E a esperança ainda rói
O fundo de uma caixa
Procurando saída.
Com esculpido esmero
Vai se acabando uma família.
Um gesto qualquer se repete
No ensaio de ser abolido,
Remediar, abafar, corrigir,
Nada lembra o que antes foi só
Generosidade de coisa viva.
Não convém
O alvoroço dos pássaros,
A revanche da galhardia.
É inútil desafiar o pó
E, contudo, desafia-se.
Não aguento mais ouvir Sultans of Swing. Ou Smoke on the Water. Ou Another Brick in the Wall.
Hotel California, então, me faz querer sair correndo em desespero.
Eu já curti o som do Dire Straits. Não tenho nada contra o Deep Purple. Pink Floyd está entre as minhas 20 bandas preferidas. E embora não tenha interesse nos Eagles, reconheço que o maior hit deles, apesar de hoje me dar nos nervos, é uma grande canção.
Também não é por causa da alegação frouxa "isso é música velha!" (a ideia de que criações artísticas teriam um prazo de validade me parece sem cabimento).
Minha ojeriza é pela repetição, ad nauseam, dessas e outras faixas por tiozões do rock nos mais diferentes locais e ocasiões.
Não me entenda mal: eu já fui e ainda me comporto, ocasionalmente (é difícil abandonar velhos hábitos), como um tiozão do rock. Não seria honesto cuspir no prato em que já comi (e ainda como, às vezes) sem admitir isso primeiro.
Gosto de rock (está até no esboço biográfico). A maioria dos vinis e CDs que já comprei nesta minha vidinha inútil é de artistas pertencentes a essa vertente musical. Se o(a) eventual leitor(a) for conferir minhas playlists no Youtube Music Premium (não aguentava mais as "travadas" de execução do Spotify), verá que a maioria das faixas é pauleira (sempre gostei dessa gíria ultrapassada: pauleira).
Mas, desde que comecei a escutar música de forma realmente atenta e dedicada, o rock - seus subgêneros e derivações - nunca monopolizou, ainda bem, minha curiosidade e meu interesse.
Acho que preciso falar um pouco do convívio familiar, de quando eu era garoto até o início da adolescência. O(a) eventual leitor(a) há de me perdoar a fatuidade.
Além de meus pais, morava com três irmãs e dois irmãos - elas e eles mais velhos do que eu, cada um com suas preferências. Apesar de sermos pobres, sempre era possível comprar um disco ou outro, uma fita cassete ou outra. Além disso, as rádios, décadas atrás, davam preferência à programação musical, ao invés do jornalismo ou a falação ininterrupta de hoje (felizmente, estações evangélicas/de igreja eram raríssimas). Em casa ouvíamos variados gêneros: MPB sofisticada e música brega, samba e ritmos regionais, a black music norte-americana dos anos 1960-70, compositores clássicos (Debussy, Händel, etc.). Uma tarde de vitrola podia começar com Bob Dylan, passar por Burt Bacharach e Milton Nascimento e terminar com Dilermando Reis. Também se ouvia Janis Joplin, Beatles, Creedance Clearwater Revival, Queen... Uns 65% do meu gosto musical devo à minha família.
A predileção pelo rock só se deu comigo por volta dos 17-18 anos, quando comecei a ouvir muito Van Halen, Titãs (antes da fase caça-níquel total), Barão Vermelho e Rolling Stones, buscando uma certa "independência" auditiva. Pouco tempo depois, os discos Facelift (Alice In Chains), Nevermind (Nirvana), Badmotorfinger (Soundgarden) e Ten (Pearl Jam) foram lançados. A cena grunge ganhou o mundo. E eu mergulhei de cabeça...
Muitos tiozões do rock só escutaram, só escutam e só escutarão rock. Geralmente, as mesmíssimas bandas e as mesmíssimas canções.
Apesar da chatice, esse não é o maior problema, porém.
À medida que o tempo passa, a intransigência, uma propensão autoritária, começam a despontar em muitos dessa patota (eu e minhas gírias fósseis...). Esse aspecto é muito bem representado pela rainha Barb, personagem do divertido filme de animação Trolls 2 (Trolls World Tour - direção de Walt Dohrn e David P. Smith, 2020).
Para ela, só o rock deve ser escutado no mundo dos trolls e, para tanto, ataca os outros reinos. Sua primeira aparição em cena é muito elucidativa (aqui cabe um elogio à atriz e comediante Rachel Bloom, que dá voz à personagem). Não tem nenhum espaço para negociação: as guitarras de seus comandados falam alto e acossam os que não estão com Barb. NOTA: Para ser justo, o filme mostrará que a imposição e a tentativa de homogeneizar o gosto musical não é algo exclusivo dos roqueiros; não se espere, contudo, muita profundidade: afinal, trata-se de um produto de entretenimento voltado sobretudo para o público infantil e do qual se espera determinado retorno mercadológico.
E o que se toca nessa cena?
Rock You Like a Hurricane, gravada originalmente pelos Scorpions em 1984! Banda e canção típicas de tiozões do rock...
Barb finalmente chega a seu objetivo, ganhando o poder de transformar outros trolls em zumbis headbangers. Mas, mesmo antes da resolução do conflito com a protagonista Poppy, um de seus súditos demonstra não estar 100% favorável à ideia de um mundo regido unicamente pelo rock (aliás, o pai de Barb - cuja voz, ironicamente, é a de Ozzy Osbourne - já não parecia muito entusiasmado com todo esse plano de dominação). Diz o baterista Riff (e eu ri bastante nessa parte): "If we all look the same, act the same, dress the same, how will anyone know we're cool or something? [Se todos nós parecermos os mesmos, agirmos do mesmo jeito, vestirmos do mesmo jeito, como alguém saberá que somos legais e tal?]"
Desde a sua origem - por volta dos anos 1950 - e no decorrer das décadas ulteriores, o rock esteve associado à rebeldia e à vanguarda. As coisas mudaram nos últimos tempos, entretanto.
Não é mais contraditório que muitos fãs (e artistas) do gênero sejam retrógrados, intransigentes e propensos ao autoritarismo. E que acabem deslocando esse posicionamento em relação a seu "cardápio" musical para outras esferas da vida.
