"Em meio à onda anti-intelectualista, não causa surpresa que a lógica do pensamento passa a trabalhar com categorias pré-modernas como o 'messianismo' e a 'peste'. O messianismo identifica-se com a construção de heróis e salvadores da pátria (seres diferenciados, bravos e destemidos, mas que não são necessariamente cultos ou inteligentes, nem corajosos, mas usam uma performance política em que gritar e esbravejar provocam efeitos populistas). A lógica da peste identifica cada um dos problemas brasileiros como um mal indeterminado, em sua extensão, em suas formas e em suas causas, mas tangível e mortal, contra o qual só Deus ou pessoas iluminadas podem resolver. Só há 'messianismo' e 'peste', fenômenos típicos de um conservadorismo carente de reflexão, onde desaparece o saber e a educação".
Marcia Tiburi e Rubens Casara - Ódio à inteligência: sobre o anti-intelectualismo
Uma das frases mais famosas de Jean-Jacques Rousseau é "prefiro ser um homem de paradoxos que um homem de preconceitos". Tenho que admitir: a máxima tem lá seu charme. Porém, quando olhada de pertinho... Pois para demonstrar um paradoxo, Rousseau, a meu ver, lançou mão de um preconceito no seu Discurso sobre as ciências e as artes.
Tentarei esclarecer isso logo, logo. No momento, contudo, gostaria de dividir com o(a) eventual leitor(a) a birra que me dá um certo cacoete hermenêutico, manifestado por um considerável número de comentadores e estudiosos, diante de textos filosóficos.
Pego para ler Obra aberta, de Umberto Eco, e A escritura e a diferença, de Jacques Derrida, por exemplo. Consigo compreender satisfatoriamente o primeiro livro; não entendo bulhufas do segundo. Derrida praticava uma escrita desnecessariamente hermética; Eco, não. Seja como for, se interpreto determinada sentença do pensador italiano seguindo diretamente o que está escrito - sentença esta bastante precisa, sintática e semanticamente -, corro o risco de topar com alguém que me advertirá: "Não foi isso que ele quis dizer". Como assim? Está lá escrito, qualquer um pode entender! Por outro lado, se tal situação acontecesse quando me arriscasse a decifrar algo produzido por uma figura como Derrida, eu aceitaria de bom grado a admoestação. Até agradeceria, se logo em seguida viesse a ajuda para sacar o que o filósofo franco-argelino está argumentando naquele seu aranzel.
Eis o busílis:
Veja o caso de Jean-Jacques Rousseau.
Está sempre cercado de "protetores" por ter sido um grande defensor da igualdade e, principalmente, da liberdade. É uma peça-chave na história do pensamento político ocidental e todos reconhecemos isso. Mas tem sempre alguém da turma do "não-foi-isso-o-que-ele-quis-dizer" para "corrigir" interpretações "erradas" das suas palavras, mesmo quando o sentido delas é cristalino.
Bem, para este blogueiro, é gritante a visão anti-intelectualista do escritor genebrino, sobretudo em seu primeiro grande trabalho, o Discurso sobre as ciências e as artes. Como o tema central da postagem de hoje é justamente o anti-intelectualismo, falar um pouquinho desse texto (elaborado em 1749) vale a pena. E se a maneira como julgo Rousseau é resultado de "má interpretação" de suas palavras, paciência.
Antes de mais nada, convém darmos uma definição de anti-intelectualismo. NOTA: Talvez fosse oportuno distinguir irracionalismo, anti-racionalismo e anti-intelectualismo; contudo, a tarefa tornaria a postagem muito longa (meus escritos já são habitualmente beeem compridos) e tiraria a ênfase que quero dar à atmosfera anti-intelectual na qual estamos imersos atualmente. Assim que possível, publicarei no blog um texto cujo único objetivo será fazer a distinção desses termos.
Utilizemos uma conceituação bem simples, disponível no verbete da Wikipédia:
Eu acrescentaria que a aversão se estende aos resultados da atividade intelectual, como por exemplo, livros, artigos científicos, programas de ensino, espetáculos musicais ou teatrais, obras de arte, etc.
