segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

Religião: um outro nome para controle e busca de poder (e um risco para a democracia)


[Postagem atualizada em 04/07/2020]

Um dos personagens mais odiosos de todos os filmes a que já assisti é a Mrs. Carmody, de O nevoeiro (The Mist - direção de Frank Darabont, 2007), baseado no conto homônimo de Stephen King ¹. Uma parte de minha ojeriza por Mrs. Carmody deve-se, claro, ao magnífico desempenho da (pouco badalada) atriz Marcia Gay Harden (vale mencionar que em 2001 ela já havia sido premiada com um Oscar de coadjuvante por sua atuação em Pollock e indicada a outro, na mesma categoria, por seu papel em Sobre meninos e lobos, de 2003). Mais uma vez, aquela regra não-escrita do cinema e da dramaturgia prevaleceu: quando possível, o papel de vilão/vilã deve sempre ser dado ao/à melhor ator/atriz do elenco.

A outra parte - maior - de minha antipatia provém, contudo, daquilo que a personagem é: uma delirante e hidrófoba religiosa fanática.

Na narrativa escrita por King, a Sra. Carmody, dona de uma lojinha cheia de animais empalhados e objetos excêntricos, mistura seu fanatismo religioso ao curandeirismo e é descrita, sem qualquer sutileza, como uma bruxa (inclusive na aparência estereotipada):

"À claridade mortiça e lúgubre, ela parecia uma bruxa naquelas berrantes calças amarelas, na espalhafatosa blusa, com os braços pesados de chacoalhantes pulseiras de quinquilharia - cobre, casco de tartaruga, adamantina - e sua enorme bolsa. Seu rosto enrugado aparecia sulcado por fortes linhas verticais. O crespo cabelo grisalho se achatava sobre o couro cabeludo, amarrado por três prendedores e torcido na nuca. Sua boca era uma corda franzida".

No filme, a personagem tornou-se uma mulher de meia-idade, com vestes discretas - mas manteve a inseparável bolsa a tiracolo. Não há diferença significativa, contudo, entre as falas de Carmody no conto e na adaptação cinematográfica. E - o que mais importa para esta postagem - tanto o filme quanto o texto original conseguiram evidenciar bem os efeitos políticos causados por uma tal presença.

Uma fortíssima tempestade atinge uma região interiorana do estado do Maine. Após a tormenta, surge um insondável nevoeiro. Pessoas vão a um supermercado local em busca de suprimentos. E lá permanecem, aterrorizadas, pois da bruma misteriosa surgem criaturas horripilantes. Essa é a sinopse da história escrita por Stephen King em 1976, que afirmou gostar "do quê de filme B do conto".

Não bastasse toda a adversidade decorrente do aparecimento de seres medonhos vindos de outra dimensão, o grupo refugiado no supermercado ainda se depara com Mrs. Carmody...

"Não existe defesa contra a vontade de Deus!" - grita ela, em determinado momento - "Isto estava para vir. Eu vi os sinais. Aqui há gente que eu avisei, porém ninguém é mais cego do que aqueles que não querem ver."

É quando outro personagem, Mike Hatlen, vereador da cidade, intervém: "Afinal, o que quer dizer? O que você propõe?"

Ao que a religiosa tresloucada replica: "Propor? Propor? Ora estou propondo que se prepare para encontrar o seu Deus, Michael Hatlen - virou-se e olhou para todos nós - Preparem-se para o encontro com seu Deus!" 

Essa breve cena é particularmente significativa (está também no filme, com pequenas alterações). Mike Hatlen (como boa parte de nós, suficientemente habituado à convivência democrática contemporânea) acredita que, para resolver os problemas dentro de uma coletividade, o melhor método é apresentar propostas e discuti-las - mesmo que os problemas possuam tentáculos monstruosos. Mrs. Carmody, por sua vez, está pouco se lixando para os ritos democráticos. Mais do que isso: ela encarna a própria antipolítica.

. . . . . . .

Em Deus não é grande: como a religião envenena tudo ², o jornalista e ensaísta Christopher Hitchens observou que

"O nível de intensidade flutua de acordo com o momento e o lugar, mas pode-se afirmar como verdade que a religião não se contenta, e no longo prazo não pode se contentar, com suas próprias alegações maravilhosas e sublimes garantias. Ela precisa tentar interferir na vida dos descrentes, ou hereges, ou adeptos de outros credos. Ela pode falar sobre a bem-aventurança do mundo vindouro, mas quer poder neste mundo aqui. E é de esperar que seja assim. Afinal, ela é totalmente criada pelo homem. E não tem a confiança sequer nas suas diversas pregações para permitir a coexistência entre diferentes credos [ou a coexistência com a ausência de credo, acrescento eu]".

Convido o(a) eventual leitor(a) a fazer uma reflexão simples junto comigo. Suponhamos que se acredite numa divindade com todos os predicados geralmente atribuídos ao deus abraâmico - onipotência, onipresença, onisciência. Suponhamos também que se acredite que essa divindade recompensa o bom agir do fiel, ainda que seja após a morte, e pune as más condutas (sem contar que a divindade pode, se for de sua vontade, interceder de pronto, a qualquer momento, diretamente, produzindo um milagre). Aceitando, portanto, essas "alegações maravilhosas e sublimes garantias", por que o crente ³ deveria se preocupar com infiéis ou com aqueles não tão fiéis assim? Basta que prossiga no bom agir e a divindade (repito: onipotente, onipresente, onisciente, que premia o bem, pune o mal e ainda realiza milagres vez ou outra) irá favorecê-lo. Pode-se seguir em paz e, principalmente, deixar os outros em paz, não?

Não.

Porque, sendo uma invenção humana (portanto, sujeita a erros), a religião não consegue mais ser tão persuasiva (já não são tantos os países onde esta possa ser imposta à força); mostra dificuldade para disfarçar suas (muitas) incongruências e contradições, cada vez mais gritantes à medida que suas justificações, promessas e supostas recompensas são confrontadas por uma outra práxis e por outros discursos (principalmente o científico), cujas explicações e soluções para os problemas reais a nossa volta costumam ser melhores do que as fornecidas pela prédica religiosa. Escusado dizer que a ciência também tem seus limites e comete sua própria cota de equívocos (mas que tipo de ser humano, em pleno século XXI, está disposto a negá-la in totum e tomar decisões sem qualquer lastro científico?). Dizendo de outro modo: a religião apresenta rachaduras em sua hegemonia; seu poder se enfraquece. E, por esse motivo, muitos de seus adeptos reagem, constrangendo e forçando o restante da sociedade a continuar conformado aos seus ditames, à sua cosmovisão. Então, já não se trata de enaltecer os bem-aventurados, mas de dominação e controle, seja por meio da jihad islâmica, seja repetindo sem parar "a Bíblia diz".

Antes de prosseguir, convém esclarecer a que estou me referindo quando uso o termo religião.

Chamo de religião não só os sistemas religiosos propriamente ditos, com suas doutrinas, rituais, locais de culto etc., mas também toda e qualquer crença em forças divinas, criadoras intencionais de tudo o que existe e preocupadas com a conduta dos indivíduos, merecendo por isso algum tipo de reverência, quando não adoração, louvor e obediência (ou temor). Também classifico como sendo de caráter religioso aquelas convicções baseadas na sensação de que existiria uma "energia" ou "princípio ordenador" inacessível ao escrutínio racional mas alcançável, talvez, através da contemplação mística ou outro meio "espiritual". Noutras palavras, o sujeito pode não seguir um sistema religioso ou frequentar uma igreja específica, mas se ele acredita num "ser superior", numa entidade sobrenatural responsável pelo arranjo do universo, essa crença (poupando, a meu ver, uma dispensável questão terminológica) deve ser chamada, simplesmente, de religiosa.  NOTA (1): Desde já este blogueiro declara que, a despeito de seu ateísmo, defende intransigentemente o direito das pessoas acreditarem naquilo que quiserem. A problemática surge, porém, quando, dentro de um regime democrático e numa república ciente de seu dever para com a laicidade do Estado, certo ideário religioso faz de tudo para impor-se, como estamos vendo acontecer neste momento, no Brasil. Esse ponto será retomado mais adiante.

Na sua coluna no jornal Folha de S. Paulo, publicada no último 23 de novembro, Vladimir Safatle não coloca panos quentes ao tratar da relação entre religião e política: "Nunca é demais lembrar como a democracia ocidental nasceu, entre outros, por meio do combate à religião". Segundo o filósofo e professor da USP, a democracia ocidental

"foi impulsionada pela criação de um espaço político no interior do qual a justificação do poder não seria mais alimentada por qualquer forma de crença em escolhas divinas, na qual o amparo produzido pelo discurso religioso não desempenharia mais papel nos modos de produção da coesão social. A democracia moderna, como gostava de acreditar Max Weber, seria assim solidária de um processo de desencantamento do mundo vindo da perda do poder unificador dos mitos teológico-religiosos na fundamentação das esferas sociais de valores (cultura, arte, política, economia, ciência, entre outros). Hoje, não é difícil perceber como esse projeto nunca foi completamente realizado. Há várias formas de regressão social periódica a assombrar o que conhecemos até hoje por democracia e uma delas é a regressão religiosa fundamentalista, independentemente de ela ocorrer na Turquia muçulmana, na Polônia católica ou no Brasil com seus evangélicos”.

Para o colunista, vários países (entre estes, o Brasil) falharam em "dar, a largas parcelas da população, algum sentido substantivo para a experiência de serem cidadãs e cidadãos de um estado laico". Esse contingente enorme de pessoas, ao contrário, ficou perdido entre a violência estatal e a exploração econômica. Tal cenário de desalento foi o terreno fértil para a proliferação religiosa de viés mais retrógrado. Na conclusão de seu texto, intitulado República fundamentalista, Safatle escreve:

"No começo dos anos 1970, o psicanalista Jacques Lacan podia dizer: ‘vocês ainda não têm ideia do que será o retorno da religião’. Ele podia dar declarações dessa natureza por perceber como a política moderna mobilizava os mesmos afetos do discurso religioso, como o desejo de amparo e a produção contínua do medo. Contra a religião, só haveria uma saída, mas ela não seria utilizada pelo discurso político. Pois, do ponto de vista da circulação dos afetos, só se quebra a força da religião pela afirmação do desamparo, ou seja, por meio da afirmação da recusa a todo amparo vindo de um Outro, como se do desamparo pudesse nascer uma certa coragem cuja consequência política maior seria a produção de sujeitos que não querem mais ser governados. Sujeitos que sabem que sua ausência de lugar natural não é uma falha que deve ser superada, mas uma condição para a produtividade da liberdade. Sujeitos que afirmam a contingência de sua existência e de seus caminhos. Mas sempre haverá um poder político a se alimentar dos nossos afetos mais regressivos e amedrontados”.

Voltemos rapidamente a O nevoeiro, de Stephen King.

À certa altura, após tantas horas de horror dentro e fora do supermercado, o narrador da história nota como um dos personagens tem o semblante envelhecido e infeliz.