O tiozão do rock é, em muitos casos, também um tiozão conservador e fechado em preconceitos. Infelizmente.
Pode-se mudar a mentalidade reaça? Por que não? Só que é preciso abrir a cabeça, como diz o João Gordo (Ratos de Porão), falando de sua própria experiência (confira aqui).
BG de Hoje
Mesmo se você assistir a Trolls 2 e não gostar (ao contrário de mim, que adorei), acho difícil não apontar Born To Die como a melhor canção ali - ou, pelo menos, a mais surpreendente, se pensarmos que está na trilha sonora de um filme feito principalmente para crianças. Resultado dessa inusitada parceria entre Justin Timberlake e o cantor country Chris Stapleton (que rendeu o hit Say Someyhing), Born To Die é ainda mais apreciável pela linda interpretação da KELLY CLARKSON.
"A relação entre os romances e os filmes no século 20 foi como a relação entre Roma e Grécia. Os filmes dependiam dos romances, pelo menos em sua infância e juventude. O problema é que agora os próprios filmes foram balcanizados - retalhados, transmitidos por streaming, carregados em DVDs, assistidos nos telefones das pessoas -, não precisam mais da sua Grécia, não precisam mais dos romances para inspirá-los. É um desastre para o romance, na verdade - acho que o romance está em queda livre".
Sinceramente, não sei o que as pessoas andam lendo, sobretudo as mais jovens. Longos e intrincados romances? Não parece ser provável, considerando que há uma enxurrada de filmes, séries de TV e vídeo-games (alguns desses últimos, para além do jogo em si, apresentando uma roteirização nada elementar), cujo acesso é cada vez mais facilitado. Simplesmente não haveria tempo suficiente para ler, proveitosamente, poesia ou prosa. No Brasil, por exemplo, são 13 horas por semana no streaming, em média, para cada um conectado na internet, sem falar nas 12 horas semanais no Youtube, segundo levantamento da NordVPN (que, estranhamente, deixou de fora da apuração a coqueluche chamada Tik Tok). Talvez seja possível afirmar - exageradamente (ou não) - que a ânsia tão humana por histórias (sobretudo inventadas) é agora aplacada por outras formas de narrar, sucedâneas da tradicional literatura. Veja o próprio caso deste blogueiro que vos escreve: apesar de não ter me dedicado muito nos últimos seis ou sete meses, posso me considerar um leitor assíduo, principalmente de ficção (romances e contos); ainda assim, tenho "gastado" boa parte do meu tempo hoje em dia assistindo filmes e séries (vídeo-game nunca foi minha praia).
Sempre busco, dentro de minhas limitações, promover a leitura, mas não é minha intenção aqui choramingar. Trata-se, objetivamente, de constatar as atuais práticas culturais da maioria. Além disso, há ótimas histórias sendo contadas em séries e filmes excelentes. E não só: algumas dessas formas narrativas fílmicas/televisivas são um primor estético, para além das histórias que contam.
Contudo, quero crer que existe uma expressividade muito particular do romance, irrepetível noutras formas de narrar, da qual muita gente (este blogueiro incluso) ainda não consegue abrir mão.
Pensando num trabalho cujo autor é o próprio Will Self, fico imaginando se uma adaptação d'O livro de Dave ¹ para o audiovisual conseguiria ser tão bem urdida quanto é o texto literário. Com relação apenas à trama seca - ao plot -, daria uma boa série, acho eu, alternando, a cada episódio, a época em que Dave Rudman é apenas um taxista perturbado, percorrendo as ruas de Londres no final do século XX e início do XXI, com os acontecimentos do futuro pós-apocalíptico, em que ele é tido como um deus implacável (aliás, é assim que os capítulos do livro foram organizados).
Um bom romance, entretanto, não se esgota nas peripécias de seu enredo.
Talvez volte a tratar desse ponto noutra oportunidade (afinal, como escrevi na primeira postagem que fiz sobre O livro de Dave, o trabalho publicado originalmente por Self em 2006 tornou-se um dos meus prediletos).
A discussão principal de hoje, porém, será outra.
. . . . . . .
Não saberia precisar quando os atuais partidários da extrema direita começaram a sair de suas furnas para marcharem pelas ruas sem qualquer prurido, degradarem o espaço e o debate públicos, elegerem representantes nos parlamentos e até alcançarem cargos máximos do poder executivo nalgumas oportunidades. O fato é que estão em campo por toda parte e não vejo sinais de que vão recuar ou se recolher.
A partir de uma perspectiva amparada no influxo dos afetos no terreno da política, alguns têm apontado que o ressentimento é um dos ardores que leva muitos a se colocarem ao lado dos extremistas de direita, de neofascistas e neonazistas
O medo e a esperança são provavelmente os afetos com maior tradição dentro da filosofia política, desde os contratualistas, pelo menos. Mundo afora, ultimamente, fala-se muito no efeito dos variados ódios dentro da sociedade. No Brasil, Vladimir Safatle (professor cujo pensamento sempre procuro acompanhar, na medida do possível) vem defendendo a necessidade de afirmarmos o desamparo, se quisermos fundar novas ações coletivas.
Mas não nos desviemos do nosso tópico.
Maria Rita Kehl, em artigo publicado em 2020 ², observou, como psicanalista, que
"a atualidade do tema ressentimento é, antes de mais nada, clínica. Essa paixão triste comparece com frequência em nossos consultórios, alimentada por acusações contra alguém ou contra o mundo todo. 'Eu sofro: alguém deve ser culpado por isso': assim Nietzsche resume a lógica do ressentido e seu apego ao dano. O ressentimento é uma constelação afetiva que serve aos conflitos característicos do homem contemporâneo, entre as exigências e as configurações próprias do individualismo, e os mecanismos de defesa do 'eu' a serviço do narcisismo. [...] Ressentir-se significa atribuir ao outro a responsabilidade pelo que nos faz sofrer".