Penso que o anti-intelectualismo tornou-se um forte traço de nossa época, não obstante os índices de escolaridade atuais, os mais altos da história. No Brasil, nesse gravíssimo momento de tensão política, as posturas anti-intelectuais são algo patente. Mas o anti-intelectualismo não é um evento novo. Periodicamente, o estatuto do intelectual e seu papel dentro da sociedade são alvo de ataque. Não é preciso recuar muito no tempo. Olhando apenas para o século passado, sabemos que a caça às bruxas macarthista, realizada nos EUA no início da Guerra Fria, não poupou escritores e outros artistas, perseguidos com a desculpa de que "promoviam o comunismo". Notaremos também que muitos estudantes, após o Maio de 68, passaram a repudiar o saber teórico, visto por eles como inerentemente conservador e submisso ao poder. Ao anti-intelectualismo, acorreram, de tempos em tempos, tanto a direita quanto a esquerda. Entretanto, o fenômeno se torna particularmente funesto quando o identificamos como um dos elementos constituintes de influxos políticos de viés autoritário (e até mesmo totalitário). Convém lembrar que o fascismo e sua variante, o nazismo, eram fortemente anti-intelectualistas, assim como o stalinismo e o maoismo (sobretudo a partir da Revolução Cultural Chinesa).
Na definição da Wikipédia reproduzida acima, vimos que uma das acusações dirigidas aos intelectuais por parte de seus detratores é considerá-los parasitas da sociedade. A esse respeito, atentemos para esta passagem localizada na segunda parte do Discurso sobre as ciências e as artes ¹:
OK, OK. Sei que o próprio Jean-Jacques Rousseau admitia que o Discurso sobre as ciências e as artes foi mal escrito ². Sei também que ele não defendia o fechamento das universidades, nem acreditava que a ciência é uma maldição que se abateu sobre o planeta, nem pregava a morte a pauladas dos artistas e das pessoas cultas. Não obstante, acho difícil não atestar que o excerto acima está carregado do mais genuíno anti-intelectualismo. Para demonstrar um paradoxo - como o restabelecimento das ciências e das artes (durante o Iluminismo) não contribuiu para aprimorar os costumes -, o autor lançou mão de um preconceito - em geral, os praticantes das ciências e os artistas não têm como preocupação fundamental fomentar a virtude, dedicando-se a atividades supérfluas para a boa organização da sociedade, e por isso a contribuição não se deu. A passagem acima reproduzida serve para ilustrar um ponto de vista muito difundido em meio ao senso comum, tanto o da época quanto o de hoje, do qual Rousseau não conseguiu se desvencilhar.
A pressuposição de que a atividade intelectual e a criação artística são pura perda de tempo se não forem convertidas em algo "útil" acompanha a humanidade há milênios - com a ideia de utilidade variando de época para época, de cultura para cultura (no caso da nossa, útil será o mesmo que lucrativo). Do mesmo modo, é antiga a crença na futilidade da erudição, ainda mais quando confrontada com a premência do trabalho que garante o sustento. Para o anti-intelectualista, de ontem e de hoje, os "letrados ociosos" que "devoram a substância do Estado" são um problema. Qual o corolário? Se ninguém precisa deles, diz o anti-intelectualista, não há necessidade de mantê-los.
Passemos a outro trecho do livro, agora retirado da primeira parte:
A virtude (ou seja, a retidão moral desejável nos "homens de bem", segundo Rousseau) é corrompida à medida que se avança intelectualmente. Importante notar que essa afirmação vai ao encontro da concepção de natureza humana defendida pelo pensador genebrino: o ser humano vai se degenerando à medida que se sociabiliza. A visão preconceituosa do saber intelectualizado - essa "vã curiosidade" que causa "males" - tem forte relação com a tradição cristã de considerar o orgulho do conhecimento a causa do pecado original. O anti-intelectualista dirá que o incremento científico e o apuro artístico provocam a fuga da virtude e, portanto, os intelectuais e os artistas são imorais.
Seria possível fazer desaparecer ou, ao menos, atenuar esse preconceito?