"Ocorreu-me que a maioria de nós devia ter tal aparência. Menos a Sra. Carmody. Ela parecia de algum modo mais jovem e revitalizada. Era como se ela tivesse se encontrado... Aliás, era como se já tivesse conseguido. Como se... estivesse alimentado-se daquilo".

Aquela situação, cheia de pânico e medo, beneficiava justamente o fanatismo e o desvario religiosos. Outros dentro do estabelecimento passaram a dar ouvidos à Sra. Carmody (para eles, tornara-se impossível a "afirmação do desamparo", como diria Safatle). É quando o narrador pensa: "Bastava tornar aquela gente a única e maior força política no supermercado [e ficaria impossível dividir o mesmo espaço]. A ideia de que o maior e único grupo em nosso fechado sistema estava ouvindo sua arenga sobre os abismos do inferno e os sete frascos sendo abertos [referência ao livro do Apocalipse, cap. 15; vers. 7] produzia em mim uma terrível sensação de claustrofobia".

Para a religião (sobretudo para as igrejas e para os sistemas religiosos organizados), não basta a fé como escolha pessoal e direito individual. Mais cedo ou mais tarde - principalmente em períodos e lugares em que o medo e a aflição passam a ser preponderantes entre a população -, a religião buscará controlar e coagir todo o corpo social, tentando fazer com que seus despautérios (no caso do conto de Stephen King, sacrifícios humanos para acalmar a ira de Deus, representada pelos monstros do nevoeiro, como acreditava a Sra. Carmody) tornem-se as normas gerais.

OK, OK, O nevoeiro é uma narrativa ficcional, uma fantasia de terror, e (pelo menos no Ocidente) não temos visto por aí nenhuma liderança religiosa fazendo exigências como as da Sra. Carmody.

Pensemos, contudo, no incansável movimento criacionista nos EUA, pressionando para que a história mítica do Gênesis divida, no ambiente escolar, o mesmo espaço com a teoria da evolução por seleção natural (e, portanto, tenham a mesma validade explicativa). Ou na defesa da segregação (e mesmo perseguição) de determinadas pessoas (LGBTQs, por exemplo) porque "a Bíblia os condena". Ou, falando especificamente do nosso país, consideremos o possível retrocesso da legislação, representado pelo projeto de lei que visa a criação do Estatuto do Nascituro (defendido pela futura ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos), que passaria a considerar criminosas as mulheres que decidissem interromper uma gravidez decorrente de um estupro, além de não resguardar outras tantas do risco de morrerem durante o parto. NOTA (2): O caso dos direitos sexuais e reprodutivos (entre estes, o direito ao aborto) é um tema particularmente elucidativo do quanto a mentalidade religiosa costuma ser prejudicial para as democracias. Por ser um assunto que necessita ser abordado detidamente, deixarei-o para uma postagem a ser publicada mais adiante. 

As religiões estão sempre a postos para impor o modo como todos devem agir e pensar (e não só os seus seguidores). Talvez o(a) eventual leitor(a) não considere os exemplos citados no parágrafo anterior suficientemente absurdos. Mas julgo não estar sendo receoso em excesso quando digo que a absurdez poderá, rapidamente, chegar a níveis ainda mais insuportáveis para muitos de nós (e não falo só dos ateus). Basta tornar essa gente a única e maior força política (vide as teocracias espalhadas pelo mundo, em especial nos países muçulmanos).

E já que mencionamos o Brasil, convém refletir um pouco sobre a situação com a qual temos de lidar por aqui.

. . . . . . .

Um bom retrato do atual cenário político, contaminado pela hipertrofia religiosa, está no livro Em nome de quem? A bancada evangélica e seu projeto de poder, de Andrea Dip .

Publicado este ano, Em nome de quem? é resultado de uma extensa reportagem (a autora integra a equipe da Agência Pública), acrescida de entrevistas e depoimentos. E foi num destes, o do professor e psicanalista Marco Fernandes, que encontrei uma boa explicação para o crescimento e a força das igrejas neopentecostais entre a população de baixa renda:

"O Pentecostalismo surge na favela" - diz ele - "e já nasce com uma tecnologia religiosa que funciona para as classes populares. As pessoas encontram ali um pronto-socorro de saúde mental. Quantas vezes eu ouvi: 'Ah, eu estava mal, entrei na igrejinha da esquina e melhorei!' [Na sociedade atual] Você não tem espaço para ser acolhido, para ter um suporte, escuta, alegria, beleza. E mais: a vida está tão caótica, precarizada, que é impossível as pessoas não terem desejo de ter uma ordem na vida. Algo que centralize, que organize, que ordene. Evidentemente, com isso vem um pacote de conservadorismos. Mas eu costumo dizer que essas igrejas instituem um 'micro-Estado precário de bem-estar social' ".

Embora, a meu ver, esses "pronto-socorros de saúde mental" acabarão, no médio e longo prazos, comprometendo a capacidade de pensar dos indivíduos e a "ordem" defendida pela fé costuma ser tão ou mais hipócrita e ilusória do que outros modelos de "ordem", consigo ver claramente como ir à(s) igreja(s) evangélica(s) local(is) - bem mais "dinâmica(s)", sem aquele ritmo fossilizado do catolicismo - torna-se quase irresistível para o pobre. E isto é crucial: os frequentadores desses espaços, de fato (como a maioria das pessoas, crentes ou não, deve-se admitir), buscam alguém que os escute (e não serei maldoso dizendo que, para isso, basta que eles não se esqueçam de colocar o dinheiro na sacolinha...)

Fernandes também

"acredita que outros fatores entrem nessa equação, como a falta de espaços de cultura e lazer nas comunidades: 'Certa vez, uma amiga disse que a irmã passou a frequentar a Igreja Universal perto da casa delas. Indignada, ela foi perguntar à irmã por que estava indo naquele lugar; disse que eram pilantras, enganavam as pessoas, tiravam dinheiro do povo. A irmã então respondeu: você acha que não sei disso? Mas aqui, aos domingos, não tem nada para fazer. Eu não aguento mais ficar em casa assistindo ao Faustão. Na igreja, eu encontro gente, canto, faço amizade, é uma festa! Lá ainda tem as irmãs que olham meu filho, eu vou mesmo!' Você imagina a quantidade de gente que vai pela primeira vez à igreja por causa disso?"

Contudo, o trabalho desses estabelecimentos e de seus líderes e acólitos não se restringe a fornecer (questionáveis) apoio e entretenimento espirituais.

"No Congresso Nacional brasileiro" - escreve Andrea Dip -, "a tendência seguiu esse aumento [de evangélicos entre a população]: a antropóloga da UFF Christina Vital diz que existem hoje entre oitenta e noventa parlamentares evangélicos vinculados à FPE [Frente Parlamentar Evangélica] (o número varia devido aos suplentes), mais do que o dobro de quando foi criada em 2003. O número de pastores candidatos também cresceu: 'Nós tivemos uma situação singular nesse pleito, com 40% mais pastores se candidatando em 2014', aponta".

Quando atualizamos pelo menos um desses dados (uma vez que o livro foi publicado antes do resultado das eleições deste ano), vemos que a defasagem é insignificante: após outubro, a Frente Parlamentar Evangélica chegou a 91 integrantes (a chamada Bancada Evangélica ou Bancada da Bíblia é ainda mais numerosa, pois inclui outros deputados e senadores não vinculados formalmente à FPE, mas que quase sempre defendem a mesma agenda). Isso sem mencionar o grande número de vereadores em centenas de municípios, além de titulares do executivo (bem como seus secretários/ministros), alçados aos respectivos cargos públicos graças, parcial ou inteiramente, a ostensiva exibição de suas crenças religiosas (genuínas ou postiças, vale acrescentar) percebidas como "as corretas" pelo eleitorado que as compartilha.  Não tenho dúvida de que se trata de um projeto de poder.

Alguém pode perguntar: Mas qual o problema de haver representantes desse segmento religioso na política institucional, já que, afinal de contas, de acordo com dados do último censo do IBGE, os evangélicos são quase 1/4 da população brasileira? Foram eleitos democraticamente, não seriam legítimos?

Apresento, então, duas objeções à atuação dessa categoria de políticos: o menosprezo deles em relação ao princípio da laicidade do Estado e a incapacidade deles de compreender que a democracia, se autêntica, deve procurar conjugar, da melhor forma possível, os interesses da maioria com as reivindicações das minorias.

O princípio do Estado laico é basilar para o regime democrático (clique aqui para uma definição bem didática do conceito de Estado laico). Muitas pessoas religiosas não entendem que só a defesa desse princípio proporciona a liberdade de credo religioso para todos (e, claro, a liberdade de não ter credo algum). Se a laicidade fosse levada a sério por aqui, praticantes do candomblé e umbandistas, por exemplo, poderiam ser atendidos com respeito pelas autoridades policiais quando fossem denunciar a destruição de seus terreiros e de seus objetos sagrados por parte de bandidos alegadamente evangélicos. Caso o Estado brasileiro prezasse a laicidade, o incitamento ao ódio pelas religiões de matriz africana promovidos frequentemente nos programas religiosos evangélicos que inundam a TV aberta seria coibido, por exemplo. Por falar nisso, os canais de TV, bem como as estações de rádio, são concessões públicas e, pelo menos em parte, deveriam atender os interesses da população. Em que sentido as várias horas diárias de proselitismo evangélico em algumas emissoras atendem a esses interesses? A democracia também sofre um abalo tremendo quando a pauta religiosa, ignorando o dever do agente público com a manutenção da laicidade, atenta contra direitos individuais. Portanto, sem meias-palavras, oponho-me a presença de indivíduos que, no legislativo e no executivo, concedem maior importância às suas crenças religiosas particulares do que ao princípio do Estado laico.

O entendimento de que uma democracia digna desse nome não pode permitir o atropelamento de demandas das minorias em razão da suposta vontade da maioria é outro preceito fundamental para relações políticas civilizadas (a esse respeito, recomendo a leitura do ótimo artigo da professora Maíra Zapater). Mas a quase totalidade dos parlamentares alinhados na Bancada da Bíblia não dão a mínima para isso. Sua visão arraigadamente fundamentalista inviabiliza até mesmo o simples debate de propostas. E fico me perguntando onde vamos parar.

Na introdução de Em nome de quem?, a jornalista Andrea Dip observa que uma onda reacionária vem se alastrando pelo mundo, ameaçando "direitos, pensamento crítico e pluralidade de ideias", com os discursos de ódio sendo despudoradamente despejados no espaço público. Para Dip, essa onda reacionária adquire "características próprias" no Brasil:

"Uma delas vem da aproximação entre uma direita orgulhosa de si e a Igreja Evangélica, unidas pelo medo de um inimigo que vem para 'destruir a família tradicional', os 'valores cristãos', o status quo e que, por vezes, sem lastro na realidade, toma rosto no comunismo, no feminismo, no movimento negro, na comunidade LGBTQ e em qualquer participação social que peça por igualdade de direitos e por discussão mais profunda sobre seus papéis na sociedade".
Numa democracia saudável, devemos nos esforçar pelo entendimento, pela tentativa de construção de pactos e do estabelecimento de acordos. Mas se o reacionarismo avançar, é preciso contra-atacar. Sem pestanejar. Por mais conformista e frouxo que seja, não estou disposto a aceitar quietamente as ações cada vez mais escancaradas de controle e dominação política efetuadas por religiosos, até porque, caso seu projeto de poder seja bem-sucedido, pode colocar em risco o tipo de existência que defendo.