Segundo Kehl, "o ressentido não é alguém incapaz de esquecer ou de perdoar; é um que não quer se esquecer, ou que 'quer não se esquecer', não perdoar, nem superar o mal que o vitimou". E prossegue: "O filósofo Max Scheler, que discute as teorias de Nietzsche a partir de uma ótica cristã, considera como 'auto-envenenamento psicológico' o estado emocional do ressentido, um introspectivo ocupado com ruminações acusadoras e fantasias vingativas".
Nesse momento, preciso confessar que ainda carrego comigo muito ressentimento, um dos responsáveis pelo meu contínuo estado de raiva. Tenho familiaridade com tal "auto-envenenamento psicológico". Essa "paixão triste" também diz respeito a mim; não vou dar uma de superior. Por isso sei como o ressentimento é forte a ponto de distorcer nossa visão das coisas.
Não estou afirmando, entretanto, que as inclinações e as movimentações políticas devam ser explicadas e analisadas recorrendo-se exclusivamente ao psiquismo humano. É fundamental, a meu ver, refletir de antemão sobre as determinações de base econômica, infraestruturais/materiais, que incidem diretamente na luta de classes. Afirmo apenas que as emoções e os afetos não devem ser desconsiderados quando resolvemos pensar amplamente sobre a política.
Mas o que tudo isso têm a ver com o romance do qual estávamos falando acima?
. . . . . . .
Atentemos para um trecho do segundo capítulo d'O livro de Dave. Esse momento da narrativa ocorre em algum dia de dezembro de 2001, poucos meses após o atentado terrorista contra o World Trade Center e a subsequente invasão do Afeganistão pela coalizão capitaneada pelos EUA (tendo como principal apoiador o Reino Unido).
Um passageiro norte-americano que estava dentro do táxi de Dave Rudman, indo para o aeroporto, joga conversa fora com o motorista:
"[...] 'Não votei no Bush, mas, na minha opinião, ele tá lidando direito com isso, e não foram as Torres Gêmeas que nos puseram contra aqueles camaradas do Talibã - Deus sabe que coisa horrível foi aquilo - mas eu já sabia que era uma gente horrível quando explodiram as duas estátuas antigas do Buda, sabe quais?'
'Sei'. Camaradas? Deus sabe?
'Qualquer sujeito capaz de destruir uma coisa linda e antiga com tanta brutalidade... bom, nada que fizessem iria me surpreender depois daquilo... e o jeito como tratam as mulheres, também'.
No que me diz respeito, o jeito como tratam as mulheres é a melhor coisa daqueles arrombados... mantenham essas esfihas na linha, é o que eu digo... veja minha ex, simplesmente se mandou e bateu com a porra da ordem de restrição na minha cara, mas isso nunca teria acontecido em Cabul, eu teria enfaixado ela num daqueles troços pretos de freira antes que tivesse tempo de dizer pensão alimentícia... 'Não poderia estar mais de acordo. Foi um negócio muito triste'. Porque podiam ter ido um pouco mais longe, os desgraçados - tirem as crianças delas - nada de crianças, nenhuma porra de direito da mãe pra cima da gente..."
Will Self se vale de um recurso bem simples e trivial nos capítulos em que Rudman é o personagem central: o que se passa na cabeça dele é escrito com uma formatação de texto diferente. O passageiro não sabe da sua opinião completa sobre os Talibãs, mas o leitor, sim.
A origem do machismo e misoginia do taxista provavelmente é outra; o divórcio, porém, e o posterior impedimento (por culpa dele, aliás) de ver o filho certamente fizeram o seu ressentimento transbordar.
A decorrência?
Como disse acima, O livro de Dave conta duas histórias: em uma, Dave Rudman é apenas um taxista, com graves problemas de saúde mental e física (agravados pela situação financeira difícil), rodando por uma metrópole como Londres - multicultural e multiétnica -, que ele ama mas com a qual não consegue se ajustar; na outra, que se passa 2.000 anos depois, Dave é o nome de um deus, adorado por uma tirânica religião monoteísta, baseada num livro "sagrado".
E de onde veio essa obra "sagrada"?
No auge de seu desatino, o taxista julgou ser o profeta de uma divindade (também chamada Dave) e escreveu as palavras "divinas" em placas de metal que enterrou escondido no quintal da casa em que a ex-mulher e o filho moravam. Após um cataclismo - provavelmente causado pelo aquecimento global -, milhares de anos no futuro, o livro "sagrado" foi descoberto. O que continha? Uma "coleção de prescrições e exigências ao que parece derivadas do mundo do trabalho dos taxistas londrinos, uma compreensão tortuosa numa mixórdia de fundamentalismo, mas na maior parte a própria misoginia vingativa de Rudman" (essa foi a avaliação da psiquiatra do taxista).
Essa sandice em forma de texto virou fonte de adoração religiosa...
. . . . . . .
Um ressentido sozinho, isolado, não consegue provocar grandes danos, geralmente.
Mas e quando eles se unem? Quando compartilham entre si suas tantas frustrações, "ruminações acusadoras e fantasias vingativas" (para lembrar as palavras de Maria Rita Kehl)? N'O livro de Dave, um grupo de pais divorciados monta uma associação chamada Fathers First, que depois assume o nome Fighting Fathers. No início, somente um clube cheio de sujeitos queixosos e injuriados; depois, uma turma pronta para abraçar intolerâncias mil, xenofobia e reacionarismo em geral.
Não se deve subestimar o ressentimento.
________________
¹ SELF, Will. O livro de Dave: uma revelação do passado recente e do futuro distante. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009 [tradução de Cássio Arantes Leite]
² KEHL, Maria Rita. Ressentimento. A Terra é redonda (website). Artigo publicado em 28/07/2020. Disponível em <https://aterraeredonda.com.br/ressentimento-2/>. Acesso em 19/06/2023
BG de Hoje
Acho que já escrevi aqui nessa seção sobre os anos 1990 serem a minha década musical. Vários álbuns e artistas que despontaram naquela época figuram entre os meus preferidos. Semanas atrás, estava ouvindo os dois discos lançados no período pelo GIN BLOSSOMS e o New Miserable Experience, de 1992, é tão bom! É nele que está a faixa Found Out About You (que lembra muito uma certa fase do R.E.M.). Foi escrita pelo guitarrista Doug Hopkins, um dos fundadores da banda e principal compositor do grupo até então. A letra é melancólica, até um tiquinho sinistra. Transborda ressentimento - mas eu adoro essa canção. Hopkins acabou se suicidando em 1993. Foi demitido antes da finalização da gravação do disco. Não estava bem de saúde mental e o alcoolismo não ajudava. Triste.
