segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

Religião: um outro nome para controle e busca de poder (e um risco para a democracia)


[Postagem atualizada em 04/07/2020]

Um dos personagens mais odiosos de todos os filmes a que já assisti é a Mrs. Carmody, de O nevoeiro (The Mist - direção de Frank Darabont, 2007), baseado no conto homônimo de Stephen King ¹. Uma parte de minha ojeriza por Mrs. Carmody deve-se, claro, ao magnífico desempenho da (pouco badalada) atriz Marcia Gay Harden (vale mencionar que em 2001 ela já havia sido premiada com um Oscar de coadjuvante por sua atuação em Pollock e indicada a outro, na mesma categoria, por seu papel em Sobre meninos e lobos, de 2003). Mais uma vez, aquela regra não-escrita do cinema e da dramaturgia prevaleceu: quando possível, o papel de vilão/vilã deve sempre ser dado ao/à melhor ator/atriz do elenco.

A outra parte - maior - de minha antipatia provém, contudo, daquilo que a personagem é: uma delirante e hidrófoba religiosa fanática.

Na narrativa escrita por King, a Sra. Carmody, dona de uma lojinha cheia de animais empalhados e objetos excêntricos, mistura seu fanatismo religioso ao curandeirismo e é descrita, sem qualquer sutileza, como uma bruxa (inclusive na aparência estereotipada):

"À claridade mortiça e lúgubre, ela parecia uma bruxa naquelas berrantes calças amarelas, na espalhafatosa blusa, com os braços pesados de chacoalhantes pulseiras de quinquilharia - cobre, casco de tartaruga, adamantina - e sua enorme bolsa. Seu rosto enrugado aparecia sulcado por fortes linhas verticais. O crespo cabelo grisalho se achatava sobre o couro cabeludo, amarrado por três prendedores e torcido na nuca. Sua boca era uma corda franzida".

No filme, a personagem tornou-se uma mulher de meia-idade, com vestes discretas - mas manteve a inseparável bolsa a tiracolo. Não há diferença significativa, contudo, entre as falas de Carmody no conto e na adaptação cinematográfica. E - o que mais importa para esta postagem - tanto o filme quanto o texto original conseguiram evidenciar bem os efeitos políticos causados por uma tal presença.

Uma fortíssima tempestade atinge uma região interiorana do estado do Maine. Após a tormenta, surge um insondável nevoeiro. Pessoas vão a um supermercado local em busca de suprimentos. E lá permanecem, aterrorizadas, pois da bruma misteriosa surgem criaturas horripilantes. Essa é a sinopse da história escrita por Stephen King em 1976, que afirmou gostar "do quê de filme B do conto".

Não bastasse toda a adversidade decorrente do aparecimento de seres medonhos vindos de outra dimensão, o grupo refugiado no supermercado ainda se depara com Mrs. Carmody...

"Não existe defesa contra a vontade de Deus!" - grita ela, em determinado momento - "Isto estava para vir. Eu vi os sinais. Aqui há gente que eu avisei, porém ninguém é mais cego do que aqueles que não querem ver."

É quando outro personagem, Mike Hatlen, vereador da cidade, intervém: "Afinal, o que quer dizer? O que você propõe?"

Ao que a religiosa tresloucada replica: "Propor? Propor? Ora estou propondo que se prepare para encontrar o seu Deus, Michael Hatlen - virou-se e olhou para todos nós - Preparem-se para o encontro com seu Deus!" 

Essa breve cena é particularmente significativa (está também no filme, com pequenas alterações). Mike Hatlen (como boa parte de nós, suficientemente habituado à convivência democrática contemporânea) acredita que, para resolver os problemas dentro de uma coletividade, o melhor método é apresentar propostas e discuti-las - mesmo que os problemas possuam tentáculos monstruosos. Mrs. Carmody, por sua vez, está pouco se lixando para os ritos democráticos. Mais do que isso: ela encarna a própria antipolítica.

