"A fome está sempre ali.
Como está ali, ela vem quando e como quer.
O princípio da causalidade é o trabalho ignóbil do Anjo da Fome.
Quando ele chega, chega com força".
Do personagem-narrador Leo Auberg, em Tudo o que tenho levo comigo, de Herta Müller
É possível conferir ao sofrimento um tratamento poético?
Não estou dizendo no momento mesmo em que se padece, é óbvio - mas retrospectivamente, quem sabe?
Quando lemos o romance Tudo o que tenho levo comigo ¹, de Herta Müller, somos convencidos de que a resposta é sim.
O livro tem como narrador o jovem Leo Auberg. Após o fim da 2ª Guerra Mundial, aos dezessete anos, ele foi levado para um campo de trabalho forçado na Ucrânia, junto com outras pessoas de ascendência alemã residentes na Romênia, como parte das obras de reconstrução exigidas pela então União Soviética (a mãe da escritora, aliás, enfrentara o mesmo tormento). Leo Auberg representa o poeta Oskar Pastior, amigo de Herta Müller.
Tudo o que tenho levo comigo é dividido em vários pequenos capítulos: alguns deles descrevendo episódios específicos, como se fossem contos. Do ponto de vista estilístico, salta aos olhos a prosa cheia de elementos líricos, mesmo retratando um ambiente tão opressivo e duro com um campo de trabalho forçado. Um exemplo? Atente para este trecho:
Durante quatro dos cinco anos passados no campo de trabalho a fome era ubíqua. Não era possível livrar-se dela; sua presença obsedante desumanizava suas vítimas:
As perguntas feitas por Leo Auberg são pungentes: Como se anda pelo mundo quando não se tem nada mais a dizer sobre si mesmo, além do fato de estar com fome? Quando não se consegue pensar em mais nada?
Muitos de nós, ainda que passemos por agruras ao longo da vida, certamente não experimentamos nada tão amargo quanto a fome (e pensar que, segundo a ONU, mais de 800 milhões de pessoas no mundo hoje mal conseguem arranjar o que comer...). É horrível também descobrir que, há apenas sete décadas, a privação de alimentos era empregada metodicamente, como forma de "reeducação" e controle.
Há um episódio dentro do romance de Müller que gostaria de destacar. Em O caso do crime do pão podemos ver como a fome age sobre as condutas.
Nesse capítulo somos apresentados a Fenja, um exemplo da burocracia soviética. "Nenhum de nós se interessava pela pessoa de Fenja", admite o narrador. "Mas todos estávamos entregues a ela, pois distribuía o pão. Ela era a senhora do pão, e nós comíamos da sua mão todos os dias".
A funcionária, meticulosa, nunca errava na quantidade das porções individuais diárias: "Lá estava ela, totalmente sozinha com a enorme faca atrás do balcão, em sua câmara branca, entre a balança de cozinha e o ábaco. Ela deveria conhecer as listas de cabeça. Sabia com exatidão quem deveria receber a ração de seiscentos gramas, quem a de oitocentos gramas e quem a de mil gramas". Segundo Leo, "Fenja não era boa nem má, ela não era uma pessoa, mas uma lei usando casacos de tricô".
Uma parte dos trabalhadores, durante o dia, tentava guardar parte da ração de pão debaixo do travesseiro para comê-la à noite, junto com a rala sopa de repolho que era invariavelmente servida. Era preciso "ser firme". A maioria faminta, entretanto, acabava por devorar toda a ração antes mesmo do meio-dia:
Entretanto, o sinistro personagem, apesar do nome, nada tem de angelical: "Todo dia o Anjo da Fome me devorava o cérebro. E um dia ele ergueu a minha mão. E com essa mão estive a ponto de matar Karli Halmen - é o caso do crime do pão"
Esse rapaz, Karli Halmen, estava de folga durante o período diurno, sozinho no alojamento. À noite, quando Albert Gion, junto com os outros, voltou de seu turno e procurou pela parte da ração que havia guardado não a encontrou. Halmen foi agredido até que vomitou "uma massa de baba e pão".
"O desejo de matar" - nos conta Leo Auberg - "devorava-me a razão. Não só a mim, éramos uma matilha". O "ladrão do pão" foi espancado violentamente, chegaram a urinar em seu rosto, mas sobreviveu.
Ao fim do capítulo, lemos:
Poucas coisas na vida devem ser tão ruins quanto passar dias e dias com fome.
