sábado, 1 de dezembro de 2018

Entrevistas com escritores


No pequeno texto que serve de prefácio a um livro organizado por Fabrício Marques - Dez conversas: diálogos com poetas contemporâneos ¹ -, Joca Reiners Terron notou que:

"Em uma de suas numerosas blagues o escritor guatemalteco Augusto Monterroso defendeu a entrevista como o único gênero inventado pela Modernidade. Uma provocação, sem dúvida, mas com inquestionável e verdadeiro sentido. Afinal, o que seria da moderna compreensão do singular ofício de escritor sem as legendárias entrevistas publicadas por George Plimpton na não menos mítica Paris Review? Com um meticuloso sistema de perguntas procurando deslindar preocupações estéticas e técnicas de alguns dos maiores autores do século vinte, os múltiplos entrevistadores daquela publicação estabeleceram um padrão incontornável para entrevistas com escritores, um sistema de investigação digno de 'agentes do FBI', como salientou Malcom Cowley na introdução à primeira coletânea de entrevistados pela revista".

Entrevistas tornaram-se peças-chave para um melhor entendimento de diversos fenômenos, inclusive a criação literária, como observa Terron no excerto acima. Pessoalmente, procuro ler o maior número possível delas, sobretudo quando se trata de escritores/escritoras, leitura essa facilitada tremendamente, claro, pela internet. E mesmo antes da popularização da web buscava por este tipo de trabalho jornalístico onde pudesse encontrá-lo. E, acredite ou não, eventual leitor(a), uma das melhores fontes foi a Playboy. Lembro particularmente de três entrevistados, escritores, cujo teor da conversa publicada na revista criada por Hugh Hefner me interessou bastante: Luis Fernando Veríssimo, Isabel Allende e José Saramago (o romancista português, por exemplo, confirmou que maioria dos seus livros nasceu primeiro do título imaginado).

Joca Reiners Terron também tem razão ao apontar a Paris Review como a publicação que fixou o modus faciendi das entrevistas com escritores(as). Direcionadas mais para a feitura da obra do que para a vida particular dos(as) autores(as), as matérias da Paris Review tornaram-se valiosos recursos para os estudos literários (este blogueiro mesmo recorreu a uma delas na elaboração de uma postagem, dois anos atrás, sobre a escritora norte-americana Toni Morrison).

E por falar na Paris Review, li há pouco 17 entrevistas publicadas por lá reunidas num livro essencial, que completou 30 anos de lançamento em 2018 ².

Destaco três delas:

✰ William Faulkner (1897-1962)

A entrevista do escritor norte-americano ocorreu em 1956. Apesar de não ser rude nas respostas, não escondia que detestava falar de sua própria obra (ou de si). A certa altura, ele disse:

"Minha obra tem que me agradar, e, se o faz, não preciso falar a respeito dela com ninguém. Se não me agrada, falar disso não vai melhorar coisa alguma, já que a única coisa que pode melhorar é trabalhar nela um pouco mais. Não sou um literato, apenas um escritor. Não sinto prazer algum em falar a respeito do meu trabalho".

Eis que estamos, mais uma vez, diante daquela velha questão:  A) o artista deve criar visando apenas sua satisfação/sentimento pessoal de realização, sem se preocupar com as possíveis reações/opiniões de outrem; ou B) deve levar em conta o leitor/espectador/ouvinte em potencial (isto é, as possíveis expectativas deste, até mesmo sua capacidade de entendimento) durante o processo de elaboração artística? Faulkner, como é fácil averiguar, adotou A) como diretriz.

Respondendo a uma pergunta anterior, já havia afirmado que

"A única responsabilidade do escritor é para com sua arte. Será inteiramente desapiedado se for um bom escritor. Tem um sonho. Isso o angustia tanto que ele tem que se livrar dele. Não tem paz até então. O resto vai por água abaixo: honra, orgulho, decência, segurança, felicidade, tudo, para que o livro seja escrito. Se um escritor tiver que roubar a sua mãe, não hesitará [...]"