Em um breve artigo publicado na revista CULT em outubro de 2016 (Ódio à inteligência: sobre o anti-intelectualismo), a filósofa Marcia Tiburi e o jurista Rubens Casara escreveram:
Este blogueiro poderia dar outros exemplos, como o cancelamento de uma exposição de arte após protestos de fanáticos raivosos insuflados por uma milícia ou, recentemente, o pedido (da parte dos pais e mães) para proibir, em uma escola, a leitura de um livro infantojuvenil considerado "comunista". Importa destacar, contudo, que estamos correndo o risco, como acertadamente sugerem Tiburi e Casara, de que o anti-intelectualismo se torne institucionalmente cada vez mais aceito e praticado, quem sabe até incentivado por representantes do poder público. A agressividade obscurantista e, pior ainda, intimidatória de parte significativa dos apoiadores de Jair Bolsonaro, direcionada a jornalistas, literatos, artistas e professores universitários que têm posicionamento contrário ao deles, é bastante preocupante, dado que o deputado é favorito para vencer as eleições presidenciais neste segundo turno.
Tiburi e Casara observam que, na lógica limitada do anti-intelectualista, existe, de um lado, o "messias" (ou seja, o salvador da pátria infalível) e do outro, "a peste" (ou seja, processos, eventos, organismos e indivíduos que precisam ser combatidos, aniquilados, sem pestanejar ou parar para pensar). Dentro dessa lógica, não cabem a complexidade e as contradições inerentes ao real, tudo é preto no branco, não há espaço para a reflexão, os intelectuais são supérfluos, não têm lugar. E, mais grave: para os milhares de anti-intelectualistas que estão emergindo, os intelectuais, mesmo tão metidos a inteligentes, não sabem lidar com "a peste" (alguns, até, estão contaminados por ela...),
Outro dia, num dos bares que frequento aqui em Belo Horizonte, ouvi invectivas a Paulo Freire na mesa ao lado. Serei franco com o(a) eventual leitor(a): pessoalmente, me desagrada uma certa hagiolatria que costuma cercar o educador recifense, expressa por alguns de seus estudiosos. Nem por isso contesto a grande relevância de sua obra para a pedagogia e para a filosofia.
Da mesa vinham frases como "Paulo Freire é que trouxe esse comunismo todo pra dentro das escolas"; "Tem muita escola aí que é pura doutrinação esquerdista. Culpa desse Paulo Freire". Não me dei ao trabalho de apurar quem eram (além do mais, seria bem grosseiro da minha parte me intrometer na conversa alheia). Sou capaz de apostar, porém, que não eram professores (se fossem, saberiam que dentro de uma escola há tantos embaraços e reveses mais urgentes para serem resolvidos que ninguém tem tempo para uma suposta doutrinação esquerdista). Também apostaria que jamais leram uma página sequer dos livros de Freire.
Falando nisso, nesse mesmo bar, algumas semanas depois, escutei declaração semelhante de um conhecido meu, curiosamente, filho de um professora (aposentada) de escola pública. Quando perguntei se já lera algo de Paulo Freire, a resposta oblíqua me fez ver que ele (tal como as pessoas do outro dia) apenas reproduzia a ladainha rasteira, baseada em memes de mídias sociais e posts de veracidade duvidosa do WhatsApp, empregada nas disputas ideológicas desse nosso mundinho digital contemporâneo.
Eu ainda bebo habitualmente nesse e em outros dois bares próximos ao lugar onde moro. A ar está pesado em todos eles, pelo menos para mim. Botequins, claro, nunca foram espaços de conferências acadêmicas. Mas já foram pelo menos mais acolhedores a quem, num bate-papo acompanhado de umas geladas, se dispunha a apresentar fatos, corrigir informações falsas. Também não havia tantos esgares e olhares de fastio ou raiva mal disfarçada quando se tentava levar a conversa para temas menos ordinários.