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Em Deus não é grande: como a religião envenena tudo ², o jornalista e ensaísta Christopher Hitchens observou que

"O nível de intensidade flutua de acordo com o momento e o lugar, mas pode-se afirmar como verdade que a religião não se contenta, e no longo prazo não pode se contentar, com suas próprias alegações maravilhosas e sublimes garantias. Ela precisa tentar interferir na vida dos descrentes, ou hereges, ou adeptos de outros credos. Ela pode falar sobre a bem-aventurança do mundo vindouro, mas quer poder neste mundo aqui. E é de esperar que seja assim. Afinal, ela é totalmente criada pelo homem. E não tem a confiança sequer nas suas diversas pregações para permitir a coexistência entre diferentes credos [ou a coexistência com a ausência de credo, acrescento eu]".

Convido o(a) eventual leitor(a) a fazer uma reflexão simples junto comigo. Suponhamos que se acredite numa divindade com todos os predicados geralmente atribuídos ao deus abraâmico - onipotência, onipresença, onisciência. Suponhamos também que se acredite que essa divindade recompensa o bom agir do fiel, ainda que seja após a morte, e pune as más condutas (sem contar que a divindade pode, se for de sua vontade, interceder de pronto, a qualquer momento, diretamente, produzindo um milagre). Aceitando, portanto, essas "alegações maravilhosas e sublimes garantias", por que o crente ³ deveria se preocupar com infiéis ou com aqueles não tão fiéis assim? Basta que prossiga no bom agir e a divindade (repito: onipotente, onipresente, onisciente, que premia o bem, pune o mal e ainda realiza milagres vez ou outra) irá favorecê-lo. Pode-se seguir em paz e, principalmente, deixar os outros em paz, não?

Não.

Porque, sendo uma invenção humana (portanto, sujeita a erros), a religião não consegue mais ser tão persuasiva (já não são tantos os países onde esta possa ser imposta à força); mostra dificuldade para disfarçar suas (muitas) incongruências e contradições, cada vez mais gritantes à medida que suas justificações, promessas e supostas recompensas são confrontadas por uma outra práxis e por outros discursos (principalmente o científico), cujas explicações e soluções para os problemas reais a nossa volta costumam ser melhores do que as fornecidas pela prédica religiosa. Escusado dizer que a ciência também tem seus limites e comete sua própria cota de equívocos (mas que tipo de ser humano, em pleno século XXI, está disposto a negá-la in totum e tomar decisões sem qualquer lastro científico?). Dizendo de outro modo: a religião apresenta rachaduras em sua hegemonia; seu poder se enfraquece. E, por esse motivo, muitos de seus adeptos reagem, constrangendo e forçando o restante da sociedade a continuar conformado aos seus ditames, à sua cosmovisão. Então, já não se trata de enaltecer os bem-aventurados, mas de dominação e controle, seja por meio da jihad islâmica, seja repetindo sem parar "a Bíblia diz".

Antes de prosseguir, convém esclarecer a que estou me referindo quando uso o termo religião.

Chamo de religião não só os sistemas religiosos propriamente ditos, com suas doutrinas, rituais, locais de culto etc., mas também toda e qualquer crença em forças divinas, criadoras intencionais de tudo o que existe e preocupadas com a conduta dos indivíduos, merecendo por isso algum tipo de reverência, quando não adoração, louvor e obediência (ou temor). Também classifico como sendo de caráter religioso aquelas convicções baseadas na sensação de que existiria uma "energia" ou "princípio ordenador" inacessível ao escrutínio racional mas alcançável, talvez, através da contemplação mística ou outro meio "espiritual". Noutras palavras, o sujeito pode não seguir um sistema religioso ou frequentar uma igreja específica, mas se ele acredita num "ser superior", numa entidade sobrenatural responsável pelo arranjo do universo, essa crença (poupando, a meu ver, uma dispensável questão terminológica) deve ser chamada, simplesmente, de religiosa.  NOTA (1): Desde já este blogueiro declara que, a despeito de seu ateísmo, defende intransigentemente o direito das pessoas acreditarem naquilo que quiserem. A problemática surge, porém, quando, dentro de um regime democrático e numa república ciente de seu dever para com a laicidade do Estado, certo ideário religioso faz de tudo para impor-se, como estamos vendo acontecer neste momento, no Brasil. Esse ponto será retomado mais adiante.