O artista - "uma criatura arrastada por demônios", segundo William Faulkner -, enquanto individualidade, "não tem importância. Só o que ele cria é importante, já que não há nada de novo a ser dito", considerava ele, acrescentando: "Shakespeare, Balzac, Homero, todos escreveram a respeito das mesmas coisas, e, se tivessem vivido mais mil ou dois mil anos, os editores não teriam precisado de mais ninguém desde então".

Em duas passagens da conversa, o romancista, surpreendentemente, afirma ter descoberto (pelo menos no início da carreira) que escrever era "divertido", embora um romance em particular - O som e a fúria (já postei sobre ele aqui) - tenha sido o trabalho que lhe causou "mais dor e angústia", tendo sido reescrito cinco vezes, em épocas diferentes.

O entrevistado é execravelmente machista ao fazer a seguinte comparação: "O sucesso é feminino e como uma mulher; se você se curva diante dela, ela passa por cima de você. Então o jeito de tratá-la é dar-lhe as costas da mão. Aí, talvez, ela venha a rastejar".

Mas consegue ser espirituoso e até engraçado quando diz: "Saiba que, se eu reencarnasse, gostaria de voltar como um urubu. Ninguém o odeia ou inveja nem o quer ou precisa dele. Ele nunca se vê importunado ou em perigo, e pode comer qualquer coisa".

Não poderia deixar de mencionar sua crítica à rotina de trabalho regular e semicompulsório que caracteriza nossas sociedades (crítica, aliás, com a qual concordo inteiramente):

"Sou um vagabundo e um andarilho por temperamento. Não desejo o dinheiro tanto assim a ponto de trabalhar por ele. Na minha opinião, é uma vergonha que a única coisa que um homem pode fazer oito horas por dia, dia após dia, é trabalhar. Não se pode comer oito horas por dia, nem beber oito horas por dia, nem fazer amor oito horas - tudo o que se pode fazer durante oito horas é trabalhar. É esse o motivo pelo qual o homem torna, a si e a todos os demais, infelizes e miseráveis".



✰ Jorge Luis Borges (1899-1986)

A entrevista do contista e poeta argentino é aquela com mais sinais de espontaneidade (convém informar que na Paris Review, após a primeira gravação/registro da conversa, ela geralmente passa por uma revisão feita pelo próprio entrevistado). Concedida em 1966, quando o autor d'O livro de areia era diretor da Biblioteca Nacional, em Buenos Aires, a entrevista foi interrompida três vezes pela secretária de Borges, avisando que um certo Sr. Campbell o aguardava. Sua reação é bem-humorada.

Assim como Faulkner, Jorge Luis Borges acreditava que "as coisas que são ditas em literatura são sempre as mesmas": o importante é "a maneira como são ditas". Diferentemente do norte-americano, contudo, Borges não mantinha o potencial leitor fora da sua equação. "As pessoas devem ser capazes de ler fluentemente, mesmo que você esteja escrevendo metafísica ou filosofia, ou o que quer que seja", disse ele.

No começo de sua carreira, o escritor "achava que tudo tinha de ser definido e que nenhum volteio de frase comum deveria ser usado. Eu nunca teria dito: 'Fulaninho de Tal entrou e sentou', porque isso era simples e fácil demais. Achava que tinha que descobrir alguma forma extravagante de dizer isso". Entretanto, mudou à medida que amadurecia:

"Agora percebo que essas coisas são geralmente aborrecimentos para o leitor. Mas penso que toda a raiz do problema está no fato de que, quando um escritor é jovem, ele de algum modo sente que o que vai dizer é bastante tolo, óbvio ou lugar comum, e então tenta ocultá-lo sob uma ornamentação barroca, por trás de palavras tiradas dos escritores do século XVII; ou, senão, se ele se empenha em ser moderno, então faz o contrário: fica inventando palavras o tempo todo, ou aludindo a aviões, trens ou o telégrafo e o telefone porque está se esforçando ao máximo para ser moderno. Depois, à medida que o tempo passa, sente-se que as ideias que se tem, boas ou más, devem ser expressas claramente, porque, se você tem uma ideia, tem que tentar passar essa ideia ou essa emoção ou essa atmosfera para a mente do leitor"

Tendo em vista o efeito que o texto busca produzir no leitor, Borges acreditava que o escritor "deveria ser julgado pelo prazer que proporciona e pelas emoções que se obtém. Quanto a ideias [políticas], afinal de contas não é muito importante se um escritor tem esta ou aquela opinião política, porque uma obra se sairá bem apesar delas [...]". Essa observação é sob medida para o próprio entrevistado (já postei aqui sobre os tenebrosos posicionamentos sociopolíticos de Borges).