O que tenho escutado nos últimos meses é um vozerio de indivíduos sem qualquer disposição para ouvir o outro, a dizer (e, as vezes, berrar) que "o coro vai comer", "esse povo vai entrar na linha", repetindo bordões cujo teor é marcado por uma completa ausência de empatia, por uma falta de preocupação social e senso de coletividade, revelando uma incultura que não conhece limites, a exigir, entretanto, que lhes prestemos continência.
O escritor Isaac Asimov disse certa vez: "Anti-intellectualism has been a constant thread winding his way through our political and cultural life, nurtured by the false notion that democracy means that 'my ignorance is just as good as your knowledge' " ["o anti-intelectualismo tem sido uma corrente constante insinuando-se através de nossa vida política e cultural, alimentado pela falsa noção de que democracia significa que 'minha ignorância é simplesmente tão boa quanto o seu conhecimento' "].
Infelizmente, temo não se tratar mais de algo que se insinua, que se infiltra paulatinamente. Acho que os ignorantes assumiram o controle de vez.
E todos iremos perder.
Antes de encerrar, gostaria de fazer notar ao(à) eventual leitor(a) que a candidatura Bolsonaro, pelo que representa de obscurantismo e de ameaça ao regime democrático e à liberdade (inclusive a de expressão), tem sido repelida por muitos intelectuais e pessoas ligadas ao objeto que melhor nos representa - o livro.
Pode-se verificar o veto ao candidato do PSL na declaração dos escritores que representaram o Brasil na Feira de Frankfurt desse ano; no posicionamento de Luiz Schwarcz, presidente da Companhia das Letras, uma das mais prestigiadas e importantes empresas livreiras do país; e no Manifesto do Livro, assinado por diversos escritores e escritoras, editores e editoras.
[Atualização: 20/10/18]: Esqueci de citar aqui o sensacional texto-desabafo (Isto não é um poema) do cantor, compositor e poeta Arnaldo Antunes, também contrário à candidatura mencionada acima. Faço-o agora.
Eis o busílis:
- Muitas vezes, o filósofo não está interessado em complicar e só quis dizer aquilo mesmo que está lá no seu texto (sem mistério nenhum, sem nada de enigmático). Não é preciso uma super capacidade exegética para entender o sentido do que foi escrito. (Isso vale para os autores que prezam a clareza do texto, não os Derridas da vida)
- Todavia, muitas vezes também - porque se admira aquele pensador ou porque algumas de suas ideias são caras ao comentarista/estudioso -, toma-se um cuidado excessivo para "protegê-lo" das "más interpretações", não raro atribuindo maior profundidade ou complexidade a perspectivas do autor que nada têm de profundas ou complexas (e, olha lá, não estou afirmando que só tem valor o que é profundo e complexo...)
Veja o caso de Jean-Jacques Rousseau.
Está sempre cercado de "protetores" por ter sido um grande defensor da igualdade e, principalmente, da liberdade. É uma peça-chave na história do pensamento político ocidental e todos reconhecemos isso. Mas tem sempre alguém da turma do "não-foi-isso-o-que-ele-quis-dizer" para "corrigir" interpretações "erradas" das suas palavras, mesmo quando o sentido delas é cristalino.
Bem, para este blogueiro, é gritante a visão anti-intelectualista do escritor genebrino, sobretudo em seu primeiro grande trabalho, o Discurso sobre as ciências e as artes. Como o tema central da postagem de hoje é justamente o anti-intelectualismo, falar um pouquinho desse texto (elaborado em 1749) vale a pena. E se a maneira como julgo Rousseau é resultado de "má interpretação" de suas palavras, paciência.
Antes de mais nada, convém darmos uma definição de anti-intelectualismo. NOTA: Talvez fosse oportuno distinguir irracionalismo, anti-racionalismo e anti-intelectualismo; contudo, a tarefa tornaria a postagem muito longa (meus escritos já são habitualmente beeem compridos) e tiraria a ênfase que quero dar à atmosfera anti-intelectual na qual estamos imersos atualmente. Assim que possível, publicarei no blog um texto cujo único objetivo será fazer a distinção desses termos.