Na sua coluna no jornal Folha de S. Paulo, publicada no último 23 de novembro, Vladimir Safatle não coloca panos quentes ao tratar da relação entre religião e política: "Nunca é demais lembrar como a democracia ocidental nasceu, entre outros, por meio do combate à religião". Segundo o filósofo e professor da USP, a democracia ocidental

"foi impulsionada pela criação de um espaço político no interior do qual a justificação do poder não seria mais alimentada por qualquer forma de crença em escolhas divinas, na qual o amparo produzido pelo discurso religioso não desempenharia mais papel nos modos de produção da coesão social. A democracia moderna, como gostava de acreditar Max Weber, seria assim solidária de um processo de desencantamento do mundo vindo da perda do poder unificador dos mitos teológico-religiosos na fundamentação das esferas sociais de valores (cultura, arte, política, economia, ciência, entre outros). Hoje, não é difícil perceber como esse projeto nunca foi completamente realizado. Há várias formas de regressão social periódica a assombrar o que conhecemos até hoje por democracia e uma delas é a regressão religiosa fundamentalista, independentemente de ela ocorrer na Turquia muçulmana, na Polônia católica ou no Brasil com seus evangélicos”.

Para o colunista, vários países (entre estes, o Brasil) falharam em "dar, a largas parcelas da população, algum sentido substantivo para a experiência de serem cidadãs e cidadãos de um estado laico". Esse contingente enorme de pessoas, ao contrário, ficou perdido entre a violência estatal e a exploração econômica. Tal cenário de desalento foi o terreno fértil para a proliferação religiosa de viés mais retrógrado. Na conclusão de seu texto, intitulado República fundamentalista, Safatle escreve:

"No começo dos anos 1970, o psicanalista Jacques Lacan podia dizer: ‘vocês ainda não têm ideia do que será o retorno da religião’. Ele podia dar declarações dessa natureza por perceber como a política moderna mobilizava os mesmos afetos do discurso religioso, como o desejo de amparo e a produção contínua do medo. Contra a religião, só haveria uma saída, mas ela não seria utilizada pelo discurso político. Pois, do ponto de vista da circulação dos afetos, só se quebra a força da religião pela afirmação do desamparo, ou seja, por meio da afirmação da recusa a todo amparo vindo de um Outro, como se do desamparo pudesse nascer uma certa coragem cuja consequência política maior seria a produção de sujeitos que não querem mais ser governados. Sujeitos que sabem que sua ausência de lugar natural não é uma falha que deve ser superada, mas uma condição para a produtividade da liberdade. Sujeitos que afirmam a contingência de sua existência e de seus caminhos. Mas sempre haverá um poder político a se alimentar dos nossos afetos mais regressivos e amedrontados”.

Voltemos rapidamente a O nevoeiro, de Stephen King.

À certa altura, após tantas horas de horror dentro e fora do supermercado, o narrador da história nota como um dos personagens tem o semblante envelhecido e infeliz.

"Ocorreu-me que a maioria de nós devia ter tal aparência. Menos a Sra. Carmody. Ela parecia de algum modo mais jovem e revitalizada. Era como se ela tivesse se encontrado... Aliás, era como se já tivesse conseguido. Como se... estivesse alimentado-se daquilo".

Aquela situação, cheia de pânico e medo, beneficiava justamente o fanatismo e o desvario religiosos. Outros dentro do estabelecimento passaram a dar ouvidos à Sra. Carmody (para eles, tornara-se impossível a "afirmação do desamparo", como diria Safatle). É quando o narrador pensa: "Bastava tornar aquela gente a única e maior força política no supermercado [e ficaria impossível dividir o mesmo espaço]. A ideia de que o maior e único grupo em nosso fechado sistema estava ouvindo sua arenga sobre os abismos do inferno e os sete frascos sendo abertos [referência ao livro do Apocalipse, cap. 15; vers. 7] produzia em mim uma terrível sensação de claustrofobia".