Essa consideração pelo leitor, contudo, em nada diminui a qualidade e a sofisticação do contista argentino (basta ler algumas de suas narrativas para constatá-lo). Sua literatura é sempre cheia de citações, comentários implícitos, menções a outros textos. Tudo fazendo parte de um jogo nem sempre percebido por quem o lê. A esse respeito, Borges disse que "a maior parte dessas alusões e referências são postas lá [na sua obra] simplesmente como uma espécie de brincadeira íntima". E completou: "Uma brincadeira que não precisa ser necessariamente compartilhada com outras pessoas. Quero dizer, se elas a compartilham, tanto melhor; mas, se não, não me importo nem um pouco com isso".



Nadine Gordimer (1923-2014)

Muito por iniciativa da própria escritora sul-africana, a entrevista da autora de O falecido mundo burguês tornou-se a mais "pessoal" do livro inteiro, na qual se falou muito de sua vida familiar e doméstica. A conversa começou a ser registrada no outono de 1979 (nos EUA) e retomada na primavera de 1980 (no Reino Unido) .

Geralmente classificada como escritora política, Gordimer disse:

"Eu não sou por natureza uma criatura política, e mesmo agora há muitas coisas que não gosto na política e nos políticos - embora admire tremendamente pessoas que são politicamente ativas - há tanto mentir para si mesmo, auto-ilusão, tem que haver - você não se torna um bom ativista político a menos que possa fingir que os calos não estão ali".

Para ela, escrever é uma das "maneiras de amarrar a experiência". Escrever é

"tentar entender a vida. Você trabalha a sua vida inteira e talvez tenha conseguido entender um pedaço bem pequeninho [...] Penso que isso é o que a literatura é, penso que isso é o que a pintura é. É procurar esse fio de ordem e lógica na desordem, e o caráter de incrível desperdício e maravilhosa prodigalidade da vida. O que todos os artistas estão tentando fazer é compreender a vida"

Sobre o modo como pensa a estrutura de seus livros, Nadine Gordimer respondeu:

"Para mim, outra vez, muito pouco da construção é objetivamente concebido. Ela é orgânica, instintiva e subconsciente. Não sei lhe dizer como cheguei a ela. Embora, a cada livro, eu atravesse um longo período em que sei o que quero fazer mas me sinto refreada, confusa e abatida, porque não sei, antes de escrever, como vou fazer, e sempre receio não ser capaz de fazê-lo".

A cada texto, é preciso encontrar a forma narrativa mais eficaz, às vezes até adotando um estilo não experimentado antes. É arriscado:

"É claro que você corre um risco tremendo com esse estilo narrativo, e quando consegue ser bem-sucedido, creio que é o ideal. Quando não, é claro, você irrita o leitor ou deixa confuso. Pessoalmente, como leitora, não me importo de ficar confusa. Talvez o(a) escritor(a) não saiba das consequências implícitas em seus livros, porque há uma escolha de explicações; e como leitora, eu aprecio isso. Para mim, é uma parte fundamental do excitante negócio de ler um livro, de ser instigada, e ter uma mente própria para pensar. E então, como escritora, tomo a liberdade de fazer isso"

Na condição de leitora de literatura, aliás, Gordimer faz a seguinte observação:

"Muitos escritores dizem que não leem outros escritores, os contemporâneos. Se é verdade, é uma grande pena. Imagine se você tivesse vivido no século XIX e não tivesse lido os escritores aos quais hoje retornamos tão amorosamente, ou mesmo que você tenha vivido no século XX e não tenha lido Lawrence ou Hemingway, Virginia Woolf e assim por diante".