É como aquela frase vista por aí em alguns muros e perfis das mídias sociais: "Se fere minha existência, serei resistência".
__________
¹ KING, Stephen. O nevoeiro. In: ___________. Tripulação de esqueletos. 2 ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013. p. 20-167

² HITCHENS, Chistopher. Deus não é grande: como a religião envenena tudo. 2 ed. São Paulo: Globo Livros, 2016 [Tradução de George Schlesinger]

³ Mais uma vez, reproduzo aqui a mesma explicação dada em outras postagens, para evitar mal-entendidos:  quando uso o termo crente tenho em mente o seguinte significado: "aquele que acredita  em uma (ou várias) divindade(s)", em oposição ao termo descrente ou, simplesmente, ateu ("aquele que não acredita em nenhuma"). Assim, crente, neste contexto, designa todos os que acreditam em Deus, independentemente da denominação religiosa pela qual têm afinidade ou da qual fazem parte.

DIP, Andrea. Em nome de quem? A bancada evangélica e seu projeto de poder. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.

BG de Hoje

Os veteranos do FAITH NO MORE provando por que nunca deixaram de ser uma das bandas mais bacanas das últimas três décadas: Separation Anxiety.

sábado, 1 de dezembro de 2018

Entrevistas com escritores


No pequeno texto que serve de prefácio a um livro organizado por Fabrício Marques - Dez conversas: diálogos com poetas contemporâneos ¹ -, Joca Reiners Terron notou que:

"Em uma de suas numerosas blagues o escritor guatemalteco Augusto Monterroso defendeu a entrevista como o único gênero inventado pela Modernidade. Uma provocação, sem dúvida, mas com inquestionável e verdadeiro sentido. Afinal, o que seria da moderna compreensão do singular ofício de escritor sem as legendárias entrevistas publicadas por George Plimpton na não menos mítica Paris Review? Com um meticuloso sistema de perguntas procurando deslindar preocupações estéticas e técnicas de alguns dos maiores autores do século vinte, os múltiplos entrevistadores daquela publicação estabeleceram um padrão incontornável para entrevistas com escritores, um sistema de investigação digno de 'agentes do FBI', como salientou Malcom Cowley na introdução à primeira coletânea de entrevistados pela revista".

Entrevistas tornaram-se peças-chave para um melhor entendimento de diversos fenômenos, inclusive a criação literária, como observa Terron no excerto acima. Pessoalmente, procuro ler o maior número possível delas, sobretudo quando se trata de escritores/escritoras, leitura essa facilitada tremendamente, claro, pela internet. E mesmo antes da popularização da web buscava por este tipo de trabalho jornalístico onde pudesse encontrá-lo. E, acredite ou não, eventual leitor(a), uma das melhores fontes foi a Playboy. Lembro particularmente de três entrevistados, escritores, cujo teor da conversa publicada na revista criada por Hugh Hefner me interessou bastante: Luis Fernando Veríssimo, Isabel Allende e José Saramago (o romancista português, por exemplo, confirmou que maioria dos seus livros nasceu primeiro do título imaginado).

Joca Reiners Terron também tem razão ao apontar a Paris Review como a publicação que fixou o modus faciendi das entrevistas com escritores(as). Direcionadas mais para a feitura da obra do que para a vida particular dos(as) autores(as), as matérias da Paris Review tornaram-se valiosos recursos para os estudos literários (este blogueiro mesmo recorreu a uma delas na elaboração de uma postagem, dois anos atrás, sobre a escritora norte-americana Toni Morrison).

E por falar na Paris Review, li há pouco 17 entrevistas publicadas por lá reunidas num livro essencial, que completou 30 anos de lançamento em 2018 ².

Destaco três delas:

✰ William Faulkner (1897-1962)

A entrevista do escritor norte-americano ocorreu em 1956. Apesar de não ser rude nas respostas, não escondia que detestava falar de sua própria obra (ou de si). A certa altura, ele disse:

"Minha obra tem que me agradar, e, se o faz, não preciso falar a respeito dela com ninguém. Se não me agrada, falar disso não vai melhorar coisa alguma, já que a única coisa que pode melhorar é trabalhar nela um pouco mais. Não sou um literato, apenas um escritor. Não sinto prazer algum em falar a respeito do meu trabalho".

Eis que estamos, mais uma vez, diante daquela velha questão:  A) o artista deve criar visando apenas sua satisfação/sentimento pessoal de realização, sem se preocupar com as possíveis reações/opiniões de outrem; ou B) deve levar em conta o leitor/espectador/ouvinte em potencial (isto é, as possíveis expectativas deste, até mesmo sua capacidade de entendimento) durante o processo de elaboração artística? Faulkner, como é fácil averiguar, adotou A) como diretriz.

Respondendo a uma pergunta anterior, já havia afirmado que

"A única responsabilidade do escritor é para com sua arte. Será inteiramente desapiedado se for um bom escritor. Tem um sonho. Isso o angustia tanto que ele tem que se livrar dele. Não tem paz até então. O resto vai por água abaixo: honra, orgulho, decência, segurança, felicidade, tudo, para que o livro seja escrito. Se um escritor tiver que roubar a sua mãe, não hesitará [...]"

O artista - "uma criatura arrastada por demônios", segundo William Faulkner -, enquanto individualidade, "não tem importância. Só o que ele cria é importante, já que não há nada de novo a ser dito", considerava ele, acrescentando: "Shakespeare, Balzac, Homero, todos escreveram a respeito das mesmas coisas, e, se tivessem vivido mais mil ou dois mil anos, os editores não teriam precisado de mais ninguém desde então".

Em duas passagens da conversa, o romancista, surpreendentemente, afirma ter descoberto (pelo menos no início da carreira) que escrever era "divertido", embora um romance em particular - O som e a fúria (já postei sobre ele aqui) - tenha sido o trabalho que lhe causou "mais dor e angústia", tendo sido reescrito cinco vezes, em épocas diferentes.

O entrevistado é execravelmente machista ao fazer a seguinte comparação: "O sucesso é feminino e como uma mulher; se você se curva diante dela, ela passa por cima de você. Então o jeito de tratá-la é dar-lhe as costas da mão. Aí, talvez, ela venha a rastejar".

Mas consegue ser espirituoso e até engraçado quando diz: "Saiba que, se eu reencarnasse, gostaria de voltar como um urubu. Ninguém o odeia ou inveja nem o quer ou precisa dele. Ele nunca se vê importunado ou em perigo, e pode comer qualquer coisa".

Não poderia deixar de mencionar sua crítica à rotina de trabalho regular e semicompulsório que caracteriza nossas sociedades (crítica, aliás, com a qual concordo inteiramente):

"Sou um vagabundo e um andarilho por temperamento. Não desejo o dinheiro tanto assim a ponto de trabalhar por ele. Na minha opinião, é uma vergonha que a única coisa que um homem pode fazer oito horas por dia, dia após dia, é trabalhar. Não se pode comer oito horas por dia, nem beber oito horas por dia, nem fazer amor oito horas - tudo o que se pode fazer durante oito horas é trabalhar. É esse o motivo pelo qual o homem torna, a si e a todos os demais, infelizes e miseráveis".



✰ Jorge Luis Borges (1899-1986)

A entrevista do contista e poeta argentino é aquela com mais sinais de espontaneidade (convém informar que na Paris Review, após a primeira gravação/registro da conversa, ela geralmente passa por uma revisão feita pelo próprio entrevistado). Concedida em 1966, quando o autor d'O livro de areia era diretor da Biblioteca Nacional, em Buenos Aires, a entrevista foi interrompida três vezes pela secretária de Borges, avisando que um certo Sr. Campbell o aguardava. Sua reação é bem-humorada.

Assim como Faulkner, Jorge Luis Borges acreditava que "as coisas que são ditas em literatura são sempre as mesmas": o importante é "a maneira como são ditas". Diferentemente do norte-americano, contudo, Borges não mantinha o potencial leitor fora da sua equação. "As pessoas devem ser capazes de ler fluentemente, mesmo que você esteja escrevendo metafísica ou filosofia, ou o que quer que seja", disse ele.

No começo de sua carreira, o escritor "achava que tudo tinha de ser definido e que nenhum volteio de frase comum deveria ser usado. Eu nunca teria dito: 'Fulaninho de Tal entrou e sentou', porque isso era simples e fácil demais. Achava que tinha que descobrir alguma forma extravagante de dizer isso". Entretanto, mudou à medida que amadurecia:

"Agora percebo que essas coisas são geralmente aborrecimentos para o leitor. Mas penso que toda a raiz do problema está no fato de que, quando um escritor é jovem, ele de algum modo sente que o que vai dizer é bastante tolo, óbvio ou lugar comum, e então tenta ocultá-lo sob uma ornamentação barroca, por trás de palavras tiradas dos escritores do século XVII; ou, senão, se ele se empenha em ser moderno, então faz o contrário: fica inventando palavras o tempo todo, ou aludindo a aviões, trens ou o telégrafo e o telefone porque está se esforçando ao máximo para ser moderno. Depois, à medida que o tempo passa, sente-se que as ideias que se tem, boas ou más, devem ser expressas claramente, porque, se você tem uma ideia, tem que tentar passar essa ideia ou essa emoção ou essa atmosfera para a mente do leitor"

Tendo em vista o efeito que o texto busca produzir no leitor, Borges acreditava que o escritor "deveria ser julgado pelo prazer que proporciona e pelas emoções que se obtém. Quanto a ideias [políticas], afinal de contas não é muito importante se um escritor tem esta ou aquela opinião política, porque uma obra se sairá bem apesar delas [...]". Essa observação é sob medida para o próprio entrevistado (já postei aqui sobre os tenebrosos posicionamentos sociopolíticos de Borges).

Essa consideração pelo leitor, contudo, em nada diminui a qualidade e a sofisticação do contista argentino (basta ler algumas de suas narrativas para constatá-lo). Sua literatura é sempre cheia de citações, comentários implícitos, menções a outros textos. Tudo fazendo parte de um jogo nem sempre percebido por quem o lê. A esse respeito, Borges disse que "a maior parte dessas alusões e referências são postas lá [na sua obra] simplesmente como uma espécie de brincadeira íntima". E completou: "Uma brincadeira que não precisa ser necessariamente compartilhada com outras pessoas. Quero dizer, se elas a compartilham, tanto melhor; mas, se não, não me importo nem um pouco com isso".



Nadine Gordimer (1923-2014)

Muito por iniciativa da própria escritora sul-africana, a entrevista da autora de O falecido mundo burguês tornou-se a mais "pessoal" do livro inteiro, na qual se falou muito de sua vida familiar e doméstica. A conversa começou a ser registrada no outono de 1979 (nos EUA) e retomada na primavera de 1980 (no Reino Unido) .