Para a religião (sobretudo para as igrejas e para os sistemas religiosos organizados), não basta a fé como escolha pessoal e direito individual. Mais cedo ou mais tarde - principalmente em períodos e lugares em que o medo e a aflição passam a ser preponderantes entre a população -, a religião buscará controlar e coagir todo o corpo social, tentando fazer com que seus despautérios (no caso do conto de Stephen King, sacrifícios humanos para acalmar a ira de Deus, representada pelos monstros do nevoeiro, como acreditava a Sra. Carmody) tornem-se as normas gerais.

OK, OK, O nevoeiro é uma narrativa ficcional, uma fantasia de terror, e (pelo menos no Ocidente) não temos visto por aí nenhuma liderança religiosa fazendo exigências como as da Sra. Carmody.

Pensemos, contudo, no incansável movimento criacionista nos EUA, pressionando para que a história mítica do Gênesis divida, no ambiente escolar, o mesmo espaço com a teoria da evolução por seleção natural (e, portanto, tenham a mesma validade explicativa). Ou na defesa da segregação (e mesmo perseguição) de determinadas pessoas (LGBTQs, por exemplo) porque "a Bíblia os condena". Ou, falando especificamente do nosso país, consideremos o possível retrocesso da legislação, representado pelo projeto de lei que visa a criação do Estatuto do Nascituro (defendido pela futura ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos), que passaria a considerar criminosas as mulheres que decidissem interromper uma gravidez decorrente de um estupro, além de não resguardar outras tantas do risco de morrerem durante o parto. NOTA (2): O caso dos direitos sexuais e reprodutivos (entre estes, o direito ao aborto) é um tema particularmente elucidativo do quanto a mentalidade religiosa costuma ser prejudicial para as democracias. Por ser um assunto que necessita ser abordado detidamente, deixarei-o para uma postagem a ser publicada mais adiante. 

As religiões estão sempre a postos para impor o modo como todos devem agir e pensar (e não só os seus seguidores). Talvez o(a) eventual leitor(a) não considere os exemplos citados no parágrafo anterior suficientemente absurdos. Mas julgo não estar sendo receoso em excesso quando digo que a absurdez poderá, rapidamente, chegar a níveis ainda mais insuportáveis para muitos de nós (e não falo só dos ateus). Basta tornar essa gente a única e maior força política (vide as teocracias espalhadas pelo mundo, em especial nos países muçulmanos).

E já que mencionamos o Brasil, convém refletir um pouco sobre a situação com a qual temos de lidar por aqui.

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Um bom retrato do atual cenário político, contaminado pela hipertrofia religiosa, está no livro Em nome de quem? A bancada evangélica e seu projeto de poder, de Andrea Dip .

Publicado este ano, Em nome de quem? é resultado de uma extensa reportagem (a autora integra a equipe da Agência Pública), acrescida de entrevistas e depoimentos. E foi num destes, o do professor e psicanalista Marco Fernandes, que encontrei uma boa explicação para o crescimento e a força das igrejas neopentecostais entre a população de baixa renda:

"O Pentecostalismo surge na favela" - diz ele - "e já nasce com uma tecnologia religiosa que funciona para as classes populares. As pessoas encontram ali um pronto-socorro de saúde mental. Quantas vezes eu ouvi: 'Ah, eu estava mal, entrei na igrejinha da esquina e melhorei!' [Na sociedade atual] Você não tem espaço para ser acolhido, para ter um suporte, escuta, alegria, beleza. E mais: a vida está tão caótica, precarizada, que é impossível as pessoas não terem desejo de ter uma ordem na vida. Algo que centralize, que organize, que ordene. Evidentemente, com isso vem um pacote de conservadorismos. Mas eu costumo dizer que essas igrejas instituem um 'micro-Estado precário de bem-estar social' ".