A expressão leitura obrigatória, preciso admitir, não é das mais simpáticas. Há bons motivos para não gostarem dela. Não obstante, costumo advogar por certas leituras obrigatórias...
Anteontem, início da madrugada, fui reler mais uma vez o Macunaíma. De repente, lá estou eu rindo sozinho no encontro do protagonista e seus irmãos com o "bacharel de Cananeia" ¹:
"Correndo correndo, légua adiante deram com a casa onde morava o bacharel de Cananeia. O coroca estava na porta sentado e lia manuscritos profundos. Macunaíma falou pra ele:
- Como vai, bacharel?
- Menos mal, ignoto viajor.
- Tomando a fresca, não?
- C'est vrai, como dizem os franceses.
- Bem, té logo bacharel, estou meio afobado...
E chisparam outra vez. [...]"
Ri sozinho também naquele que considero o capítulo mais engraçado em todo o livro - o décimo, A velha Ceuci. Um trecho:
"Uma madalena que estava na frente do herói virou pro comerciante atrás dela e zangou:
- Não bolina, senvergonha!
O herói estava cego de raiva, pensou que era com ele e:
- Que 'não bolina' agora! não estou bolinando ninguém, sua lambisgóia!
- Lincha o bolina! Pau nele!
- Pois venham, cafajestes!
E avançou pra multidão. O advogado quis fugir porém Macunaíma atirou um pontapé nas costas dele e entrou pelo povo distribuindo rasteiras e cabeçadas. De repente viu na frente um homem alto loiro muito lindo. E o homem era um grilo [ou seja, guarda de trânsito, em gíria antiga]. Macunaíma teve ódio de tanta boniteza e chimpou uma bruta duma bolacha nas fuças do grilo".
O poeta Frederico Barbosa (hoje talvez mais conhecido por seus trabalhos como gestor cultural) fez uma observação, quase ao final do episódio Mário de Andrade: reinventado o Brasil (daquela série de programas bacana da TV Escola, Mestres da Literatura, veiculada há alguns anos, encontrável no Youtube), que vale muito comentar:
"Acho que é fundamental ler o Macunaíma, Amar, verbo intransitivo [...], Ode ao Burguês, porque é divertido. Isso eu acho uma coisa fundamental. Os professores de Literatura em geral falam: 'é preciso ler porque é importante'. Acho que eles não gostam de ler. É preciso ler porque é divertido. É preciso ler porque é gostoso. Porque você dá muita risada com o Macunaíma".
Posso falar por mim: não importa quantas vezes volte a suas páginas, o sorriso vem fácil em várias passagens da saga do "herói de nossa gente". Nesse ponto, estou de pleno acordo com Barbosa. O dissenso se dá na maneira como ele vê a atuação dos professores de Literatura em geral.
De fato, alguns deles e algumas delas podem mesmo não gostar de ler: trabalham com Literatura porque foi a ocupação que apareceu, precisam pagar as contas e, num meio educacional bastante falho como o brasileiro, as coisas são assim. Também existem outros e outras que adoram ler, mas, por vários fatores, não conseguem transmitir esse entusiasmo ². E há também vários e várias que enfatizam a importância de determinadas obras - ao invés de favorecer a fruição - e isso não deveria ser um problema.
Em março de 2016, fiz uma postagem discutindo, entre outros tópicos, o título Andar entre livros: a leitura literária na escola, de Teresa Colomer. Na época, eu ainda tinha disposição para debater assuntos educacionais e trabalhava diretamente com promoção e incentivo à leitura. Repito aqui uma das citações da pesquisadora de Barcelona de que fiz uso naquela ocasião:
"Talvez tenhamos de reconhecer que, para muitas pessoas, este último acesso à leitura só terá lugar no contexto escolar e como experiência pontual. Ler enriquece a todos até certo ponto, mas como diz o escritor catalão Emili Teixidor, para certas obras o leitor não apenas precisa de ajuda, mas um certo 'valor moral', uma disposição de ânimo de 'querer saber'. Nem todo mundo, nem sempre, o deseja. É útil pensar a educação literária como uma aprendizagem de percursos e itinerários de tipo e valor muito variáveis. A tarefa da escola é mostrar as portas de acesso".
A literatura, como manifestação artística, não chega a todos da mesma forma (isso vale para todas as outras formas de arte, penso eu). Existem obstruções sérias nessa via leitor-texto literário que impedem qualquer possibilidade de fruição e de diversão. Temos desde a trajetória escolar acidentada (é comum encontrar estudantes no Ensino Médio incapazes de compreender textos que não sejam os mais elementares), até uma aversão imotivada aos livros, sem contar o desinteresse puro e simples (em tempo: ninguém é obrigado a gostar de literatura, obviamente).
Às vezes, fico muito incomodado com essas mensagens do tipo "ler é dar asas a imaginação" ou "ler é viajar", referindo-se ao prazer que um bom poema, conto ou romance podem, supostamente, proporcionar. Há o lado do "trabalho" do leitor que frases como essas, convenientemente, ocultam. Esse "trabalho" implica não só a decodificação propriamente dita do texto, mas a concentração, certa disciplina e persistência, comuns a todos os leitores assíduos, mas que precisam ser desenvolvidas e cultivadas nos leitores ocasionais e nos não-leitores, que não as têm. Além disso, como diz Teixidor no excerto acima, se o indivíduo não apresentar uma certa "disposição de ânimo de 'querer saber'", determinados livros nunca farão parte de seu repertório cultural.
Por mais que a educação básica seja insatisfatória, a escola, a meu ver, não erra quando ressalta a importância de alguns livros de prosa ficcional ou de poesia em relação a outros e os explora didaticamente. Pode-se questionar se essa ação está sendo bem realizada ou não, mas a iniciativa em si é válida, acredito.