Utilizemos uma conceituação bem simples, disponível no verbete da Wikipédia:
"Anti-intelectualismo descreve um sentimento de hostilidade em relação a, ou suspeição de, intelectuais e seus objetos de pesquisa. Isto pode ser expresso de várias formas, tais como ataques aos méritos da ciência, educação, arte e literatura"
Eu acrescentaria que a aversão se estende aos resultados da atividade intelectual, como por exemplo, livros, artigos científicos, programas de ensino, espetáculos musicais ou teatrais, obras de arte, etc.
"Entre as suas motivações mais comuns" - continua o verbete -, "podemos enumerar: ressentimento de pessoas pouco instruídas contra eruditos; hostilidade em relação ao trabalho realizado pelos intelectuais, como educação, pesquisa, crítica social e cultural, literatura; acusação de parasitismo social (os intelectuais não teriam uma 'função' econômica na sociedade, sendo esta última compreendida, portanto, de maneira organicista); acusações de subversão e morbidez".
Penso que o anti-intelectualismo tornou-se um forte traço de nossa época, não obstante os índices de escolaridade atuais, os mais altos da história. No Brasil, nesse gravíssimo momento de tensão política, as posturas anti-intelectuais são algo patente. Mas o anti-intelectualismo não é um evento novo. Periodicamente, o estatuto do intelectual e seu papel dentro da sociedade são alvo de ataque. Não é preciso recuar muito no tempo. Olhando apenas para o século passado, sabemos que a caça às bruxas macarthista, realizada nos EUA no início da Guerra Fria, não poupou escritores e outros artistas, perseguidos com a desculpa de que "promoviam o comunismo". Notaremos também que muitos estudantes, após o Maio de 68, passaram a repudiar o saber teórico, visto por eles como inerentemente conservador e submisso ao poder. Ao anti-intelectualismo, acorreram, de tempos em tempos, tanto a direita quanto a esquerda. Entretanto, o fenômeno se torna particularmente funesto quando o identificamos como um dos elementos constituintes de influxos políticos de viés autoritário (e até mesmo totalitário). Convém lembrar que o fascismo e sua variante, o nazismo, eram fortemente anti-intelectualistas, assim como o stalinismo e o maoismo (sobretudo a partir da Revolução Cultural Chinesa).
Na definição da Wikipédia reproduzida acima, vimos que uma das acusações dirigidas aos intelectuais por parte de seus detratores é considerá-los parasitas da sociedade. A esse respeito, atentemos para esta passagem localizada na segunda parte do Discurso sobre as ciências e as artes ¹:
"Se nossas ciências são inúteis no objeto que se propõem [o encontro da verdade, de acordo com Rousseau], são ainda mais perigosas pelos efeitos que produzem. Nascidas da ociosidade, por seu turno a nutrem, e a irreparável perda de tempo é o primeiro prejuízo que determinam forçosamente na sociedade. Na política, como na moral, é um grande mal não se fazer de algum modo o bem e todo cidadão inútil pode ser considerado um homem pernicioso. [A seguir, Rousseau faz uma série de alusões a alguns pensadores e homens de ciência, entre estes Newton e Leibniz - importante notar que, no século XVIII, filosofia e ciência não eram ainda reconhecidos como ramos distintos do conhecimento e o termo filósofo designava também o que hoje chamamos de cientista] Respondei-me, pois, filósofos ilustres, vós por intermédio de quem sabemos por que razões os corpos se atraem no vácuo; quais são, nas revoluções dos planetas, as relações entre as áreas percorridas em tempos iguais; quais as curvas que têm pontos conjugados, pontos de inflexão e de retrocesso; como o homem vê tudo em Deus; como, sem comunicação, se correspondem a alma e o corpo, tal como o fariam dois relógios; quais os astros que podem ser habitados; quais os insetos que se reproduzem de modo extraordinário - respondei-me, repito, vós de quem recebemos tantos conhecimentos sublimes, se não nos tivésseis nunca ensinado tais coisas, seríamos com isso menos numerosos, menos bem governados, menos temíveis, menos florescentes, ou mais perversos? Reconhecei, pois, a pouca importância de vossas produções e, se o trabalho dos mais esclarecidos de nossos sábios e de nossos melhores cidadãos nos proporciona tão parca utilidade, dizei-nos o que devemos pensar dessa chusma de escritores obscuros e de letrados ociosos que, em pura perda, devoram a substância do Estado".