Geralmente classificada como escritora política, Gordimer disse:

"Eu não sou por natureza uma criatura política, e mesmo agora há muitas coisas que não gosto na política e nos políticos - embora admire tremendamente pessoas que são politicamente ativas - há tanto mentir para si mesmo, auto-ilusão, tem que haver - você não se torna um bom ativista político a menos que possa fingir que os calos não estão ali".

Para ela, escrever é uma das "maneiras de amarrar a experiência". Escrever é

"tentar entender a vida. Você trabalha a sua vida inteira e talvez tenha conseguido entender um pedaço bem pequeninho [...] Penso que isso é o que a literatura é, penso que isso é o que a pintura é. É procurar esse fio de ordem e lógica na desordem, e o caráter de incrível desperdício e maravilhosa prodigalidade da vida. O que todos os artistas estão tentando fazer é compreender a vida"

Sobre o modo como pensa a estrutura de seus livros, Nadine Gordimer respondeu:

"Para mim, outra vez, muito pouco da construção é objetivamente concebido. Ela é orgânica, instintiva e subconsciente. Não sei lhe dizer como cheguei a ela. Embora, a cada livro, eu atravesse um longo período em que sei o que quero fazer mas me sinto refreada, confusa e abatida, porque não sei, antes de escrever, como vou fazer, e sempre receio não ser capaz de fazê-lo".

A cada texto, é preciso encontrar a forma narrativa mais eficaz, às vezes até adotando um estilo não experimentado antes. É arriscado:

"É claro que você corre um risco tremendo com esse estilo narrativo, e quando consegue ser bem-sucedido, creio que é o ideal. Quando não, é claro, você irrita o leitor ou deixa confuso. Pessoalmente, como leitora, não me importo de ficar confusa. Talvez o(a) escritor(a) não saiba das consequências implícitas em seus livros, porque há uma escolha de explicações; e como leitora, eu aprecio isso. Para mim, é uma parte fundamental do excitante negócio de ler um livro, de ser instigada, e ter uma mente própria para pensar. E então, como escritora, tomo a liberdade de fazer isso"

Na condição de leitora de literatura, aliás, Gordimer faz a seguinte observação:

"Muitos escritores dizem que não leem outros escritores, os contemporâneos. Se é verdade, é uma grande pena. Imagine se você tivesse vivido no século XIX e não tivesse lido os escritores aos quais hoje retornamos tão amorosamente, ou mesmo que você tenha vivido no século XX e não tenha lido Lawrence ou Hemingway, Virginia Woolf e assim por diante".

Para comparação, pensemos na resposta negativa de Faulkner quando perguntado se lia seus contemporâneos. Ele disse que lia apenas os livros que conheceu "quando era moço e aos quais volto como se volta aos velhos amigos". Faulkner complementou: "Já li esses livros tantas vezes que nem sempre começo na primeira página ou leio até o fim. Leio apenas uma cena ou o tocante a uma personagem, assim como você encontra e conversa com um amigo por alguns minutos". Lembro-me agora que João Ubaldo Ribeiro disse algo parecido à revista Playboy.

Voltando a Nadine Gordimer, a autora apresentou um ponto de vista inusitado: ela defende que todos os escritores são "seres andróginos":

"[...] não creio que importe nem um pouco de que sexo é o escritor, desde que sua obra seja a de um verdadeiro escritor. Penso que existe de fato tal coisa como uma 'escrita da mulher', por exemplo, uma literatura feminina; existem 'autoras' e 'poetisas'. E há homens, como Hemingway, cuja excessiva 'masculinidade' é uma parte concomitante de sua literatura. Mas com muitos dos escritores de sexo masculino que admiro, isso não importa tanto".

. . . . . . .

Antes de encerrar, gostaria de comentar uma resposta dada por Gore Vidal na sua entrevista publicada no livro de que estamos falando (a conversa ocorreu em 1974).

Perguntado se escrever era fácil e se gostava de fazê-lo, Vidal respondeu que sim, gostava de escrever, dizendo que seus romances eram escritos a mão, mas as peças de teatro e os ensaios, à máquina.

"Uma curiosidade:" - disse ele -"nunca releio um texto até terminar a primeira versão. Senão, é muito desencorajador. Também porque quando você tem a coisa toda ali na frente, pela primeira vez, já esqueceu a maior parte e vê tudo como se fosse novidade. Reescrever, no entanto, é um negócio vagaroso, penoso. Para mim, o principal prazer de ter dinheiro é poder pagar por quantas versões redatilografadas eu quiser. Quando eu era jovem e pobre, tinha que datilografar eu mesmo, por isso raramente fazia mais que duas versões. Agora, passo por quatro, cinco, seis. Quanto mais, melhor, já que o meu estilo é muito o de pensar duas vezes".

Estamos tão acostumados com os computadores pessoais (e as impressoras residenciais) que às vezes esquecemos o quanto isso facilitou a vida dos(as) escritores(as). Poder consertar e refazer um texto quantas vezes quiser antes de lançá-lo publicamente, apenas clicando/digitando aqui e ali, sem todo o trabalho mecânico de manuscrever ou datilografar, aborrecimento que sempre acompanhara os artistas e profissionais da escrita, é algo verdadeiramente transformador. Por outro lado, os pesquisadores e estudiosos de Literatura talvez, em breve, não terão à disposição as versões preliminares de algumas narrativas, nem aquelas folhas onde se podia ver as hesitações, mudanças de ideia, reformulações dos(as) criadores(as), sinalizadas pelos rabiscos, linhas sublinhadas e anotações nos cantos das páginas.
__________
¹ TERRON, Joca Reiners. A entrevista: o gênero literário da modernidade. In: OLIVEIRA, Fabrício Marques. Dez conversas: diálogos com poetas contemporâneos. Belo Horizonte: Gutenberg, 2004. 

² OS ESCRITORES: as históricas entrevistas da Paris Review. São Paulo: Companhia das Letras, 1988 (Seleção de Marcos Maffei) [Tradução de Alexandre Martins e Beth Vieira]. Um segundo volume de entrevistas foi publicado, com o mesmo título e pela mesma editora, no ano ulterior, 1989.

BG de Hoje

No somatório geral, gosto do trabalho de NANDO REIS, embora reconheça que existam altos e baixos. Sem dúvida, porém, Diariamente, gravada por MARISA MONTE e lançada no disco Mais, de 1991, é um ponto altíssimo da sua carreira. Ah, e o videoclipe feito por Fábio Yamaji conseguiu ajustar-se muito bem à encantadora simplicidade da canção.

sexta-feira, 9 de novembro de 2018

Fome



"A fome está sempre ali.
Como está ali, ela vem quando e como quer.
O princípio da causalidade é o trabalho ignóbil do Anjo da Fome.
Quando ele chega, chega com força".

Do personagem-narrador Leo Auberg, em Tudo o que tenho levo comigo, de Herta Müller


 
 
É possível conferir ao sofrimento um tratamento poético?

Não estou dizendo no momento mesmo em que se padece, é óbvio - mas retrospectivamente, quem sabe?

Quando lemos o romance Tudo o que tenho levo comigo ¹, de Herta Müller, somos convencidos de que a resposta é sim.

O livro tem como narrador o jovem Leo Auberg. Após o fim da 2ª Guerra Mundial, aos dezessete anos, ele foi levado para um campo de trabalho forçado na Ucrânia, junto com outras pessoas de ascendência alemã residentes na Romênia, como parte das obras de reconstrução exigidas pela então União Soviética (a mãe da escritora, aliás, enfrentara o mesmo tormento). Leo Auberg representa o poeta Oskar Pastior, amigo de Herta Müller.

"Em 2001" - anota ela no epílogo do romance - "comecei a registrar por escrito as conversas com pessoas do meu vilarejo que haviam sido deportadas [para campos de trabalho forçado na URSS]. Eu sabia que Oskar Pastior fora deportado e contei-lhe que queria escrever sobre isso. Ele quis ajudar-me com suas lembranças. Nós nos reuníamos com regularidade: ele falava e eu anotava. E logo surgiu o desejo de escrever o livro
juntos. 
Quando, em 2006, Oskar Pastior morreu repentinamente, eu tinha quatro cadernos repletos de anotações manuscritas, além de esboços para alguns capítulos. Depois de sua morte, fiquei como paralisada. A proximidade pessoal que as anotações propiciavam fez com que a perda se tornasse ainda maior. 
Somente depois de um ano, consegui obrigar-me a me despedir do 'nós' e escrever este romance sozinha. Porém, sem os detalhes de Oskar Pastior sobre o cotidiano no campo de trabalho, eu não teria conseguido fazê-lo"

Tudo o que tenho levo comigo é dividido em vários pequenos capítulos: alguns deles descrevendo episódios específicos, como se fossem contos. Do ponto de vista estilístico, salta aos olhos a prosa cheia de elementos líricos, mesmo retratando um ambiente tão opressivo e duro com um campo de trabalho forçado. Um exemplo? Atente para este trecho:

"Sempre tento convencer-me de que sou pouco sensível. Se levo algo a sério, afeta-me apenas moderadamente. Quase nunca choro. Não sou mais forte que os de olhos úmidos, e sim mais fraco. Eles se atrevem. Quando se é apenas pele e osso, os sentimentos são valentes. Prefiro ser covarde. A diferença é mínima, eu uso minha força para não chorar. E se me permito algum sentimento, transformo-o numa história que insista, seca, na ausência de nostalgia. Mas então se tornam apenas as castanhas imperiais e reais com cheiro de couro fresco, das quais meu avô me havia falado. Como marinheiro no porto de Pula, ele havia descascado e comido castanhas antes de partir para a volta ao mundo no veleiro Donau. Sendo assim, minha ausência de nostalgia passa a ser a nostalgia narrada pelo meu avô, com a qual domestico a nostalgia daqui. Ou seja, se tenho alguma vez um sentimento, trata-se de um aroma. O aroma-palavra da castanha ou do marinheiro. Com o tempo, o aroma-palavra torna-se surdo, como os feijões do Lommer da cítara [refere-se a um dos internos do campo de trabalho, que "lia" o futuro de acordo com a posição dos feijões após serem jogados]. Podemos transformar-nos num monstro quando deixamos de chorar. O que me impede, caso eu não o seja já faz tempo, não é muito; no máximo, a frase: Eu sei que você vai voltar [dita pela avó de Leo Auberg quando ele foi levado pelos soldados soviéticos]".