Clássicos como o Macunaíma costumam ser uma dessas obras abordadas no Ensino Médio (deveriam mesmo ser, porque são importantes), mas que acabaram tendo seu alcance diminuído sendo vistas, infelizmente, apenas como objeto de estudo. Pessoalmente, acho que é um livro meio obrigatório para qualquer brasileiro (ou qualquer estrangeiro interessado nesse país) disposto a entender o que faz o Brasil ser o que é.
Gostaria, contudo, que as pessoas também consigam sorrir ao lê-lo, porque é mesmo pra dar risada.
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Pretendo voltar ao Macunaíma assim que for possível para fazer uma análise mais cabeçuda, que não se encaixaria na discussão da postagem de hoje.
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¹ ANDRADE, Mário de. Macunaíma o herói sem nenhum caráter. 30 ed. Belo Horizonte/Rio de Janeiro: Villa Rica Editoras Reunidas Ltda, 1997 [Texto revisto por Telê Porto Ancona Lopez]. Todas as citações da obra nesta postagem foram extraídas dessa edição
² Ana Maria Machado, numa entrevista publicada há uns 20 anos (infelizmente, não tenho mais o exemplar da extinta revista Educação para apontar a referência), falou sobre a dificuldade de se estabelecer uma didática eficiente do ensinar a ler Literatura. Na ocasião, ela disse que talvez o melhor seja tentar "transmitir um entusiasmo", mais do que basear-se em uma metodologia (sem, entretanto, desconsiderar a importância desta).
BG de Hoje
O TERNO seria uma das poucas bandas pelas quais eu estaria disposto a quebrar meu jejum de quase 20 anos sem ir a qualquer show de música. Canções como Zé, assassino compulsivo parecem funcionar muito bem ao vivo.
* LEMINSKI, Paulo. Podem ficar com a realidade. In: _________. Melhores poemas de Paulo Leminski [Seleção de Fred Góes e Álvaro Martins]. 6 ed. São Paulo: Global, 2002. p. 125
O aumento no número de ataques violentos a escolas no Brasil nas duas últimas décadas vem se somar à batelada de coisas que me tiram o sono, quase todas as noites, nos últimos tempos. Revela como a sociedade brasileira ficou ainda mais doentia e perversa. Há, porém, dois outros motivos, mais pessoais, para meu desassossego: 1) trabalho justamente em uma escola, que atende a Educação Infantil e o Ensino Fundamental, num setor bem próximo da entrada; 2) sou negro (e muitos desses agressores são adeptos do supremacismo branco).
Infelizmente, acho que a tendência desses ataques é crescer. Há os imitadores, mas, sobretudo, há a expansão do neonazismo e sua capacidade de recrutamento e incitação - direta e indireta.
Esses agressores covardes (matam crianças, CRIANÇAS!), ao que parece, vão se tornar um risco permanente.
A respeito desse assunto, ofereço ao(à) eventual leitor(a) este elucidativo artigo escrito pelo pedagogo Leonardo Sacramento (e publicado no sempre ótimo site A Terra é redonda):
[Atualização em 07/04/2023: Embora a polícia esteja afirmando que o assassino responsável pelo ataque ocorrido dois dias atrás à creche em Blumenau teve um surto paranoico e agiu de forma isolada, tal declaração não significa que outros casos desse tipo - passados ou futuros - não estejam (ou não estarão) fortemente ligados ao ideário fascista-neonazista]
É o neonazismo, estúpido!
Leonardo Sacramento
O assassino que esfaqueou a professora em São Paulo brigou na semana anterior e apanhou dos alunos porque havia chamado um deles de macaco. Algo para ser mais bem elucidado, se a mídia e a polícia permitirem, pois sempre tratam esses ataques como se fossem suicídio. Reina a lógica do silêncio para enfatizar aspectos psicologizantes, deslocando o debate para um mero casuísmo da psiquê.
Em seu celular, foram encontrados exemplos de invasão e chacina em escolas. A estética de suas vestimentas segue padrão dos ataques anteriores, com referências explícitas.[i] O Twitter trouxe, minutos depois, informações valiosas, como a existência de um subgrupo neonazista do qual fazia parte, cujo nome escolhido foi o mesmo do terrorista de Suzano (SP). Ali, foi encorajado e sugestionado a se vingar da sociedade que o teria retirado de seu devido e histórico lugar. Com essa narrativa, grupos neonazistas trabalham com jovens em darkweb, deepweb, mundo gamers e, agora e inclusive, em redes sociais, indicando a existência de uma considerável aceitação social.
As instituições e principalmente a esquerda não entenderam o que está acontecendo entre os jovens. Desenhemos o processo em 10 fatos geralmente silenciados, os quais, por óbvio, não excluem mais minudências: (i) Esses ataques têm sugestionamento e direção de grupos neonazistas na web, inclusive em redes sociais abertas. Isso indica que o trabalho realizado por anos a fios em sítios e jogos que ocultavam paradeiros e emissários deu certo; (ii) Os grupos prioritários são jovens brancos empobrecidos que pertenceriam a uma espécie de classe média baixa – há exceções, como o terrorista de Realengo, que matou dez mulheres em um total de doze jovens, quase todos negros.[ii] Esses jovens se transformam em guardiões do Tradicionalismo por terem, segundo narrativa conservadora, perdido espaços em frentes outrora monopolizados em um mundo mais reto e tranquilo. Agora, disputariam de vaga em ensino superior a vaga de trabalho, inclusive a própria representação estética, com negros, indígenas, mulheres e LGBTQIA+;
(iii) O ataque ocorrido em Barreiras, na Bahia, por um branco de Brasília, filho de policial (o maior salário de polícias do Brasil), é o caso mais exemplar. Chamava os habitantes de inferiores.[iii] Matou uma cadeirante, também negra. Ele tinha contato com o assassino de Aracruz (ES), que matou quatro mulheres (apenas mulheres);[iv] (iv) O celular do assassino de Saudades (Santa Catarina), aquele que matou bebês e professoras (mulheres), ligou-o a grupos neonazistas do Rio de Janeiro.[v] Talvez tenha sido o caso tratado de forma mais absurda, pois a hipótese inicial foi a de bullying. O que os bebês fizeram ao terrorista é um mistério.[vi]
(v) Os dados desse grupo do Rio de Janeiro ligaram-no ao assassino de Suzano (São Paulo). Logo, é uma rede sem medo de aparecer. Quem faz questão de escondê-la é a polícia, a mídia, os governos, a burguesia e a classe média, inclusive a autoproclamada progressista. Em Monte Mor, a bomba falhou e o terrorista foi preso com machadinha. Em Suzano um tinha arma de fogo, outro uma machadinha. Outros ataques são a faca. Priorizam arma de fogo, mas quando não conseguem, existe um roteiro com inspiração em certos jogos com facas e machadinhas.