Embora, a meu ver, esses "pronto-socorros de saúde mental" acabarão, no médio e longo prazos, comprometendo a capacidade de pensar dos indivíduos e a "ordem" defendida pela fé costuma ser tão ou mais hipócrita e ilusória do que outros modelos de "ordem", consigo ver claramente como ir à(s) igreja(s) evangélica(s) local(is) - bem mais "dinâmica(s)", sem aquele ritmo fossilizado do catolicismo - torna-se quase irresistível para o pobre. E isto é crucial: os frequentadores desses espaços, de fato (como a maioria das pessoas, crentes ou não, deve-se admitir), buscam alguém que os escute (e não serei maldoso dizendo que, para isso, basta que eles não se esqueçam de colocar o dinheiro na sacolinha...)

Fernandes também

"acredita que outros fatores entrem nessa equação, como a falta de espaços de cultura e lazer nas comunidades: 'Certa vez, uma amiga disse que a irmã passou a frequentar a Igreja Universal perto da casa delas. Indignada, ela foi perguntar à irmã por que estava indo naquele lugar; disse que eram pilantras, enganavam as pessoas, tiravam dinheiro do povo. A irmã então respondeu: você acha que não sei disso? Mas aqui, aos domingos, não tem nada para fazer. Eu não aguento mais ficar em casa assistindo ao Faustão. Na igreja, eu encontro gente, canto, faço amizade, é uma festa! Lá ainda tem as irmãs que olham meu filho, eu vou mesmo!' Você imagina a quantidade de gente que vai pela primeira vez à igreja por causa disso?"

Contudo, o trabalho desses estabelecimentos e de seus líderes e acólitos não se restringe a fornecer (questionáveis) apoio e entretenimento espirituais.

"No Congresso Nacional brasileiro" - escreve Andrea Dip -, "a tendência seguiu esse aumento [de evangélicos entre a população]: a antropóloga da UFF Christina Vital diz que existem hoje entre oitenta e noventa parlamentares evangélicos vinculados à FPE [Frente Parlamentar Evangélica] (o número varia devido aos suplentes), mais do que o dobro de quando foi criada em 2003. O número de pastores candidatos também cresceu: 'Nós tivemos uma situação singular nesse pleito, com 40% mais pastores se candidatando em 2014', aponta".

Quando atualizamos pelo menos um desses dados (uma vez que o livro foi publicado antes do resultado das eleições deste ano), vemos que a defasagem é insignificante: após outubro, a Frente Parlamentar Evangélica chegou a 91 integrantes (a chamada Bancada Evangélica ou Bancada da Bíblia é ainda mais numerosa, pois inclui outros deputados e senadores não vinculados formalmente à FPE, mas que quase sempre defendem a mesma agenda). Isso sem mencionar o grande número de vereadores em centenas de municípios, além de titulares do executivo (bem como seus secretários/ministros), alçados aos respectivos cargos públicos graças, parcial ou inteiramente, a ostensiva exibição de suas crenças religiosas (genuínas ou postiças, vale acrescentar) percebidas como "as corretas" pelo eleitorado que as compartilha.  Não tenho dúvida de que se trata de um projeto de poder.

Alguém pode perguntar: Mas qual o problema de haver representantes desse segmento religioso na política institucional, já que, afinal de contas, de acordo com dados do último censo do IBGE, os evangélicos são quase 1/4 da população brasileira? Foram eleitos democraticamente, não seriam legítimos?

Apresento, então, duas objeções à atuação dessa categoria de políticos: o menosprezo deles em relação ao princípio da laicidade do Estado e a incapacidade deles de compreender que a democracia, se autêntica, deve procurar conjugar, da melhor forma possível, os interesses da maioria com as reivindicações das minorias.