Durante quatro dos cinco anos passados no campo de trabalho a fome era ubíqua. Não era possível livrar-se dela; sua presença obsedante desumanizava suas vítimas:

"O que se pode dizer sobre a fome crônica. Pode-se dizer: existe uma fome que te deixa doente de fome. Que se soma, ainda mais fome, à fome que já se tinha. A fome sempre renovada, que cresce insaciável, e que salta para dentro da eterna e tão trabalhosamente amansada antiga fome. Como se anda pelo mundo quando não se tem nada mais a dizer sobre si mesmo, além do fato de estar com fome. Quando não se consegue pensar em mais nada. E o céu da boca é maior do que a cabeça: uma cúpula alta e sonora até o crânio. Quando a fome fica insuportável, ela se estende até o céu da boca como se tivesse colocado uma pele de coelho fresca para secar atrás do seu rosto. As faces murcham e se cobrem com uma pálida penugem".
(NOTA: O leitor deve estar atento: o uso do ponto de interrogação é raríssimo nos textos de Herta Müller. Isso já havia me despertado curiosidade quando li, no início deste ano, outro de seus livros - O compromisso)

As perguntas feitas por Leo Auberg são pungentes: Como se anda pelo mundo quando não se tem nada mais a dizer sobre si mesmo, além do fato de estar com fome? Quando não se consegue pensar em mais nada?

Muitos de nós, ainda que passemos por agruras ao longo da vida, certamente não experimentamos nada tão amargo quanto a fome (e pensar que, segundo a ONU, mais de 800 milhões de pessoas no mundo hoje mal conseguem arranjar o que comer...). É horrível também descobrir que, há apenas sete décadas, a privação de alimentos era empregada metodicamente, como forma de "reeducação" e controle.

Há um episódio dentro do romance de Müller que gostaria de destacar. Em O caso do crime do pão podemos ver como a fome age sobre as condutas.

Nesse capítulo somos apresentados a Fenja, um exemplo da burocracia soviética. "Nenhum de nós se interessava pela pessoa de Fenja", admite o narrador. "Mas todos estávamos entregues a ela, pois distribuía o pão. Ela era a senhora do pão, e nós comíamos da sua mão todos os dias".

A funcionária, meticulosa, nunca errava na quantidade das porções individuais diárias: "Lá estava ela, totalmente sozinha com a enorme faca atrás do balcão, em sua câmara branca, entre a balança de cozinha e o ábaco. Ela deveria conhecer as listas de cabeça. Sabia com exatidão quem deveria receber a ração de seiscentos gramas, quem a de oitocentos gramas e quem a de mil gramas". Segundo Leo, "Fenja não era boa nem má, ela não era uma pessoa, mas uma lei usando casacos de tricô".

Uma parte dos trabalhadores, durante o dia, tentava guardar parte da ração de pão debaixo do travesseiro para comê-la à noite, junto com a rala sopa de repolho que era invariavelmente servida. Era preciso "ser firme". A maioria faminta, entretanto, acabava por devorar toda a ração antes mesmo do meio-dia:

"Se eu não havia conseguido manter-me firme de manhã, à noite não existia nenhum resto de pão, nem mesmo algo para decidir. Eu enchia a colher somente pela metade, sorvia profundamente. Aprendera a comer devagar, a engolir saliva após cada colherada de sopa. O Anjo da Fome dizia:  A saliva prolonga a sopa, e ir dormir cedo encurta a fome".

Entretanto, o sinistro personagem, apesar do nome, nada tem de angelical: "Todo dia o Anjo da Fome me devorava o cérebro. E um dia ele ergueu a minha mão. E com essa mão estive a ponto de matar Karli Halmen - é o caso do crime do pão"

Esse rapaz, Karli Halmen, estava de folga durante o período diurno, sozinho no alojamento. À noite, quando Albert Gion, junto com os outros, voltou de seu turno e procurou pela parte da ração que havia guardado não a encontrou. Halmen foi agredido até que vomitou "uma massa de baba e pão".

"O desejo de matar" - nos conta Leo Auberg - "devorava-me a razão. Não só a mim, éramos uma matilha". O "ladrão do pão" foi espancado violentamente, chegaram a urinar em seu rosto, mas sobreviveu.

Ao fim do capítulo, lemos:

"O problema com o pão fora resolvido, todos agiam normalmente. Nunca acusamos Karli Halmen de roubo. Ele nunca nos censurou pelo castigo. Sabia que o havia merecido. O tribunal do pão não negocia: pune. A tolerância zero não conhece parágrafos, não precisa de leis. Ela existe porque o Anjo da Fome também é um ladrão, um ladrão que nos rouba o cérebro. O tribunal do pão não conhece preâmbulos ou perorações: vive apenas o momento presente. Totalmente transparente ou totalmente misterioso. De qualquer forma, a violência do tribunal do pão é diferente da violência sem fome. Não é possível apresentar-se diante dele com a moralidade de todos os dias"

Poucas coisas na vida devem ser tão ruins quanto passar dias e dias com fome.

__________
¹ MÜLLER, Herta. Tudo o que tenho levo comigo. São Paulo: Companhia das Letras, 2011 [Tradução de Carola Saavedra]

BG de Hoje

Em minha humilde (tá, vá lá, nem tão humilde) opinião, uma das melhores bandas de heavy metal da atualidade: a francesa GOJIRA (aqui com a faixa Silvera)

terça-feira, 30 de outubro de 2018

Falou e disse...



"Se levarmos em conta que falar qualquer coisa está mais fácil, que falamos em excesso e falamos coisas desnecessárias, um novo consumismo emerge entre nós, o consumismo da linguagem. O problema é que ele produz, como qualquer consumismo, muito lixo. E o problema de qualquer lixo é que ele não retorna à natureza como se nada tivesse acontecido. Ele altera profundamente nossas vidas em um sentido físico e mental. O que se come, o que se vê, o que se ouve, numa palavra, o que se introjeta, vira corpo, se torna existência". *

* TIBURI, Marcia. O consumismo da linguagem. In: __________. Como conversar com um fascista: reflexões sobre o cotidiano autoritário brasileiro. 9 ed. Rio de Janeiro: Record. 2017. p. 134-135.

sexta-feira, 26 de outubro de 2018

Estragado por dentro, só me resta votar. Domingo é 13!


Creio que já disse, nalguma postagem anterior, que considero Eliane Brum um dos grandes talentos do jornalismo atual. Suas colunas na edição brasileira do El País devem ser elencadas, sem nenhum exagero, entre os textos de maior qualidade da nossa imprensa. Neste período eleitoral, então, tornaram-se imprescindíveis para mim.

Numa das mais recentes - Como resistir em tempos brutos - , publicada no último dia 9, ela observou, com desgosto, que "Jair Bolsonaro, aquele que é chamado de 'coiso' nas redes sociais, ganhou esta eleição mesmo antes da votação no primeiro turno". Vitória,  nesse contexto, significa que a candidatura do PSL, mesmo tendo desprezado a discussão política, eclipsou todas as outras. As pautas reacionárias e obscurantistas de seu interesse, além de suas declarações odiosas, dominaram as conversas, tornando-se o tópico central de toda a campanha presidencial e deixando ocultos temas urgentes - como, por exemplo, combate ao desemprego, financiamento da saúde pública ou a possibilidade da implementação de reformas (entre elas, a previdenciária). ¹.

Os motivos para essa vitória nada têm de positivo: um deles me aflige particularmente:

"Jair Bolsonaro ganhou mesmo antes de ter ganhado um número expressivo de votos no primeiro turno" - escreve Eliane Brum - "porque conseguiu mergulhar uma parte das pessoas numa paralisia amedrontada, como se estivessem estragadas por dentro. Jamais se esqueçam que a primeira vitória da opressão é sobre a subjetividade. É o que faz uma mulher cotidianamente espancada ficar calada. Ou uma mulher estuprada não denunciar o estuprador. Há algo que a amarra por dentro. É como se perdesse a voz mesmo tendo voz, perdesse a força mesmo tendo força. Esse é o efeito de ser violentada ou violentado. Vi muita gente assim no final da campanha de primeiro turno, vivendo a campanha violenta de Bolsonaro e de seus apoiadores como uma violência sobre o próprio corpo, sobre sua mente e sobre seu espírito. Mulheres, principalmente, mas também homens".

É isso. Encontro-me "numa paralisia amedrontada", como se estivesse estragado por dentro. Não serei energúmeno a ponto de comparar meu estado de ânimo ao de uma mulher que foi espancada/estuprada, pois, na condição de homem, mesmo que venha a sofrer tais brutalidades, não seria capaz sequer de conceber toda a dor e o trauma vividos por mulheres que passaram por isso. Posso dizer, porém, que a violência da cruzada bolsonarista produziu mesmo um efeito inquietante sobre minha mente e sobre meu espírito. Há quem possa querer negar, mas não tenho dúvida de que a violência - efetivada ou em potência - foi a maior marca da campanha do deputado. (Isso gera consequências deletérias. Indivíduos que se julgam ou se sentem agindo em nome de Bolsonaro têm demonstrado conduta violenta, tanto verbal quanto física, inclusive dentro das polícias. Creio que isso se intensificará após 28 de outubro).

Na coluna citada, a autora faz um chamado ao leitor: apesar do cenário de desalento, "é preciso lutar neste segundo turno para o autoritarismo não se instalar no Brasil pelo voto, mais uma contradição da democracia". Pessoalmente, não acredito numa derrota eleitoral de Bolsonaro neste domingo e, mesmo que ela ocorra, a erupção do fascismo à brasileira, encampado pela burguesia predatória local, já tomou conta do cenário (o que pode, paradoxalmente, talvez dar um novo impulso à luta política no Brasil - conhecendo agora quão fascista parte significativa da sociedade brasileira é, tem que se pensar em estratégias de confrontação diferentes). Contudo, ao contrário de mim, que já desisti da peleja, Eliane Brum ainda não esmoreceu: "Mas não podemos permitir que nossos dias sejam devorados, porque, no banquete dos perversos, nossas almas é que são comidas. Há que se resistir ao devoramento das almas"

Ah, e antes que venha a (surrada, oca e repetitiva) acusação "ela-deve-ser-uma-petralha-de-carteirinha!", atenção para este outro trecho:

"Uma parte [dos eleitores que são avessos ao PT], na qual me incluo, terá que segurar o estômago para votar num partido que reeditou o projeto da ditadura civil-militar na Amazônia, reduzindo a floresta a objeto de exploração, evidenciado nas grandes hidrelétricas como Belo Monte, Jirau e Santo Antônio, e na expulsão dos povos da floresta. Uma parte, na qual eu também me incluo, terá que tampar o nariz para votar num partido que assinou a lei antiterrorismo e que usou a Força Nacional para perseguir e reprimir manifestantes e trabalhadores nas cidades e na floresta. Uma parte, na qual eu também me incluo, terá pesadelos para votar num partido que até hoje não se manifestou contra a ditadura assassina de Nicolás Maduro na Venezuela (Nem isso, PT, nem isso...). Uma parte, na qual eu também me incluo, sofrerá para votar num partido que consumiu os esforços de pelo menos duas gerações de brasileiros com a promessa de que seria diferente dos outros e, como os outros, se corrompeu no poder e se aliou ao que havia de mais nefasto na política nacional. E sofrerá também porque o PT fez tudo isso e nenhuma autocrítica. Nem uma autocrítica bem pequenina, uma autocriticazinha. Nada que mereça esse nome"

Atente, porém, também para o complemento:

"Mas uma parte, na qual de jeito nenhum eu me incluo, usa o ódio contra o PT para justificar o injustificável. É um truque. E esse truque precisa ser desmascarado. Se você votou e votará em Bolsonaro, não é porque é contra a corrupção. Havia outros candidatos que não eram suspeitos de corrupção e você não votou neles no primeiro turno. Você votou em Bolsonaro porque compartilha de suas ideias e compartilha do seu ódio. E se você compartilha com quem afirma o que ele afirma - ser contra negros, contra mulheres, contra LGBTQ, contra indígenas, contra camponeses e a favor das armas e do autoritarismo e da tortura e do atirar para matar - então é isso que você defende. E, principalmente, é esse tipo de pessoa que você é"

(Em casos extremos, hoje comuns, o antipetismo leva a crenças absurdas. Para compreender melhor o fenômeno, sugiro a leitura do artigo A estigmatização do PT e o irracionalismo na eleição, de Cláudio Couto, cientista político e professor da FGV, publicado no Nexo Jornal)

Tenho visto uma hashtag circular no Twitter: #OBrasilÉMelhorQueOBolsonaro. 