(vi) Os grupos neonazistas procuram jovens que já ganham ou ganharão menos que os pais, sem perspectiva de qualquer sorte diferente. Culpam as mulheres, por entrarem no mercado de trabalho e não se resumirem ao exercício do papel de mães e esposas, imigrantes (nordestinos no Sul e Sudeste, latinos nos EUA e africanos e árabes na Europa) e negros (entrada no mercado de trabalho e cotas). Esses jovens são, sem exceção, supremacistas, mesmo que não militem formalmente em uma célula neonazista.
(vii) No caso das mulheres, defendem, ao lado das Igrejas Neopentecostais, a mulher tradicional e submissa. Entendem que a nova mulher é fruto de uma espécie de confusão sexual da modernidade, cujas sexualidades são atacadas como quebra do Tradicionalismo no qual o homem branco é a ponta da pirâmide. Portanto, defendem um retorno ao que era seguro aos homens brancos. Redpills e incels são expressões e objetos de interesse de grupos neonazistas na deepweb, darkweb, gamers e plataformas e redes sociais, como Youtube, Telegram e Twitter. Basta acompanhar subgrupos e comentários em canais vinculados à direita e ao universo jovem.
(viii) Bullying não provoca os ataques. Quem acha isso é porque se identifica com os autores, identificando-se socialmente e racialmente – uma espécie de supremacismo velado. Não ocorre o mesmo com os jovens pretos em comunidades ou com as mães que roubam comida; (ix) essa geração é mais afeita ao neonazismo porque ela é o produto mais bem acabado do neoliberalismo. Fragmentada, é a geração sem trabalho porque o trabalho foi destruído pelo neoliberalismo. A garantia social que possuía para reproduzir o status quo familiar foi junto. Como resposta, essa geração volta-se contra as famigeradas minorias, que estariam ocupando o lugar que tradicionalmente lhe seria cativa. Ou seja, o neoliberalismo destrói a realização da expectativa de reprodução de classe e raça, mas fomenta o sectarismo neonazista para preservar a fragmentação na classe por meio da reafirmação da superioridade racial. Por isso não é possível separar fascismo de neoliberalismo. São siameses.
(x) Por que apenas escolas públicas? Porque os intrusos estão lá. Porque os escolhidos, os brancos empobrecidos de classe média baixa também estão lá, sendo contaminados, como lembrou o assassino de Barreiras (BA). O assassino de Suzano atacou apenas negros. Estamos sob ataque! Trabalhadoras e trabalhadores negros precisam aprender a se defender e reagir preventivamente a grupos neonazistas, de forma organizada e violenta.
Parece que tanto a institucionalidade quanto a esquerda não entenderam o fenômeno, mais ou menos quando da ascensão do neofascismo nas Igrejas Evangélicas a partir de 2013 – não percamos tempo com a direita. Em essência, não é problema de estrutura escolar (embora não tenha investimento e precise ser feito), bullying e falta de cultura de paz. É fascismo e neonazismo.
Não há relação de causa e efeito entre estrutura escolar, bullying e ausência de cultura da paz. Não foi mero racismo, em que o pobre jovem branco seria vítima do famigerado “racismo estrutural”, conceito que foi transformado em pó de pirlimpimpim na mídia e grupos voltados a oferta de uma “educação antirracista”. Foi neonazismo, com forte, evidente e explícita atuação de grupos neonazistas. Todos os ataques em escolas nos últimos anos têm assinatura de grupos neonazistas. Se Umberto Eco atentava que “o fascismo eterno ainda está ao nosso redor, às vezes em trajes civis”, os ataques em escolas públicas mostram que os trajes civis foram abandonados. Os trajes são militares. É preciso “golpear de morte a besta fascista em seu próprio covil”.
O ataque a escolas por neonazistas,[vii] independentemente da idade, deve ser tipificado como terrorismo. As investigações devem ser federalizadas com a formação de um grupo de combate ao neonazismo, incluindo Polícia Federal e Ministério Público Federal. Deixar para as polícias estaduais, sem compreender a concatenação de todos os ataques, é contribuir para a profusão do neonazismo e naturalizar os ataques coordenados e planejados em escolas.
Quanto aos jovens objetos dos ataques, é prudente se formarem para agir preventivamente, de forma violenta e organizada. Vai ter que ter ação preventiva e reação justa de movimentos populares, sobretudo negros e mulheres (a grandíssima maioria das vítimas é a mulher negra e pobre). Não vai dar para terceirizar tudo para o governo. Ele tem a sua cota, mas sem movimento popular conscientemente violento, como indica Fanon em Os Condenados da Terra, chegará o dia em que naturalizaremos os grupos neonazistas como fizemos com o bolsonarismo. Fora disto, é só confete.
Assim, é inadmissível a defesa de cursinhos antirracistas para neonazistas (sic!) porque seriam vítimas do discurso de ódio. A questão é: materialmente, por que o discurso neonazista tem aderência a esses jovens brancos pertencentes a uma espécie de classe média empobrecida? A resposta é desconfortante para quem acredita que os problemas brasileiros poderão ser resolvidos com diálogo. Perguntar abstratamente o que aconteceu a esses jovens neonazistas e relacioná-los a meras vítimas do “discurso do ódio” é inverter quem é a vítima. O padrão é ataque a escolas públicas para matar negros, cadeirantes, mulheres e pobres. Matar professoras é outra constante de todos os ataques. Eis o busílis.