Para comparação, pensemos na resposta negativa de Faulkner quando perguntado se lia seus contemporâneos. Ele disse que lia apenas os livros que conheceu "quando era moço e aos quais volto como se volta aos velhos amigos". Faulkner complementou: "Já li esses livros tantas vezes que nem sempre começo na primeira página ou leio até o fim. Leio apenas uma cena ou o tocante a uma personagem, assim como você encontra e conversa com um amigo por alguns minutos". Lembro-me agora que João Ubaldo Ribeiro disse algo parecido à revista Playboy.

Voltando a Nadine Gordimer, a autora apresentou um ponto de vista inusitado: ela defende que todos os escritores são "seres andróginos":

"[...] não creio que importe nem um pouco de que sexo é o escritor, desde que sua obra seja a de um verdadeiro escritor. Penso que existe de fato tal coisa como uma 'escrita da mulher', por exemplo, uma literatura feminina; existem 'autoras' e 'poetisas'. E há homens, como Hemingway, cuja excessiva 'masculinidade' é uma parte concomitante de sua literatura. Mas com muitos dos escritores de sexo masculino que admiro, isso não importa tanto".

. . . . . . .

Antes de encerrar, gostaria de comentar uma resposta dada por Gore Vidal na sua entrevista publicada no livro de que estamos falando (a conversa ocorreu em 1974).

Perguntado se escrever era fácil e se gostava de fazê-lo, Vidal respondeu que sim, gostava de escrever, dizendo que seus romances eram escritos a mão, mas as peças de teatro e os ensaios, à máquina.

"Uma curiosidade:" - disse ele -"nunca releio um texto até terminar a primeira versão. Senão, é muito desencorajador. Também porque quando você tem a coisa toda ali na frente, pela primeira vez, já esqueceu a maior parte e vê tudo como se fosse novidade. Reescrever, no entanto, é um negócio vagaroso, penoso. Para mim, o principal prazer de ter dinheiro é poder pagar por quantas versões redatilografadas eu quiser. Quando eu era jovem e pobre, tinha que datilografar eu mesmo, por isso raramente fazia mais que duas versões. Agora, passo por quatro, cinco, seis. Quanto mais, melhor, já que o meu estilo é muito o de pensar duas vezes".

Estamos tão acostumados com os computadores pessoais (e as impressoras residenciais) que às vezes esquecemos o quanto isso facilitou a vida dos(as) escritores(as). Poder consertar e refazer um texto quantas vezes quiser antes de lançá-lo publicamente, apenas clicando/digitando aqui e ali, sem todo o trabalho mecânico de manuscrever ou datilografar, aborrecimento que sempre acompanhara os artistas e profissionais da escrita, é algo verdadeiramente transformador. Por outro lado, os pesquisadores e estudiosos de Literatura talvez, em breve, não terão à disposição as versões preliminares de algumas narrativas, nem aquelas folhas onde se podia ver as hesitações, mudanças de ideia, reformulações dos(as) criadores(as), sinalizadas pelos rabiscos, linhas sublinhadas e anotações nos cantos das páginas.
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¹ TERRON, Joca Reiners. A entrevista: o gênero literário da modernidade. In: OLIVEIRA, Fabrício Marques. Dez conversas: diálogos com poetas contemporâneos. Belo Horizonte: Gutenberg, 2004. 

² OS ESCRITORES: as históricas entrevistas da Paris Review. São Paulo: Companhia das Letras, 1988 (Seleção de Marcos Maffei) [Tradução de Alexandre Martins e Beth Vieira]. Um segundo volume de entrevistas foi publicado, com o mesmo título e pela mesma editora, no ano ulterior, 1989.

BG de Hoje

No somatório geral, gosto do trabalho de NANDO REIS, embora reconheça que existam altos e baixos. Sem dúvida, porém, Diariamente, gravada por MARISA MONTE e lançada no disco Mais, de 1991, é um ponto altíssimo da sua carreira. Ah, e o videoclipe feito por Fábio Yamaji conseguiu ajustar-se muito bem à encantadora simplicidade da canção.