O princípio do Estado laico é basilar para o regime democrático (clique aqui para uma definição bem didática do conceito de Estado laico). Muitas pessoas religiosas não entendem que só a defesa desse princípio proporciona a liberdade de credo religioso para todos (e, claro, a liberdade de não ter credo algum). Se a laicidade fosse levada a sério por aqui, praticantes do candomblé e umbandistas, por exemplo, poderiam ser atendidos com respeito pelas autoridades policiais quando fossem denunciar a destruição de seus terreiros e de seus objetos sagrados por parte de bandidos alegadamente evangélicos. Caso o Estado brasileiro prezasse a laicidade, o incitamento ao ódio pelas religiões de matriz africana promovidos frequentemente nos programas religiosos evangélicos que inundam a TV aberta seria coibido, por exemplo. Por falar nisso, os canais de TV, bem como as estações de rádio, são concessões públicas e, pelo menos em parte, deveriam atender os interesses da população. Em que sentido as várias horas diárias de proselitismo evangélico em algumas emissoras atendem a esses interesses? A democracia também sofre um abalo tremendo quando a pauta religiosa, ignorando o dever do agente público com a manutenção da laicidade, atenta contra direitos individuais. Portanto, sem meias-palavras, oponho-me a presença de indivíduos que, no legislativo e no executivo, concedem maior importância às suas crenças religiosas particulares do que ao princípio do Estado laico.

O entendimento de que uma democracia digna desse nome não pode permitir o atropelamento de demandas das minorias em razão da suposta vontade da maioria é outro preceito fundamental para relações políticas civilizadas (a esse respeito, recomendo a leitura do ótimo artigo da professora Maíra Zapater). Mas a quase totalidade dos parlamentares alinhados na Bancada da Bíblia não dão a mínima para isso. Sua visão arraigadamente fundamentalista inviabiliza até mesmo o simples debate de propostas. E fico me perguntando onde vamos parar.

Na introdução de Em nome de quem?, a jornalista Andrea Dip observa que uma onda reacionária vem se alastrando pelo mundo, ameaçando "direitos, pensamento crítico e pluralidade de ideias", com os discursos de ódio sendo despudoradamente despejados no espaço público. Para Dip, essa onda reacionária adquire "características próprias" no Brasil:

"Uma delas vem da aproximação entre uma direita orgulhosa de si e a Igreja Evangélica, unidas pelo medo de um inimigo que vem para 'destruir a família tradicional', os 'valores cristãos', o status quo e que, por vezes, sem lastro na realidade, toma rosto no comunismo, no feminismo, no movimento negro, na comunidade LGBTQ e em qualquer participação social que peça por igualdade de direitos e por discussão mais profunda sobre seus papéis na sociedade".
Numa democracia saudável, devemos nos esforçar pelo entendimento, pela tentativa de construção de pactos e do estabelecimento de acordos. Mas se o reacionarismo avançar, é preciso contra-atacar. Sem pestanejar. Por mais conformista e frouxo que seja, não estou disposto a aceitar quietamente as ações cada vez mais escancaradas de controle e dominação política efetuadas por religiosos, até porque, caso seu projeto de poder seja bem-sucedido, pode colocar em risco o tipo de existência que defendo.

É como aquela frase vista por aí em alguns muros e perfis das mídias sociais: "Se fere minha existência, serei resistência".
__________
¹ KING, Stephen. O nevoeiro. In: ___________. Tripulação de esqueletos. 2 ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013. p. 20-167

² HITCHENS, Chistopher. Deus não é grande: como a religião envenena tudo. 2 ed. São Paulo: Globo Livros, 2016 [Tradução de George Schlesinger]

³ Mais uma vez, reproduzo aqui a mesma explicação dada em outras postagens, para evitar mal-entendidos:  quando uso o termo crente tenho em mente o seguinte significado: "aquele que acredita  em uma (ou várias) divindade(s)", em oposição ao termo descrente ou, simplesmente, ateu ("aquele que não acredita em nenhuma"). Assim, crente, neste contexto, designa todos os que acreditam em Deus, independentemente da denominação religiosa pela qual têm afinidade ou da qual fazem parte.

DIP, Andrea. Em nome de quem? A bancada evangélica e seu projeto de poder. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.

BG de Hoje

Os veteranos do FAITH NO MORE provando por que nunca deixaram de ser uma das bandas mais bacanas das últimas três décadas: Separation Anxiety.