*Leonardo Sacramento é pedagogo no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo. Autor do livro A Universidade mercantil: um estudo sobre a Universidade pública e o capital privado (Appris).
Notas
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[i] Em seguida ao assassinato, o terrorista publicou carta aos familiares, com evidente objetivo vitimizante. Disponível em https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2023/03/29/autor-de-ataque-a-escola-ameacou-adolescente-por-mensagem.htm. Desconhece-se casos de assassinatos em que o assassino se autopsicologiza logo em seguida, salvo para intenções penais, o que demonstra um planejamento que englobou, inclusive, uma justificativa para a sociedade com um discurso pronto, notadamente para grupos sociais no qual esse discurso psicologizante tem forte apelo.
[ii] Lista de vítimas disponível em https://g1.globo.com/Tragedia-em-Realengo/noticia/2011/04/policia-divulga-nome-e-idade-de-oito-vitimas-do-tiroteio-em-escola-do-rio.html.
[iii] Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2023/03/colega-de-escola-diz-que-adolescente-proferiu-xingamentos-racistas-e-avisou-que-faria-ataque.shtml. Também disponível em https://oglobo.globo.com/brasil/noticia/2022/09/me-misturar-com-eles-e-nojento-policia-acredita-que-atirador-de-14-anos-que-matou-aluna-cadeirante-anunciou-massacre-em-perfil-extremista.ghtml.
[iv] Disponível em https://g1.globo.com/es/espirito-santo/noticia/2022/11/25/quem-sao-as-vitimas-do-ataque-a-escolas-em-aracruz-es.ghtml.
[v] Disponível em https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2021/12/16/investigacao-de-massacre-em-creche-de-sc-revelou-celulas-nazistas-no-rio.htm.
[vi] Para uma análise da vinculação entre o ataque à creche e o neonazismo, ver https://aterraeredonda.com.br/as-motivacoes-do-ataque/.
[vii] Agradeço a leitura, crítica e a proposição da inclusão de fotos ao Prof. Jefferson Nascimento (IFSP).
BG de Hoje
Nos meus (muitos) momentos de desespero, uma das canções que mais têm me acalmado é esta: World Stops Turning, da banda canadense ALEXISONFIRE.
Um das consequências mais aflitivas de meu prolongado estado de depressão é a perda de ânimo e entusiasmo para atividades que, para mim, eram vitais.
De uns tempos pra cá, tenho lido cada vez menos textos literários. Já perdi a conta dos livros dos quais desisti após percorrer umas poucas dezenas de páginas.
Não tem a ver com a qualidade dos escritos. É que, nalguns dias, a aridez em mim machuca muito; noutros, sou tomado por uma raiva difícil de dissipar. Como ler literatura nessas condições?
Falta apetite, a curiosidade se foi. Não há concentração. Uma sensação de cansaço imensa.
Não peço nada de mais. Queria apenas minha regularidade de volta.
Porque ler obras literárias também é não sucumbir de vez - antes da morte propriamente dita - nestas sociedades de merda em que vivemos.
Olho para o que vem acontecendo nos últimos anos nos EUA. Um dos efeitos da chamada guerra cultural, a proibição da aquisição e circulação de determinados livros em escolas e bibliotecas em estados como Texas, Pensilvânia e Flórida, almejada por associações e grupos ultraconservadores e legitimada por políticos e governantes locais, demonstra que o emburrecimento tornou-se um elemento essencial da paisagem política de nossos dias, junto com o fanatismo. Não se trata só de preconceito e intolerância, o que já seria terrível. Trata-se do orgulho da própria ignorância (ignorância aqui como sinônimo de incivilidade). Quase todos os títulos proibidos por esses indivíduos são considerados "afrontas aos valores" deles ou são tidos por eles como "divisivos". Isso inclui publicações mais recentes, não tão conhecidas, apresentando personagens LGBTQIA+, com temática de gênero ou racial (espantei-me quando soube que o afetuoso Hair Love, feito para crianças, está entre os proscritos), mas livros já consagrados pela crítica, como Lord of the Flies (O senhor das moscas) e The Handmaid's Tale (O conto da aia), vivem em risco permanente em alguns distritos.
Por outro lado, certas ações presumivelmente progressistas no setor das publicações literárias também têm me deixado de cabelo em pé. Falo, claro, das alterações/modificações (ou atualizações, como já li em alguns artigos) realizadas pelas editoras em obras de escritores já falecidos, como Roald Dahl, Ian Fleming, Agatha Christie e Monteiro Lobato, para citar um brasileiro (cuja revisão está sendo dirigida pela bisneta do escritor, Cleo). A justificativa mais comum apresentada é que certas palavras e caracterizações usadas por esses autores em seus textos ofendem determinados gupos/tipos de pessoas, não se coadunando com a sensibilidade de hoje em dia. Não tenho dúvida de que Fleming e Christie tinham uma visão eurocêntrica, preconceituosa em relação a outros povos e etnias; estou convicto de que Lobato era racista; e Dahl tinha gosto pelo insulto. Há trechos problemáticos e tóxicos (para usar um adjetivo da moda) no que escreveram esses artistas? Certamente. Mas será o melhor caminho alterar o que escreveram? Os leitores e os mediadores de leitura seriam assim tão incautos a ponto de necessitar desse "resguardo"? Não seria melhor discutirmos (e até polemizarmos com) o conteúdo desses textos à luz do zeitgeist atual ao invés de "corrigi-los"? Ou, caso não seja possível, simplesmente afirmar a repulsa pelo texto (ou por partes deste) e escolher outro(a) escritor(a), mais do agrado do(a) leitor(a), sem necessidade de dar uma "maquiada" na coisa? Oponho-me a esse programa de sanitização da arte, de assepsia da escrita literária. Não é obrigação de um texto literário - nem de qualquer obra de arte - acomodar-se às suscetibilidades do público, por mais que aquele texto nos fira de alguma forma (falo de escritos artisticamente genuínos, pois, sabemos, pode-se disfarçar o discurso de ódio sob a aparência de um texto literário). Felizmente, alguns editores se recusam a fazer tais alterações.