Não é não.

Finalmente estamos caindo na real e constatando que a imagem do "brasileiro boa praça", vendida para os turistas, nunca passou de um tremendo conto do vigário. Há por aqui uma quantidade imensa de pessoas integralmente adeptas do emprego da violência para a resolução de todo e qualquer conflito e outro tanto de indivíduos movidos por um ódio primitivo. Todos eles sentem-se plenamente representados - e pior, legitimados - neste momento.

Algumas personalidades que respeito e admiro - como o rapper Emicida, por exemplo - têm ponderado, com razão, que nem todos os eleitores de Bolsonaro são fascistas ou proto-fascistas. Muitos deles, sobretudo entre os mais pobres, fazem essa opção por estarem completamente desiludidos com o establishment político. Desassistidos pelo Estado, procuram pela candidatura que lhes pareça mais antissistêmica. Sem mencionar os convencidos (ou seria manipulados?) por pastores e outros representantes religiosos. Há também aquele eleitor, como escreve Eliane Brum, que está "muito furioso e muito triste com o país e votou com raiva, votou como quando dá aquela vontade de quebrar tudo e ver o circo pegar fogo". 

Tudo isso é verdade. É pena que não há mais tempo para conversar com esses eleitores. E, para ser franco, nem sei se adiantaria alguma coisa.

Por falar em argumentar com eleitores, lembrei de outro excepcional texto de Eliane Brum, Bolsonaro e a autoverdade, publicado em julho deste ano.

"Quando a imprensa mostra que Bolsonaro se revelou um deputado medíocre" - escreve ela -, "que ganhou seu salário e benefícios fazendo quase nada no Congresso, quando mostra que ele nada tem de novo, mas sim é um político tão tradicional como outros ou até mais tradicional do que muitos, quando mostra que falta consistência no seu discurso, assim como projeto que justifique seu pleito à presidência, há pouco ou nenhum efeito sobre os seus eleitores. Porque o conteúdo pouco importa. As agências de checagem são um bom instrumento para combater as notícias e as declarações falsas de candidatos, mas têm pouca eficácia para combater a autoverdade" [Segundo a autora, a autoverdade é "a valorização de uma verdade pessoal e autoproclamada, uma verdade do indivíduo, uma verdade determinada pelo 'dizer tudo' da internet", acrescentando que "o valor dessa verdade não está na sua ligação com os fatos"]

A exposição de evidências, as alegações fundamentadas, até a racionalidade, em certa medida, tornaram-se completamente irrelevantes nesta eleição. Um dos motivos para eu estar estragado por dentro vem disso: não é possível argumentar com a quase totalidade dos eleitores de Bolsonaro, muito menos com seu fandom raivoso e cheio de testosterona. Eles só querem aceitar e só vão acreditar naquilo que favoreça seu candidato. Todo o resto é fake news. Tem mais, porém: todas as falas do deputado - pejadas de racismo, homofobia, apologia à tortura, ameaça ao estado democrático de direito, misoginia, etc - são percebidas, por seus eleitores, como "apenas brincadeira" ou exemplo de que ele é "autêntico".

Mas mesmo com tudo o que foi dito até agora, nem é a figura individual de Jair Bolsonaro, com sua canalhice intrínseca, o que mais me causa desespero e apreensão. São os esteios que o sustentarão no poder.

. . . . . . . 

Há alguns meses, o filósofo, ensaísta e poeta Francisco Bosco escreveu um ótimo artigo para o caderno Ilustríssima, da Folha de S. Paulo ².

Intitulado O mês que não terminou, o texto procura apontar o "legado" das chamadas "Jornadas de Junho". Bosco considera que

"o sentido geral de junho de 2013 era a revolta acumulada contra a tendência progressivamente privatista da democracia liberal (tiveram o mesmo sentido o Occupy Wall Street, em Nova York, e os Indignados, em Madri), que comprimia  cada vez mais o espaço do comum, e contra um sistema institucional endógeno, blindado, que asfixiava a participação política, reduzindo ao mínimo possível sua intensidade [...] Não era só por 20 centavos. Estava em jogo o poder empresarial submetendo o poder público e o interesse dos cidadãos; um péssimo serviço a preço alto; péssimas condições de circulação. Estava em jogo, em suma, o direito à cidade".

Lembro-me de que olhei com entusiasmo toda aquela agitação (o articulista assim também o fez) e "muitos apostaram nessa movimentação social como a esperança para pressionar, furar ou renovar a política institucional". Após junho de 2013, diversos grupos de esquerda (Muitas, Bancada Ativista, entre outros) e de direita (Vem pra Rua, Novo, entre outros) buscaram representação legislativa. Bosco observa que "apesar das diferenças ideológicas - e, pelo menos no caso do MBL, das estratégias baixas -, são todos sintomas da formação de uma nova cultura política, com o objetivo comum de transformar o sistema político institucional"

Mas os ventos esperançosos das "Jornadas de Junho", passados cinco anos, dissiparam-se quase sem vestígio.

Para Francisco Bosco (e eu concordo com ele),

"O gigante rapidamente foi se revelando menos progressista do que reacionário. Menos esclarecido do que irracional. Menos espontâneo do que titerizado por setores poderosos. Por fim, menos democrático do que autoritário. 
Junho de 2013 foi uma montanha que pariu um pato - e uma récua de cavalgaduras. Chega a quase dar saudade daquelas figuras de direita da Veja e até do delírio paranoico de Olavo de Carvalho, inofensivo perto da regressão em massa dos infantilizados adoradores de Bolsonaro"

Vivi, ainda criança, o governo Figueiredo, o último da ditadura militar, do qual tenho nítidas memórias (desagradáveis muitas delas). Passei perrengue, junto com minha família, durante o desastroso governo Sarney e sua hiperinflação. Estudante secundarista, participei de alguns protestos contra Collor. Não fiquei satisfeito com o conjunto da obra, mas reconheço avanços durante os mandatos de FHC, mesmo sem nunca ter votado nele. Tenho sido eleitor do PSOL desde 2006, mas votei em Lula antes (quatro vezes), por me identificar, naquela época, com o programa de seu partido. Desde então, só digitei o número do PT na urna eletrônica nos segundos turnos, porque considerava  seu adversário, o PSDB, uma alternativa ruim (e considero até hoje).

Aprendi algumas coisas nesse tempo todo.

E após o desanimador resultado das "Jornadas de Junho", é muito difícil olhar o Brasil com confiança.

Chegamos a 2018. O que temos?

De um lado, mais uma vez o PT, representado agora por Fernando Haddad. O partido, todos sabemos, tem muito o que explicar, desde o Mensalão. Mas seria desonesto da minha parte não admitir que políticas públicas implementadas nos mandatos de Lula e Dilma - algumas bem sucedidas, como o Bolsa Família - tinham como objetivo mitigar a indecente desigualdade social brasileira. E, com todos os seus defeitos, o PT, desde a sua fundação, tem jogado o jogo democrático.

Do outro lado, está um sujeito desequilibrado e que já deu mostras exaustivas de que o autoritarismo não o repugna, muito pelo contrário. E quando vemos que os financistas do mercado, os picaretas travestidos de líderes evangélicos, os tubarões do agronegócio desmatador e empresários inescrupulosos apoiam com euforia a sua candidatura, prevendo ganhos e lucros futuros, não tenho muita dúvida do que fazer.

No próximo domingo, voto em Fernando Haddad. Voto 13!

Não tenho mais ilusões quanto a eleições e democracia representativa ³. Como escreveu o historiador e cientista político camaronês Achille Mbembe (A era do humanismo está terminando), "a democracia liberal não é compatível com a lógica interna do capitalismo financeiro" e, nesse duelo, já sabemos quem será sacrificada. A transformação da política em apenas mais um braço do mercado é visível. A política, como espaço de disputa e também de negociação, poderá (e acho mesmo que será) eliminada em breve pela voracidade do capitalismo financeiro. Quais as alternativas para evitar isso (se é que existem)?

Uma delas é a ação direta. Ir para as ruas e lutar. Mas não só protestar. Lutar mesmo, no real sentido da palavra. Porque o poder econômico, como todo poder, não deseja contestação. Reagirá. E sua reação, garanto, será feroz. O Estado pouco ou nada pode fazer; na maioria das nações, aliás, o Estado está a serviço do poder econômico, inclusive (e principalmente) suas forças de repressão. Como não tenho a coragem necessária para a luta real, tento a outra alternativa.

Que é continuar escolhendo representantes políticos (sempre democraticamente, mesmo reconhecendo as falhas da democracia representativa), acreditando que, se estes não conseguem frear o poder econômico, podem ao menos tentar aliviar um pouco as consequências nefastas das ações de financistas, banqueiros e megacorporações, sobretudo para as parcelas mais pobres da sociedade.

É provável que um hipotético governo Haddad pouco possa fazer para contrapor-se ao poder econômico. Contudo, não tenho dúvida de que um hipotético governo Bolsonaro é o sonho dos canalhas endinheirados, loucos para que bobagens (estou sendo irônico, viu?) como direitos humanos, direitos trabalhistas, garantias constitucionais, auditorias, fiscalizações ambientais caiam por terra e possibilitem maior lucro.

Claro, posso estar completamente equivocado e o apologista da tortura pode fazer um bom governo, mostrar-se à altura do cargo e nem recorrer ao autoritarismo e a violência sistematizada. Porém, acho isso altamente improvável. O consórcio que tentará sustentá-lo - agronegócio, sistema financeiro, setores rapaces do empresariado, parte da mídia corporativa - não está disposto a ceder um centímetro de terreno, sobretudo após o bem sucedido golpe parlamentar-judicial de 2016. E o deputado do PSL é o cara certo pra completar o serviço.

Há um último ponto que quero abordar.

Uma característica dos governos autoritários é limitar e mesmo reprimir a exteriorização de opiniões contrárias a eles.

Sei que sou um ninguém, mas é também característica dos governos autoritários criar ou incentivar a criação de uma rede de delatores, dispostos a vigiar e denunciar pessoas com opiniões contrárias ao governo autoritário, que podem acionar seus próprios meios de repressão ou deixar isso a cargo de milícias ou grupos de valentões não-oficiais.