OK, OK. Sei que o próprio Jean-Jacques Rousseau admitia que o Discurso sobre as ciências e as artes foi mal escrito ². Sei também que ele não defendia o fechamento das universidades, nem acreditava que a ciência é uma maldição que se abateu sobre o planeta, nem pregava a morte a pauladas dos artistas e das pessoas cultas. Não obstante, acho difícil não atestar que o excerto acima está carregado do mais genuíno anti-intelectualismo. Para demonstrar um paradoxo - como o restabelecimento das ciências e das artes (durante o Iluminismo) não contribuiu para aprimorar os costumes -, o autor lançou mão de um preconceito - em geral, os praticantes das ciências e os artistas não têm como preocupação fundamental fomentar a virtude, dedicando-se a atividades supérfluas para a boa organização da sociedade, e por isso a contribuição não se deu. A passagem acima reproduzida serve para ilustrar um ponto de vista muito difundido em meio ao senso comum, tanto o da época quanto o de hoje, do qual Rousseau não conseguiu se desvencilhar.
A pressuposição de que a atividade intelectual e a criação artística são pura perda de tempo se não forem convertidas em algo "útil" acompanha a humanidade há milênios - com a ideia de utilidade variando de época para época, de cultura para cultura (no caso da nossa, útil será o mesmo que lucrativo). Do mesmo modo, é antiga a crença na futilidade da erudição, ainda mais quando confrontada com a premência do trabalho que garante o sustento. Para o anti-intelectualista, de ontem e de hoje, os "letrados ociosos" que "devoram a substância do Estado" são um problema. Qual o corolário? Se ninguém precisa deles, diz o anti-intelectualista, não há necessidade de mantê-los.
Passemos a outro trecho do livro, agora retirado da primeira parte:
"Onde não existe nenhum efeito não há nenhuma causa a procurar; nesse ponto, porém, o efeito é certo, a depravação é real, e nossas almas se corromperam à medida que nossas ciências e nossas artes avançaram no sentido da perfeição. Dir-se-á ser uma infelicidade própria de nossa época? Não, senhores; os males causados por nossa vã curiosidade são tão velhos quanto o mundo. A elevação e o abaixamento cotidianos das águas do oceano não foram mais regularmente submetidos ao curso do astro que nos ilumina durante a noite quanto a sorte dos costumes e da probidade aos progressos das ciências e das artes. Viu-se a virtude fugir à medida que sua luz se elevava no nosso horizonte e observou-se o mesmo fenômeno em todos os tempos e em todos os lugares"
A virtude (ou seja, a retidão moral desejável nos "homens de bem", segundo Rousseau) é corrompida à medida que se avança intelectualmente. Importante notar que essa afirmação vai ao encontro da concepção de natureza humana defendida pelo pensador genebrino: o ser humano vai se degenerando à medida que se sociabiliza. A visão preconceituosa do saber intelectualizado - essa "vã curiosidade" que causa "males" - tem forte relação com a tradição cristã de considerar o orgulho do conhecimento a causa do pecado original. O anti-intelectualista dirá que o incremento científico e o apuro artístico provocam a fuga da virtude e, portanto, os intelectuais e os artistas são imorais.
Seria possível fazer desaparecer ou, ao menos, atenuar esse preconceito?
. . . . . . .
Em um breve artigo publicado na revista CULT em outubro de 2016 (Ódio à inteligência: sobre o anti-intelectualismo), a filósofa Marcia Tiburi e o jurista Rubens Casara escreveram:
"Há, dividindo espaço com opressões próprias ao campo do saber, um estranho ódio ao saber em sua forma crítica e desconstrutiva. Um ódio que se relaciona com a ameaça libertária do saber, um saber capaz de desmistificar, de contrastar certezas e de desvelar a ignorância que serve de base para todos os preconceitos. O pensamento e a ousadia intelectual tornaram-se insuportáveis para muitas pessoas chegando a um nível institucional e, não raro, acabam excluídos ou mesmo criminalizados.