Ainda sobre o ponto levantado acima, creio haver também uma motivação puramente capitalista. Seria, obviamente, danoso para a imagem de determinados produtos associá-los ao racismo, à gordofobia ou ao capacitismo, por exemplo. Não devemos nos esquecer que Fleming criou o agente 007; algumas histórias de Christie ainda têm apelo junto ao público (como é o caso das recentes adaptações cinematográficas de Assassinato no Expresso do Oriente e Morte sobre o Nilo). Lobato idealizou O Sítio do Picapau Amarelo, marca que está estampada em várias mercadorias Brasil afora; e Dahl, autor de Matilda e A fantástica fábrica de chocolate, tem um alcance planetário junto ao público infantil (eu, por exemplo, adoro seu livro Os pestes). Como seria possível vender tudo isso com a pecha de CANCELADO carimbada em cima?
Talvez não tivéssemos de lidar com a proibição e nem a alteração de livros se houvesse mais bom senso entre as pessoas...
A frase idiota que acabei de escrever - já sabia que era idiota no momento em que a digitava - é na verdade uma espicaçada no(a) eventual leitor(a) e em mim mesmo.
Tirando os assumidamente inconsequentes e os indivíduos diagnosticados com sérios problemas mentais, as pessoas, no geral, costumam achar que são bastante sensatas. Porém, sempre me lembro de uma frase (pra variar) certeira de Millôr Fernandes ¹ : "A melhor maneira de demonstrar que você é um homem de extraordinário bom senso é não acreditar nisso".
Você sabe: nós, humanos, não costumamos lidar bem com as divergências. Por isso, temos a tendência de reconhecer como pessoas razoáveis, como pessoas com quem se pode entrar em acordo, apenas aquelas que compartilham ideias e crenças parecidas com as que já tínhamos. Assim, tendemos a achar que falta bom senso aos outros, mas não a nós. Além disso, tanto a proibição dos livros quanto as alterações dos textos originais partem de supostas boas intenções - e sabemos que o inferno está apinhado delas.
Claro, há os líderes e políticos de extrema direita que usam a proibição dos livros para empurrar sua agenda fascista, mas muitas outras pessoas que defendem esse procedimento nem são tão reacionárias assim: acreditam piamente que estão "protegendo as criancinhas". Entre os que defendem as atualizações dos textos de determinados autores, há aqueles que acreditam que é possível construir um mundo melhor corrigindo expressões desagradáveis em filmes e livros publicados há décadas e à revelia de seus autores (que já estão mortos).
Em setembro de 2010, fiz uma postagem sobre um artigo do sociólogo/filósofo polonês Zygmunt Bauman, que discutia uma questão que vai e volta sempre: os livros estariam condenados a desaparecer diante de tantas tecnologias de comunicação/informação/entretenimento disponíveis na atualidade ²? A última frase daquele artigo me parece bem apropriada para o tema que discuti acima: "Para tornar os livros mais adaptados à sociedade em que vivemos, estejamos vigilantes para evitar que a sociedade se torne inadaptada aos livros".
A leitura em geral - mas, em particular, a leitura literária - depende, para ser fecunda, de imersão e de abertura. Imersão para aprofundar-se nos sentidos dos versos ou no enredo, nos personagens, nos conceitos e valores que subjazem uma história contada. Abertura para aceitar a diversidade de perspectivas e a diversidade de formas de se colocar no mundo (e expressar isso por meio de palavras em poemas e narrativas ficcionais).
Infelizmente, tudo o que nossas sociedades atuais fazem é desfavorecer a imersão e obstruir a abertura.
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Não tem a ver com a discussão de hoje, mas tenho que tocar no assunto porque a repugnância tomou conta de mim. No úiltimo domingo, fiquei estarrecido ao ver pela TV as imagens de um sujeito, torcedor do Internacional de Porto Alegre, com uma criança pequena no colo (não devia ter mais do que cinco anos de idade), entrar em campo para agredir jogadores do time do Caxias (que havia acabado de eliminar o Internacional numa disputa de pênaltis, válida pela semifinal do Campeonato Gaúcho).
A cena é repugnante em vários aspectos: a agressão por motivo completamente fútil; a exposição da criança ao risco de sofrer violência; a covardia de usar uma menininha como escudo (pois essa era a real intenção do sujeito, não tenho dúvida).
Como de praxe, no Brasil, nada aconteceu. O sujeito foi embora para casa depois do jogo, sem sofrer consequências (talvez seja banido do estádio futuramente, mas e daí?). O clube, Internacional, não terá nenhum prejuízo ou punição rigorosa (talvez uns jogos sem torcida e fica por isso mesmo). A imprensa, que vive de alimentar rivalidades bobas, infantis, e trata simples eventos esportivos como "batalhas épicas", simula a indignação de sempre e, assim que a poeira baixar, volta tudo a ser como antes.
OK, eu odeio futebol e pode ser por isso também que estou tomado de exasperação. Penso, contudo, que aquela cena torpe no domingo, ao final daquele jogo, é uma das mais eloquentes representações dessa desgraça chamada Brasil.
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¹ FERNANDES, Millôr. Millôr definitivo: a bíblia do caos. Porto Alegre: L& PM, 2002
² BAUMAN, Zygmunt. O livro no diálogo global entre culturas. In: PORTELLA, Eduardo (Org.). Reflexões sobre os caminhos do livro. São Paulo: UNESCO/Moderna, 2003. p. 15-33.
BG de Hoje
É muito comum que o frontman de uma banda acabe atraindo toda a atenção para si e ofusque os outros membros, sobretudo se for um cantor excepcional. Sem dúvida, é o caso do grupo ucraniano JINJER e sua vocalista - neste caso, uma frontwoman - Tatiana Shmailyuk. No entanto, nunca deixo de notar como são precisos e tecnicamente apurados os outros três integrantes. Isso pode ser visto em várias canções da banda, como Teacher, Teacher ou Perennial, mas é particularmente perceptível na faixa mais conhecida deles, a belíssima Pisces, que tem alguns dos versos mais bonitos que já vi numa composição de metal:
"Pisces swimming through the river