Corro risco? "O medo, o medo daquela ridícula Regina, me tomou", como desabafou o escritor e artista plástico Nuno Ramos.


No próximo domingo, voto em Fernando Haddad. Voto 13!

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¹ Para sermos honestos, se recuarmos até 2014, veremos que aquela campanha foi também pobremente propositiva, além de excessivamente agressiva, tanto do lado do PT (lembram-se como foi feita a "desconstrução" de Marina Silva pela militância petista?), quanto do lado do PSDB. Ainda assim, a deste ano apresenta um nível de baixeza quase inacreditável da parte bolsonarista.

² BOSCO, Franciso. O mês que não terminou. Folha de S. Paulo, São Paulo, 3 jun. 2018. Caderno Ilustríssima, p. 4-5

³  Por favor, não se entenda com isso que me oponho à democracia. Defendo a democracia. Aponto apenas que a democracia representativa tem seus limites, É hora de começarmos a implementar a democracia direta, com mais plebiscitos e referendos, além de favorecer a criação de conselhos populares, dando a estes poder de deliberação.

BG de Hoje

Apesar de gostar de ambos, devo dizer que o primeiro disco da banda potiguar, radicada em São Paulo, FAR FROM ALASKA (Mode Human, lançado em 2014) tem um som mais pesado (e mais do meu agrado) do que o segundo (Unlikely, de 2017). Um exemplo é a ótima faixa Dino vs Dino.

sexta-feira, 19 de outubro de 2018

Anti-intelectualismo e o vozerio dentro deste bar


"Em meio à onda anti-intelectualista, não causa surpresa que a lógica do pensamento passa a trabalhar com categorias pré-modernas como o 'messianismo' e a 'peste'. O messianismo identifica-se com a construção de heróis e salvadores da pátria (seres diferenciados, bravos e destemidos, mas que não são necessariamente cultos ou inteligentes, nem corajosos, mas usam uma performance política em que gritar e esbravejar provocam efeitos populistas). A lógica da peste identifica cada um dos problemas brasileiros como um mal indeterminado, em sua extensão, em suas formas e em suas causas, mas tangível e mortal, contra o qual só Deus ou pessoas iluminadas podem resolver. Só há 'messianismo' e 'peste', fenômenos típicos de um conservadorismo carente de reflexão, onde desaparece o saber e a educação".


Marcia Tiburi e Rubens Casara - Ódio à inteligência: sobre o anti-intelectualismo



Uma das frases mais famosas de Jean-Jacques Rousseau é "prefiro ser um homem de paradoxos que um homem de preconceitos". Tenho que admitir: a máxima tem lá seu charme. Porém, quando olhada de pertinho... Pois para demonstrar um paradoxo, Rousseau, a meu ver, lançou mão de um preconceito no seu Discurso sobre as ciências e as artes.

Tentarei esclarecer isso logo, logo. No momento, contudo, gostaria de dividir com o(a) eventual leitor(a) a birra que me dá um certo cacoete hermenêutico, manifestado por um considerável número de comentadores e estudiosos, diante de textos filosóficos.

Pego para ler Obra aberta, de Umberto Eco, e A escritura e a diferença, de Jacques Derrida, por exemplo. Consigo compreender satisfatoriamente o primeiro livro; não entendo bulhufas do segundo. Derrida praticava uma escrita desnecessariamente hermética; Eco, não. Seja como for, se interpreto determinada sentença do pensador italiano seguindo diretamente o que está escrito - sentença esta bastante precisa, sintática e semanticamente -, corro o risco de topar com alguém que me advertirá: "Não foi isso que ele quis dizer". Como assim? Está lá escrito, qualquer um pode entender! Por outro lado, se tal situação acontecesse quando me arriscasse a decifrar algo produzido por uma figura como Derrida, eu aceitaria de bom grado a admoestação. Até agradeceria, se logo em seguida viesse a ajuda para sacar o que o filósofo franco-argelino está argumentando naquele seu aranzel.

Eis o busílis:

  • Muitas vezes, o filósofo não está interessado em complicar e só quis dizer aquilo mesmo que está lá no seu texto (sem mistério nenhum, sem nada de enigmático). Não é preciso uma super capacidade exegética para entender o sentido do que foi escrito.  (Isso vale para os autores que prezam a clareza do texto, não os Derridas da vida)
  • Todavia, muitas vezes também - porque se admira aquele pensador ou porque algumas de suas ideias são caras ao comentarista/estudioso -, toma-se um cuidado excessivo para "protegê-lo" das "más interpretações", não raro atribuindo maior profundidade ou complexidade a perspectivas do autor que nada têm de profundas ou complexas (e, olha lá, não estou afirmando que só tem valor o que é profundo e complexo...)

Veja o caso de Jean-Jacques Rousseau.

Está sempre cercado de "protetores" por ter sido um grande defensor da igualdade e, principalmente, da liberdade. É uma peça-chave na história do pensamento político ocidental e todos reconhecemos isso. Mas tem sempre alguém da turma do "não-foi-isso-o-que-ele-quis-dizer" para "corrigir" interpretações "erradas" das suas palavras, mesmo quando o sentido delas é cristalino.


Bem, para este blogueiro, é gritante a visão anti-intelectualista do escritor genebrino, sobretudo em seu primeiro grande trabalho, o Discurso sobre as ciências e as artes. Como o tema central da postagem de hoje é justamente o anti-intelectualismo, falar um pouquinho desse texto (elaborado em 1749) vale a pena. E se a maneira como julgo Rousseau é resultado de "má interpretação" de suas palavras, paciência.

Antes de mais nada, convém darmos uma definição de anti-intelectualismoNOTA: Talvez fosse oportuno distinguir irracionalismoanti-racionalismo e anti-intelectualismo; contudo, a tarefa tornaria a postagem muito longa (meus escritos já são habitualmente beeem compridos) e tiraria a ênfase que quero dar à atmosfera anti-intelectual na qual estamos imersos atualmente. Assim que possível, publicarei no blog um texto cujo único objetivo será fazer a distinção desses termos.

Utilizemos uma conceituação bem simples, disponível no verbete da Wikipédia:

"Anti-intelectualismo descreve um sentimento de hostilidade em relação a, ou suspeição de, intelectuais e seus objetos de pesquisa. Isto pode ser expresso de várias formas, tais como ataques aos méritos da ciência, educação, arte e literatura" 

Eu acrescentaria que a aversão se estende aos resultados da atividade intelectual, como por exemplo, livros, artigos científicos, programas de ensino, espetáculos musicais ou teatrais, obras de arte, etc.

"Entre as suas motivações mais comuns" - continua o verbete -, "podemos enumerar: ressentimento de pessoas pouco instruídas contra eruditos; hostilidade em relação ao trabalho realizado pelos intelectuais, como educação, pesquisa, crítica social e cultural, literatura; acusação de parasitismo social (os intelectuais não teriam uma 'função' econômica na sociedade, sendo esta última compreendida, portanto, de maneira organicista); acusações de subversão e morbidez".

Penso que o anti-intelectualismo tornou-se um forte traço de nossa época, não obstante os índices de escolaridade atuais, os mais altos da história. No Brasil, nesse gravíssimo momento de tensão política, as posturas anti-intelectuais são algo patente. Mas o anti-intelectualismo não é um evento novo. Periodicamente, o estatuto do intelectual e seu papel dentro da sociedade são alvo de ataque. Não é preciso recuar muito no tempo. Olhando apenas para o século passado, sabemos que a caça às bruxas macarthista, realizada nos EUA no início da Guerra Fria, não poupou escritores e outros artistas, perseguidos com a desculpa de que "promoviam o comunismo". Notaremos também que muitos estudantes, após o Maio de 68, passaram a repudiar o saber teórico, visto por eles como inerentemente conservador e submisso ao poder. Ao anti-intelectualismo, acorreram, de tempos em tempos, tanto a direita quanto a esquerda. Entretanto, o fenômeno se torna particularmente funesto quando o identificamos como um dos elementos constituintes de influxos políticos de viés autoritário (e até mesmo totalitário). Convém lembrar que o fascismo e sua variante, o nazismo, eram fortemente anti-intelectualistas, assim como o stalinismo e o maoismo (sobretudo a partir da Revolução Cultural Chinesa).

Na definição da Wikipédia reproduzida acima, vimos que uma das acusações dirigidas aos intelectuais por parte de seus detratores é considerá-los parasitas da sociedade. A esse respeito, atentemos para esta passagem localizada na segunda parte do Discurso sobre as ciências e as artes ¹:

"Se nossas ciências são inúteis no objeto que se propõem [o encontro da verdade, de acordo com Rousseau], são ainda mais perigosas pelos efeitos que produzem. Nascidas da ociosidade, por seu turno a nutrem, e a irreparável perda de tempo é o primeiro prejuízo que determinam forçosamente na sociedade. Na política, como na moral, é um grande mal não se fazer de algum modo o bem e todo cidadão inútil pode ser considerado um homem pernicioso. [A seguir, Rousseau faz uma série de alusões a alguns pensadores e homens de ciência, entre estes Newton e Leibniz - importante notar que, no século XVIII, filosofia e ciência não eram ainda reconhecidos como ramos distintos do conhecimento e o termo filósofo designava também o que hoje chamamos de cientista] Respondei-me, pois, filósofos ilustres, vós por intermédio de quem sabemos por que razões os corpos se atraem no vácuo; quais são, nas revoluções dos planetas, as relações entre as áreas percorridas em tempos iguais; quais as curvas que têm pontos conjugados, pontos de inflexão e de retrocesso; como o homem vê tudo em Deus; como, sem comunicação, se correspondem a alma e o corpo, tal como o fariam dois relógios; quais os astros que podem ser habitados; quais os insetos que se reproduzem de modo extraordinário - respondei-me, repito, vós de quem recebemos tantos conhecimentos sublimes, se não nos tivésseis nunca ensinado tais coisas, seríamos com isso menos numerosos, menos bem governados, menos temíveis, menos florescentes, ou mais perversos? Reconhecei, pois, a pouca importância de vossas produções e, se o trabalho dos mais esclarecidos de nossos sábios e de nossos melhores cidadãos nos proporciona tão parca utilidade, dizei-nos o que devemos pensar dessa chusma de escritores obscuros e de letrados ociosos que, em pura perda, devoram a substância do Estado".

OK, OK. Sei que o próprio Jean-Jacques Rousseau admitia que o Discurso sobre as ciências e as artes foi mal escrito ². Sei também que ele não defendia o fechamento das universidades, nem acreditava que a ciência é uma maldição que se abateu sobre o planeta, nem pregava a morte a pauladas dos artistas e das pessoas cultas. Não obstante, acho difícil não atestar que o excerto acima está carregado do mais genuíno anti-intelectualismo. Para demonstrar um paradoxo - como o restabelecimento das ciências e das artes (durante o Iluminismo) não contribuiu para aprimorar os costumes -, o autor lançou mão de um preconceito - em geral, os praticantes das ciências e os artistas não têm como preocupação fundamental fomentar a virtude, dedicando-se a atividades supérfluas para a boa organização da sociedade, e por isso a contribuição não se deu. A passagem acima reproduzida serve para ilustrar um ponto de vista muito difundido em meio ao senso comum, tanto o da época quanto o de hoje, do qual Rousseau não conseguiu se desvencilhar.

