quinta-feira, 30 de março de 2023

Sobre proibições, alterações de livros e a ilusão do bom senso

Um das consequências mais aflitivas de meu prolongado estado de depressão é a perda de ânimo e entusiasmo para atividades que, para mim, eram vitais.

De uns tempos pra cá, tenho lido cada vez menos textos literários. Já perdi a conta dos livros dos quais desisti após percorrer umas poucas dezenas de páginas. 

Não tem a ver com a qualidade dos escritos. É que, nalguns dias, a aridez em mim machuca muito; noutros, sou tomado por uma raiva difícil de dissipar. Como ler literatura nessas condições?

Falta apetite, a curiosidade se foi. Não há concentração. Uma sensação de cansaço imensa.

Não peço nada de mais. Queria apenas minha regularidade de volta. 

Porque ler obras literárias também é não sucumbir de vez - antes da morte propriamente dita - nestas sociedades de merda em que vivemos.

Olho para o que vem acontecendo nos últimos anos nos EUA. Um dos efeitos da chamada guerra cultural, a proibição da aquisição e circulação de determinados livros em escolas e bibliotecas em estados como Texas, Pensilvânia e Flórida, almejada por associações e grupos ultraconservadores e legitimada por políticos e governantes locais, demonstra que o emburrecimento tornou-se um elemento essencial da paisagem política de nossos dias, junto com o fanatismo. Não se trata só de preconceito e intolerância, o que já seria terrível. Trata-se do orgulho da própria ignorância (ignorância aqui como sinônimo de incivilidade). Quase todos os títulos proibidos por esses indivíduos são considerados "afrontas aos valores" deles ou são tidos por eles como "divisivos". Isso inclui publicações mais recentes, não tão conhecidas, apresentando personagens LGBTQIA+, com temática de gênero ou racial (espantei-me quando soube que o afetuoso Hair Love, feito para crianças, está entre os proscritos), mas livros já consagrados pela crítica, como Lord of the Flies (O senhor das moscas) e The Handmaid's Tale (O conto da aia), vivem em risco permanente em alguns distritos.

Por outro lado, certas ações presumivelmente progressistas no setor das publicações literárias também têm me deixado de cabelo em pé. Falo, claro, das alterações/modificações (ou atualizações, como já li em alguns artigos) realizadas pelas editoras em obras de escritores já falecidos, como Roald Dahl, Ian Fleming, Agatha Christie e Monteiro Lobato, para citar um brasileiro (cuja revisão está sendo dirigida pela bisneta do escritor, Cleo). A justificativa mais comum apresentada é que certas palavras e caracterizações usadas por esses autores em seus textos ofendem determinados gupos/tipos de pessoas, não se coadunando com a sensibilidade de hoje em dia. Não tenho dúvida de que Fleming e Christie tinham uma visão eurocêntrica, preconceituosa em relação a outros povos e etnias; estou convicto de que Lobato era racista; e Dahl tinha gosto pelo insulto. Há trechos problemáticos e tóxicos (para usar um adjetivo da moda) no que escreveram esses artistas? Certamente. Mas será o melhor caminho alterar o que escreveram? Os leitores e os mediadores de leitura seriam assim tão incautos a ponto de necessitar desse "resguardo"? Não seria melhor discutirmos (e até polemizarmos com) o conteúdo desses textos à luz do zeitgeist atual ao invés de "corrigi-los"? Ou, caso não seja possível, simplesmente afirmar a repulsa pelo texto (ou por partes deste) e escolher outro(a) escritor(a), mais do agrado do(a) leitor(a), sem necessidade de dar uma "maquiada" na coisa? Oponho-me a esse programa de sanitização da arte, de assepsia da escrita literária. Não é obrigação de um texto literário - nem de qualquer obra de arte -  acomodar-se às suscetibilidades do público, por mais que aquele texto nos fira de alguma forma (falo de escritos artisticamente genuínos, pois, sabemos, pode-se disfarçar o discurso de ódio sob a aparência de um texto literário). Felizmente, alguns editores se recusam a fazer tais alterações.

Ainda sobre o ponto levantado acima, creio haver também uma motivação puramente capitalista. Seria, obviamente, danoso para a imagem de determinados produtos associá-los ao racismo, à gordofobia ou ao capacitismo, por exemplo. Não devemos nos esquecer que Fleming criou o agente 007; algumas histórias de Christie ainda têm apelo junto ao público (como é o caso das recentes adaptações cinematográficas de Assassinato no Expresso do Oriente e Morte sobre o Nilo). Lobato idealizou O Sítio do Picapau Amarelo, marca que está estampada em várias mercadorias Brasil afora; e Dahl, autor de Matilda e A fantástica fábrica de chocolate, tem um alcance planetário junto ao público infantil (eu, por exemplo, adoro seu livro Os pestes). Como seria possível vender tudo isso com a pecha de CANCELADO carimbada em cima?

Talvez não tivéssemos de lidar com a proibição e nem a alteração de livros se houvesse mais bom senso entre as pessoas...

A frase idiota que acabei de escrever - já sabia que era idiota no momento em que a digitava - é na verdade uma espicaçada no(a) eventual leitor(a) e em mim mesmo. 