Diversos exemplos de anti-intelectualismo podem ser observados na sociedade brasileira. Desde a caricata presença do ator Alexandre Frota (menos pelo que ele é, mas sobretudo pelo que ele representa) como formulador de políticas públicas do Ministério da Educação [Frota foi recebido pelo então titular da pasta do MEC, Mendonça Filho, em 25/05/2016] ao projeto repleto de ideologia (e mais precisamente: da ideologia, de viés autoritário, da 'negação do saber') da 'Escola sem partido'. Do silêncio em torno da exclusão de disciplinas (filosofia, sociologia, artes, etc.) do ensino médio (MP 746) à expressiva votação de candidatos que apostam no uso da força, em detrimento do conhecimento, como resposta aos mais variados problemas sociais. Do descaso com a educação (consagrado na PEC 241) [depois PEC 55, quando passou da Câmara dos Deputados para o Senado, e virou a Emenda Constitucional nº 95, estabelecendo um teto de gastos públicos para os próximos 20 anos, afetando áreas como saúde e educação] ao tratamento conferido aos professores em todo Brasil [...]".
Este blogueiro poderia dar outros exemplos, como o cancelamento de uma exposição de arte após protestos de fanáticos raivosos insuflados por uma milícia ou, recentemente, o pedido (da parte dos pais e mães) para proibir, em uma escola, a leitura de um livro infantojuvenil considerado "comunista". Importa destacar, contudo, que estamos correndo o risco, como acertadamente sugerem Tiburi e Casara, de que o anti-intelectualismo se torne institucionalmente cada vez mais aceito e praticado, quem sabe até incentivado por representantes do poder público. A agressividade obscurantista e, pior ainda, intimidatória de parte significativa dos apoiadores de Jair Bolsonaro, direcionada a jornalistas, literatos, artistas e professores universitários que têm posicionamento contrário ao deles, é bastante preocupante, dado que o deputado é favorito para vencer as eleições presidenciais neste segundo turno.
Tiburi e Casara observam que, na lógica limitada do anti-intelectualista, existe, de um lado, o "messias" (ou seja, o salvador da pátria infalível) e do outro, "a peste" (ou seja, processos, eventos, organismos e indivíduos que precisam ser combatidos, aniquilados, sem pestanejar ou parar para pensar). Dentro dessa lógica, não cabem a complexidade e as contradições inerentes ao real, tudo é preto no branco, não há espaço para a reflexão, os intelectuais são supérfluos, não têm lugar. E, mais grave: para os milhares de anti-intelectualistas que estão emergindo, os intelectuais, mesmo tão metidos a inteligentes, não sabem lidar com "a peste" (alguns, até, estão contaminados por ela...),
. . . . . . .
Outro dia, num dos bares que frequento aqui em Belo Horizonte, ouvi invectivas a Paulo Freire na mesa ao lado. Serei franco com o(a) eventual leitor(a): pessoalmente, me desagrada uma certa hagiolatria que costuma cercar o educador recifense, expressa por alguns de seus estudiosos. Nem por isso contesto a grande relevância de sua obra para a pedagogia e para a filosofia.
Da mesa vinham frases como "Paulo Freire é que trouxe esse comunismo todo pra dentro das escolas"; "Tem muita escola aí que é pura doutrinação esquerdista. Culpa desse Paulo Freire". Não me dei ao trabalho de apurar quem eram (além do mais, seria bem grosseiro da minha parte me intrometer na conversa alheia). Sou capaz de apostar, porém, que não eram professores (se fossem, saberiam que dentro de uma escola há tantos embaraços e reveses mais urgentes para serem resolvidos que ninguém tem tempo para uma suposta doutrinação esquerdista). Também apostaria que jamais leram uma página sequer dos livros de Freire.