A pressuposição de que a atividade intelectual e a criação artística são pura perda de tempo se não forem convertidas em algo "útil" acompanha a humanidade há milênios - com a ideia de utilidade variando de época para época, de cultura para cultura (no caso da nossa, útil será o mesmo que lucrativo). Do mesmo modo, é antiga a crença na futilidade da erudição, ainda mais quando confrontada com a premência do trabalho que garante o sustento. Para o anti-intelectualista, de ontem e de hoje, os "letrados ociosos" que "devoram a substância do Estado" são um problema. Qual o corolário? Se ninguém precisa deles, diz o anti-intelectualista, não há necessidade de mantê-los.

Passemos a outro trecho do livro, agora retirado da primeira parte:

"Onde não existe nenhum efeito não há nenhuma causa a procurar; nesse ponto, porém, o efeito é certo, a depravação é real, e nossas almas se corromperam à medida que nossas ciências e nossas artes avançaram no sentido da perfeição. Dir-se-á ser uma infelicidade própria de nossa época? Não, senhores; os males causados por nossa vã curiosidade são tão velhos quanto o mundo. A elevação e o abaixamento cotidianos das águas do oceano não foram mais regularmente submetidos ao curso do astro que nos ilumina durante a noite quanto a sorte dos costumes e da probidade aos progressos das ciências e das artes. Viu-se a virtude fugir à medida que sua luz se elevava no nosso horizonte e observou-se o mesmo fenômeno em todos os tempos e em todos os lugares"

A virtude (ou seja, a retidão moral desejável nos "homens de bem", segundo Rousseau) é corrompida à medida que se avança intelectualmente. Importante notar que essa afirmação vai ao encontro da concepção de natureza humana defendida pelo pensador genebrino: o ser humano vai se degenerando à medida que se sociabiliza.  A visão preconceituosa do saber intelectualizado - essa "vã curiosidade" que causa "males" -  tem forte relação com a tradição cristã de considerar o orgulho do conhecimento a causa do pecado original. O anti-intelectualista dirá que o incremento científico e o apuro artístico provocam a fuga da virtude e, portanto, os intelectuais e os artistas são imorais.

Seria possível fazer desaparecer ou, ao menos, atenuar esse preconceito?

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Em um breve artigo publicado na revista CULT em outubro de 2016 (Ódio à inteligência: sobre o anti-intelectualismo), a filósofa Marcia Tiburi e o jurista Rubens Casara escreveram:

"Há, dividindo espaço com opressões próprias ao campo do saber, um estranho ódio ao saber em sua forma crítica e desconstrutiva. Um ódio que se relaciona com a ameaça libertária do saber, um saber capaz de desmistificar, de contrastar certezas e de desvelar a ignorância que serve de base para todos os preconceitos. O pensamento e a ousadia intelectual tornaram-se insuportáveis para muitas pessoas chegando a um nível institucional e, não raro, acabam excluídos ou mesmo criminalizados.
Diversos exemplos de anti-intelectualismo podem ser observados na sociedade brasileira. Desde a caricata presença do ator Alexandre Frota (menos pelo que ele é, mas sobretudo pelo que ele representa) como formulador de políticas públicas do Ministério da Educação [Frota foi recebido pelo então titular da pasta do MEC, Mendonça Filho, em 25/05/2016]  ao projeto repleto de ideologia (e mais precisamente: da ideologia, de viés autoritário, da 'negação do saber') da 'Escola sem partido'. Do silêncio em torno da exclusão de disciplinas (filosofia, sociologia, artes, etc.) do ensino médio (MP 746) à expressiva votação de candidatos que apostam no uso da força, em detrimento do conhecimento, como resposta aos mais variados problemas sociais. Do descaso com a educação (consagrado na PEC 241) [depois PEC 55, quando passou da Câmara dos Deputados para o Senado, e virou a Emenda Constitucional nº 95, estabelecendo um teto de gastos públicos para os próximos 20 anos, afetando áreas como saúde e educação] ao tratamento conferido aos professores em todo Brasil [...]".

Este blogueiro poderia dar outros exemplos, como o cancelamento de uma exposição de arte após protestos de fanáticos raivosos insuflados por uma milícia ou, recentemente, o pedido (da parte dos pais e mães) para proibir, em uma escola, a leitura de um livro infantojuvenil considerado "comunista". Importa destacar, contudo, que estamos correndo o risco, como acertadamente sugerem Tiburi e Casara, de que o anti-intelectualismo se torne institucionalmente cada vez mais aceito e praticado, quem sabe até incentivado por representantes do poder público. A agressividade obscurantista e, pior ainda, intimidatória de parte significativa dos apoiadores de Jair Bolsonaro, direcionada a jornalistas, literatos, artistas e professores universitários que têm posicionamento contrário ao deles, é bastante preocupante, dado que o deputado é favorito para vencer as eleições presidenciais neste segundo turno.

Tiburi e Casara observam que, na lógica limitada do anti-intelectualista, existe, de um lado, o "messias" (ou seja, o salvador da pátria infalível) e do outro, "a peste" (ou seja, processos, eventos, organismos e indivíduos que precisam ser combatidos, aniquilados, sem pestanejar ou parar para pensar). Dentro dessa lógica, não cabem a complexidade e as contradições inerentes ao real, tudo é preto no branco, não há espaço para a reflexão, os intelectuais são supérfluos, não têm lugar. E, mais grave: para os milhares de anti-intelectualistas que estão emergindo, os intelectuais, mesmo tão metidos a inteligentes, não sabem lidar com "a peste" (alguns, até, estão contaminados por ela...),

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Outro dia, num dos bares que frequento aqui em Belo Horizonte, ouvi invectivas a Paulo Freire na mesa ao lado. Serei franco com o(a) eventual leitor(a): pessoalmente, me desagrada uma certa hagiolatria que costuma cercar o educador recifense, expressa por alguns de seus estudiosos. Nem por isso contesto a grande relevância de sua obra para a pedagogia e para a filosofia.

Da mesa vinham frases como "Paulo Freire é que trouxe esse comunismo todo pra dentro das escolas"; "Tem muita escola aí que é pura doutrinação esquerdista. Culpa desse Paulo Freire". Não me dei ao trabalho de apurar quem eram (além do mais, seria bem grosseiro da minha parte me intrometer na conversa alheia). Sou capaz de apostar, porém, que não eram professores (se fossem, saberiam que dentro de uma escola há tantos embaraços e reveses mais urgentes para serem resolvidos que ninguém tem tempo para uma suposta doutrinação esquerdista). Também apostaria que jamais leram uma página sequer dos livros de Freire.

Falando nisso, nesse mesmo bar, algumas semanas depois, escutei declaração semelhante de um conhecido meu, curiosamente, filho de um professora (aposentada) de escola pública. Quando perguntei se já lera algo de Paulo Freire, a resposta oblíqua me fez ver que ele (tal como as pessoas do outro dia) apenas reproduzia a ladainha rasteira, baseada em memes de mídias sociais e posts de veracidade duvidosa do WhatsApp, empregada nas disputas ideológicas desse nosso mundinho digital contemporâneo.

Eu ainda bebo habitualmente nesse e em outros dois bares próximos ao lugar onde moro. A ar está pesado em todos eles, pelo menos para mim. Botequins, claro, nunca foram espaços de conferências acadêmicas. Mas já foram pelo menos mais acolhedores a quem, num bate-papo acompanhado de umas geladas, se dispunha a apresentar fatos, corrigir informações falsas. Também não havia tantos esgares e olhares de fastio ou raiva mal disfarçada quando se tentava levar a conversa para temas menos ordinários.

O que tenho escutado nos últimos meses é um vozerio de indivíduos sem qualquer disposição para ouvir o outro, a dizer (e, as vezes, berrar) que "o coro vai comer", "esse povo vai entrar na linha", repetindo bordões cujo teor é marcado por uma completa ausência de empatia, por uma falta de preocupação social e senso de coletividade, revelando uma incultura que não conhece limites, a exigir, entretanto, que lhes prestemos continência.

O escritor Isaac Asimov disse certa vez: "Anti-intellectualism has been a constant thread winding his way through our political and cultural life, nurtured by the false notion that democracy means that 'my ignorance is just as good as your knowledge' " ["o anti-intelectualismo tem sido uma corrente constante insinuando-se através de nossa vida política e cultural, alimentado pela falsa noção de que democracia significa que 'minha ignorância é simplesmente tão boa quanto o seu conhecimento' "].

Infelizmente, temo não se tratar mais de algo que se insinua, que se infiltra paulatinamente. Acho que os ignorantes assumiram o controle de vez.

E todos iremos perder.

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Antes de encerrar, gostaria de fazer notar ao(à) eventual leitor(a) que a candidatura Bolsonaro, pelo que representa de obscurantismo e de ameaça ao regime democrático e à liberdade (inclusive a de expressão), tem sido repelida por muitos intelectuais e pessoas ligadas ao objeto que melhor nos representa - o livro.

Pode-se verificar o veto ao candidato do PSL na declaração dos escritores que representaram o Brasil na Feira de Frankfurt desse ano; no posicionamento de Luiz Schwarcz, presidente da Companhia das Letras, uma das mais prestigiadas e importantes empresas livreiras do país; e no Manifesto do Livro, assinado por diversos escritores e escritoras, editores e editoras.

[Atualização: 20/10/18]: Esqueci de citar aqui o sensacional texto-desabafo (Isto não é um poema) do cantor, compositor e poeta Arnaldo Antunes, também contrário à candidatura mencionada acima. Faço-o agora.

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¹ ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre as ciências e as artes. 2 ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978. p. 321-352. (Coleção Os pensadores) [Tradução de Lourdes Santos Machado]

² Na Advertência incluída numa das edições do texto, o escritor registrou: "Que será a celebridade? Eis a obra infeliz a que devo a minha. É certo que essa peça, que me valeu um prêmio e me deu nome, será, no máximo, medíocre e, ouso acrescentar, uma das menores deste repositório. Que abismo de misérias não teria evitado o autor, se esta primeira obra tivesse sido recebida como o merecia! Mas era preciso que um favor inicial injusto me trouxesse, aos poucos, uma severidade que ainda é mais injusta".

BG de Hoje

The Same Boy You've Always Known é uma canção para a qual não dei muita bola há alguns anos, quando adquiri White Blood Cells, dos WHITE STRIPES. Aos poucos, entretanto - e era inevitável -, acabei chegando a conclusão de que é uma das mais bonitas daquele álbum (senão uma das melhores em toda a carreira da dupla de Detroit). NOTA: Prefiro a versão em estúdio (sempre prefiro as versões em estúdio), mas achei que a apresentação abaixo ganhou um tom que não sei definir (bem-vindo, todavia), ausente na gravação incluída no disco lançado em 2001.