Tirando os assumidamente inconsequentes e os indivíduos diagnosticados com sérios problemas mentais, as pessoas, no geral, costumam achar que são bastante sensatas. Porém, sempre me lembro de uma frase (pra variar) certeira de Millôr Fernandes ¹ : "A melhor maneira de demonstrar que você é um homem de extraordinário bom senso é não acreditar nisso".

Você sabe: nós, humanos, não costumamos lidar bem com as divergências. Por isso, temos a tendência de reconhecer como pessoas razoáveis, como pessoas com quem se pode entrar em acordo, apenas aquelas que compartilham ideias e crenças parecidas com as que já tínhamos. Assim, tendemos a achar que falta bom senso aos outros, mas não a nós. Além disso, tanto a proibição dos livros quanto as alterações dos textos originais partem de supostas boas intenções - e sabemos que o inferno está apinhado delas.

Claro, há os líderes e políticos de extrema direita que usam a proibição dos livros para empurrar sua agenda fascista, mas muitas outras pessoas que defendem esse procedimento nem são tão reacionárias assim: acreditam piamente que estão "protegendo as criancinhas". Entre os que defendem as atualizações dos textos de determinados autores, há aqueles que acreditam que é possível construir um mundo melhor corrigindo expressões desagradáveis em filmes e livros publicados há décadas e à revelia de seus autores (que já estão mortos).  

Em setembro de 2010, fiz uma postagem sobre um artigo do sociólogo/filósofo polonês Zygmunt Bauman, que discutia uma questão que vai e volta sempre: os livros estariam condenados a desaparecer diante de tantas tecnologias de comunicação/informação/entretenimento disponíveis na atualidade ²? A última frase daquele artigo me parece bem apropriada para o tema que discuti acima: "Para tornar os livros mais adaptados à sociedade em que vivemos, estejamos vigilantes para evitar que a sociedade se torne inadaptada aos livros".

A leitura em geral - mas, em particular, a leitura literária - depende, para ser fecunda, de imersão e de abertura. Imersão para aprofundar-se nos sentidos dos versos ou no enredo, nos personagens, nos conceitos e valores que subjazem uma história contada. Abertura para aceitar a diversidade de perspectivas e a diversidade de formas de se colocar no mundo (e expressar isso por meio de palavras em poemas e narrativas ficcionais).

Infelizmente, tudo o que nossas sociedades atuais fazem é desfavorecer a imersão e obstruir a abertura.

. . . . . . .

Não tem a ver com a discussão de hoje, mas tenho que tocar no assunto porque a repugnância tomou conta de mim. No úiltimo domingo, fiquei estarrecido ao ver pela TV as imagens de um sujeito, torcedor do Internacional de Porto Alegre, com uma criança pequena no colo (não devia ter mais do que cinco anos de idade), entrar em campo para agredir jogadores do time do Caxias (que havia acabado de eliminar o Internacional numa disputa de pênaltis, válida pela semifinal do Campeonato Gaúcho).

A cena é repugnante em vários aspectos: a agressão por motivo completamente fútil; a exposição da criança ao risco de sofrer violência; a covardia de usar uma menininha como escudo (pois essa era a real intenção do sujeito, não tenho dúvida).

Como de praxe, no Brasil, nada aconteceu. O sujeito foi embora para casa depois do jogo, sem sofrer consequências (talvez seja banido do estádio futuramente, mas e daí?). O clube, Internacional, não terá nenhum prejuízo ou punição rigorosa (talvez uns jogos sem torcida e fica por isso mesmo). A imprensa, que vive de alimentar rivalidades bobas, infantis, e trata simples eventos esportivos como "batalhas épicas", simula a indignação de sempre e, assim que a poeira baixar, volta tudo a ser como antes.

OK, eu odeio futebol e pode ser por isso também que estou tomado de exasperação. Penso, contudo, que aquela cena torpe no domingo, ao final daquele jogo, é uma das mais eloquentes representações dessa desgraça chamada Brasil.

____________

¹ FERNANDES, Millôr. Millôr definitivo: a bíblia do caos. Porto Alegre: L& PM, 2002

² BAUMAN, Zygmunt. O livro no diálogo global entre culturas. In: PORTELLA, Eduardo (Org.). Reflexões sobre os caminhos do livro. São Paulo: UNESCO/Moderna, 2003. p. 15-33.


BG de Hoje

É muito comum que o frontman de uma banda acabe atraindo toda a atenção para si e ofusque os outros membros, sobretudo se for um cantor excepcional. Sem dúvida, é o caso do grupo ucraniano JINJER e sua vocalista - neste caso, uma frontwoman - Tatiana Shmailyuk. No entanto, nunca deixo de notar como são precisos e tecnicamente apurados os outros três integrantes. Isso pode ser visto em várias canções da banda, como Teacher, Teacher ou Perennial, mas é particularmente perceptível na faixa mais conhecida deles, a belíssima Pisces, que tem alguns dos versos mais bonitos que já vi numa composição de metal:

"Pisces swimming through the river
All their life against the stream
Searching for a hook to catch on
And see their sun beam

Then suffocate in painful tortures
On cutting tables of callous men
Under a knife of handsome butchers emeralds are ripped away
Emeralds are ripped away
Emeralds are ripped away
Emeralds are ripped away"