Não estou dizendo no momento mesmo em que se padece, é óbvio - mas retrospectivamente, quem sabe?
Quando lemos o romance Tudo o que tenho levo comigo ¹, de Herta Müller, somos convencidos de que a resposta é sim.
O livro tem como narrador o jovem Leo Auberg. Após o fim da 2ª Guerra Mundial, aos dezessete anos, ele foi levado para um campo de trabalho forçado na Ucrânia, junto com outras pessoas de ascendência alemã residentes na Romênia, como parte das obras de reconstrução exigidas pela então União Soviética (a mãe da escritora, aliás, enfrentara o mesmo tormento). Leo Auberg representa o poeta Oskar Pastior, amigo de Herta Müller.
"Em 2001" - anota ela no epílogo do romance - "comecei a registrar por escrito as conversas com pessoas do meu vilarejo que haviam sido deportadas [para campos de trabalho forçado na URSS]. Eu sabia que Oskar Pastior fora deportado e contei-lhe que queria escrever sobre isso. Ele quis ajudar-me com suas lembranças. Nós nos reuníamos com regularidade: ele falava e eu anotava. E logo surgiu o desejo de escrever o livro
juntos.
Quando, em 2006, Oskar Pastior morreu repentinamente, eu tinha quatro cadernos repletos de anotações manuscritas, além de esboços para alguns capítulos. Depois de sua morte, fiquei como paralisada. A proximidade pessoal que as anotações propiciavam fez com que a perda se tornasse ainda maior.
Somente depois de um ano, consegui obrigar-me a me despedir do 'nós' e escrever este romance sozinha. Porém, sem os detalhes de Oskar Pastior sobre o cotidiano no campo de trabalho, eu não teria conseguido fazê-lo"
Tudo o que tenho levo comigo é dividido em vários pequenos capítulos: alguns deles descrevendo episódios específicos, como se fossem contos. Do ponto de vista estilístico, salta aos olhos a prosa cheia de elementos líricos, mesmo retratando um ambiente tão opressivo e duro com um campo de trabalho forçado. Um exemplo? Atente para este trecho:
"Sempre tento convencer-me de que sou pouco sensível. Se levo algo a sério, afeta-me apenas moderadamente. Quase nunca choro. Não sou mais forte que os de olhos úmidos, e sim mais fraco. Eles se atrevem. Quando se é apenas pele e osso, os sentimentos são valentes. Prefiro ser covarde. A diferença é mínima, eu uso minha força para não chorar. E se me permito algum sentimento, transformo-o numa história que insista, seca, na ausência de nostalgia. Mas então se tornam apenas as castanhas imperiais e reais com cheiro de couro fresco, das quais meu avô me havia falado. Como marinheiro no porto de Pula, ele havia descascado e comido castanhas antes de partir para a volta ao mundo no veleiro Donau. Sendo assim, minha ausência de nostalgia passa a ser a nostalgia narrada pelo meu avô, com a qual domestico a nostalgia daqui. Ou seja, se tenho alguma vez um sentimento, trata-se de um aroma. O aroma-palavra da castanha ou do marinheiro. Com o tempo, o aroma-palavra torna-se surdo, como os feijões do Lommer da cítara [refere-se a um dos internos do campo de trabalho, que "lia" o futuro de acordo com a posição dos feijões após serem jogados]. Podemos transformar-nos num monstro quando deixamos de chorar. O que me impede, caso eu não o seja já faz tempo, não é muito; no máximo, a frase: Eu sei que você vai voltar [dita pela avó de Leo Auberg quando ele foi levado pelos soldados soviéticos]".
Durante quatro dos cinco anos passados no campo de trabalho a fome era ubíqua. Não era possível livrar-se dela; sua presença obsedante desumanizava suas vítimas:
"O que se pode dizer sobre a fome crônica. Pode-se dizer: existe uma fome que te deixa doente de fome. Que se soma, ainda mais fome, à fome que já se tinha. A fome sempre renovada, que cresce insaciável, e que salta para dentro da eterna e tão trabalhosamente amansada antiga fome. Como se anda pelo mundo quando não se tem nada mais a dizer sobre si mesmo, além do fato de estar com fome. Quando não se consegue pensar em mais nada. E o céu da boca é maior do que a cabeça: uma cúpula alta e sonora até o crânio. Quando a fome fica insuportável, ela se estende até o céu da boca como se tivesse colocado uma pele de coelho fresca para secar atrás do seu rosto. As faces murcham e se cobrem com uma pálida penugem".