Falando nisso, nesse mesmo bar, algumas semanas depois, escutei declaração semelhante de um conhecido meu, curiosamente, filho de um professora (aposentada) de escola pública. Quando perguntei se já lera algo de Paulo Freire, a resposta oblíqua me fez ver que ele (tal como as pessoas do outro dia) apenas reproduzia a ladainha rasteira, baseada em memes de mídias sociais e posts de veracidade duvidosa do WhatsApp, empregada nas disputas ideológicas desse nosso mundinho digital contemporâneo.
Eu ainda bebo habitualmente nesse e em outros dois bares próximos ao lugar onde moro. A ar está pesado em todos eles, pelo menos para mim. Botequins, claro, nunca foram espaços de conferências acadêmicas. Mas já foram pelo menos mais acolhedores a quem, num bate-papo acompanhado de umas geladas, se dispunha a apresentar fatos, corrigir informações falsas. Também não havia tantos esgares e olhares de fastio ou raiva mal disfarçada quando se tentava levar a conversa para temas menos ordinários.
O que tenho escutado nos últimos meses é um vozerio de indivíduos sem qualquer disposição para ouvir o outro, a dizer (e, as vezes, berrar) que "o coro vai comer", "esse povo vai entrar na linha", repetindo bordões cujo teor é marcado por uma completa ausência de empatia, por uma falta de preocupação social e senso de coletividade, revelando uma incultura que não conhece limites, a exigir, entretanto, que lhes prestemos continência.
O escritor Isaac Asimov disse certa vez: "Anti-intellectualism has been a constant thread winding his way through our political and cultural life, nurtured by the false notion that democracy means that 'my ignorance is just as good as your knowledge' " ["o anti-intelectualismo tem sido uma corrente constante insinuando-se através de nossa vida política e cultural, alimentado pela falsa noção de que democracia significa que 'minha ignorância é simplesmente tão boa quanto o seu conhecimento' "].
Infelizmente, temo não se tratar mais de algo que se insinua, que se infiltra paulatinamente. Acho que os ignorantes assumiram o controle de vez.
E todos iremos perder.
. . . . . . .
Antes de encerrar, gostaria de fazer notar ao(à) eventual leitor(a) que a candidatura Bolsonaro, pelo que representa de obscurantismo e de ameaça ao regime democrático e à liberdade (inclusive a de expressão), tem sido repelida por muitos intelectuais e pessoas ligadas ao objeto que melhor nos representa - o livro.
Pode-se verificar o veto ao candidato do PSL na declaração dos escritores que representaram o Brasil na Feira de Frankfurt desse ano; no posicionamento de Luiz Schwarcz, presidente da Companhia das Letras, uma das mais prestigiadas e importantes empresas livreiras do país; e no Manifesto do Livro, assinado por diversos escritores e escritoras, editores e editoras.
[Atualização: 20/10/18]: Esqueci de citar aqui o sensacional texto-desabafo (Isto não é um poema) do cantor, compositor e poeta Arnaldo Antunes, também contrário à candidatura mencionada acima. Faço-o agora.
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¹ ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre as ciências e as artes. 2 ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978. p. 321-352. (Coleção Os pensadores) [Tradução de Lourdes Santos Machado]
² Na Advertência incluída numa das edições do texto, o escritor registrou: "Que será a celebridade? Eis a obra infeliz a que devo a minha. É certo que essa peça, que me valeu um prêmio e me deu nome, será, no máximo, medíocre e, ouso acrescentar, uma das menores deste repositório. Que abismo de misérias não teria evitado o autor, se esta primeira obra tivesse sido recebida como o merecia! Mas era preciso que um favor inicial injusto me trouxesse, aos poucos, uma severidade que ainda é mais injusta".
BG de Hoje
The Same Boy You've Always Known é uma canção para a qual não dei muita bola há alguns anos, quando adquiri White Blood Cells, dos WHITE STRIPES. Aos poucos, entretanto - e era inevitável -, acabei chegando a conclusão de que é uma das mais bonitas daquele álbum (senão uma das melhores em toda a carreira da dupla de Detroit). NOTA: Prefiro a versão em estúdio (sempre prefiro as versões em estúdio), mas achei que a apresentação abaixo ganhou um tom que não sei definir (bem-vindo, todavia), ausente na gravação incluída no disco lançado em 2001.