(NOTA: O leitor deve estar atento: o uso do ponto de interrogação é raríssimo nos textos de Herta Müller. Isso já havia me despertado curiosidade quando li, no início deste ano, outro de seus livros - O compromisso)
As perguntas feitas por Leo Auberg são pungentes: Como se anda pelo mundo quando não se tem nada mais a dizer sobre si mesmo, além do fato de estar com fome? Quando não se consegue pensar em mais nada?
Muitos de nós, ainda que passemos por agruras ao longo da vida, certamente não experimentamos nada tão amargo quanto a fome (e pensar que, segundo a ONU, mais de 800 milhões de pessoas no mundo hoje mal conseguem arranjar o que comer...). É horrível também descobrir que, há apenas sete décadas, a privação de alimentos era empregada metodicamente, como forma de "reeducação" e controle.
Há um episódio dentro do romance de Müller que gostaria de destacar. Em O caso do crime do pão podemos ver como a fome age sobre as condutas.
Nesse capítulo somos apresentados a Fenja, um exemplo da burocracia soviética. "Nenhum de nós se interessava pela pessoa de Fenja", admite o narrador. "Mas todos estávamos entregues a ela, pois distribuía o pão. Ela era a senhora do pão, e nós comíamos da sua mão todos os dias".
A funcionária, meticulosa, nunca errava na quantidade das porções individuais diárias: "Lá estava ela, totalmente sozinha com a enorme faca atrás do balcão, em sua câmara branca, entre a balança de cozinha e o ábaco. Ela deveria conhecer as listas de cabeça. Sabia com exatidão quem deveria receber a ração de seiscentos gramas, quem a de oitocentos gramas e quem a de mil gramas". Segundo Leo, "Fenja não era boa nem má, ela não era uma pessoa, mas uma lei usando casacos de tricô".
Uma parte dos trabalhadores, durante o dia, tentava guardar parte da ração de pão debaixo do travesseiro para comê-la à noite, junto com a rala sopa de repolho que era invariavelmente servida. Era preciso "ser firme". A maioria faminta, entretanto, acabava por devorar toda a ração antes mesmo do meio-dia:
"Se eu não havia conseguido manter-me firme de manhã, à noite não existia nenhum resto de pão, nem mesmo algo para decidir. Eu enchia a colher somente pela metade, sorvia profundamente. Aprendera a comer devagar, a engolir saliva após cada colherada de sopa. O Anjo da Fome dizia: A saliva prolonga a sopa, e ir dormir cedo encurta a fome".
Entretanto, o sinistro personagem, apesar do nome, nada tem de angelical: "Todo dia o Anjo da Fome me devorava o cérebro. E um dia ele ergueu a minha mão. E com essa mão estive a ponto de matar Karli Halmen - é o caso do crime do pão"
Esse rapaz, Karli Halmen, estava de folga durante o período diurno, sozinho no alojamento. À noite, quando Albert Gion, junto com os outros, voltou de seu turno e procurou pela parte da ração que havia guardado não a encontrou. Halmen foi agredido até que vomitou "uma massa de baba e pão".
"O desejo de matar" - nos conta Leo Auberg - "devorava-me a razão. Não só a mim, éramos uma matilha". O "ladrão do pão" foi espancado violentamente, chegaram a urinar em seu rosto, mas sobreviveu.
Ao fim do capítulo, lemos:
"O problema com o pão fora resolvido, todos agiam normalmente. Nunca acusamos Karli Halmen de roubo. Ele nunca nos censurou pelo castigo. Sabia que o havia merecido. O tribunal do pão não negocia: pune. A tolerância zero não conhece parágrafos, não precisa de leis. Ela existe porque o Anjo da Fome também é um ladrão, um ladrão que nos rouba o cérebro. O tribunal do pão não conhece preâmbulos ou perorações: vive apenas o momento presente. Totalmente transparente ou totalmente misterioso. De qualquer forma, a violência do tribunal do pão é diferente da violência sem fome. Não é possível apresentar-se diante dele com a moralidade de todos os dias"
Poucas coisas na vida devem ser tão ruins quanto passar dias e dias com fome.
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¹ MÜLLER, Herta. Tudo o que tenho levo comigo. São Paulo: Companhia das Letras, 2011 [Tradução de Carola Saavedra]
BG de Hoje
Em minha humilde (tá, vá lá, nem tão humilde) opinião, uma das melhores bandas de heavy metal da atualidade: a francesa GOJIRA (aqui com a faixa Silvera)