Nos dois últimos meses de 2013, estava disposto a escrever uma sequência de textos curtos sobre livros de Graciliano Ramos, mas - não me lembro por que - acabei cobrindo apenas três títulos: Cartas (disponível aqui), Infância (disponível aqui) e Angústia (disponível aqui e aqui). Como reli S. Bernardo por esses dias, resolvi acrescentar mais um capítulo à série, mesmo com quase 11 anos de atraso.
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Por que alguns comentadores, através de S. Bernardo, ligam Graciliano Ramos a Balzac?
Honoré de Balzac poderia ser definido tranquilamente como o romancista do dinheiro, pois, em muitas de suas narrativas, a abundância ou a falta de recursos financeiros são elementos cruciais da trama. No segundo livro do escritor brasileiro, por sua vez, o protagonista (e também narrador) faz de tudo para firmar-se como um homem de posses, cujo símbolo máximo é a fazenda que dá nome ao romance.
Sabemos que Ramos foi um leitor atento do autor francês. Não seria um disparate dizer que o arrivismo de Paulo Honório espelha algumas figuras da Comédia Humana, ainda que temperado com as características do interior alagoano dos anos 1920-30.
Não pretendo, porém, fazer esse exercício comparativo na postagem de hoje. Menciono a aproximação primeiramente para bancar o ilustrado e, em segundo, para confessar minha simpatia por escritores que destacam o peso que o dinheiro tem no mundo.
Para exemplificar, observemos a cena narrada no capítulo XXXII. Acontece após o enterro de Madalena. D. Glória resolve ir embora de S. Bernardo e comunica ao proprietário. Ainda que a decisão demonstre todo o seu brio, sendo ela pobre e idosa, como iria se virar sozinha? Paulo Honório então diz: " - Pense no aluguel das casas na cidade, pense no preço dos remédios. Adoecer é fácil, d. Glória, mas tirar a moléstia do corpo é um trabalhão. Pense no mercado, no cobrador de luz, na pena-d'água. Hoje em dia a vida é difícil em toda parte, mas na cidade a vida é um buraco, d. Glória" ¹.
Ela acaba aceitando a fixação de uma pensão. Dessa maneira, o fazendeiro cumpre a promessa feita à esposa na noite anterior à morte dela. É um sujeito bruto e terrível, mas como negar o acerto de suas palavras a respeito dos custos para se viver na cidade (ou os custos para se viver em qualquer outro lugar)? D. Glória detestava Paulo Honório, o suicídio da sobrinha muito provavelmente só aumentou essa aversão. Entretanto, o pequeno estipêndio não é recusado.
No célebre ensaio Ficção e confissão, Antonio Candido afirma: "Em Paulo Honório, o sentimento de propriedade, mais do que simples instinto de posse, é uma disposição total do espírito, uma atitude geral diante das coisas. Por isso engloba todo o seu modo de ser, colorindo as próprias relações afetivas. Colorindo e deformando".²
A despeito da sensatez demonstrada na conversa com D. Glória, não me parece ser alguma irrupção de bondade que leva Paulo Honório a estatuir a pensão. É certo que se empenhou em procurar e acolher a velha Margarida em sua fazenda e decidiu proteger as filhas de Mendonça, o vizinho que ele mandou matar. Em todos esses casos, porém, o que temos é o pagamento de dívidas : as relações do personagem central com as demais deriva de seu sentimento de propriedade, um sentimento que confere a todos os vínculos um caráter comercial.
Sendo um texto totalmente centrado em seu protagonista-narrador, a psicologia deste é fundamental para a devida compreensão do romance. Segundo Candido, o "ritmo psicológico" de Paulo Honório é caracterizado por dois movimentos:
"[...] um, a violência do protagonista contra homens e coisas; outro, a violência contra ele próprio. Da primeira, resulta São Bernardo-fazenda, que se incorpora ao seu próprio ser, como atributo penosamente elaborado; da segunda, resulta São Bernardo-livro-de-recordações, que assinala a desintegração da sua pujança. De ambos nasce a derrota, o traçado da incapacidade afetiva".
Essa incapacidade afetiva fica escancarada numa das passagens mais sensacionais do livro:
"Já viram como perdemos tempo em padecimentos inúteis? Não era melhor que fôssemos como os bois? Bois com inteligência. Haverá estupidez maior que atormentar-se um vivente por gosto? Será? Não será? Para que isso? Procurar dissabores? Será? Não será?"
Ainda que elemento importantíssimo na vida em geral, o dinheiro, contudo, no caso de Paulo Honório, não foi suficiente para dar-lhe tranquilidade.
Não é comum, mas um feroz capitalista conhece derrotas às vezes.
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¹ RAMOS, Graciliano. S. Bernardo. 87 ed. Rio de Janeiro: Record, 2008. Todas as citações do romance nesta postagem foram extraídas dessa edição.
² CANDIDO, Antonio. Ficção e confissão. In: ____________. Ficção e confissão: ensaios sobre Graciliano Ramos. 3 ed. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2006. p. 17-99
BG de Hoje
Estou de férias. Glória aos direitos trabalhistas (e ao regime estatutário também) ! Ah, como eu gostaria que o clima preponderante (pelo menos em alguns dias) desse período fosse o da canção exibida abaixo: Quando a polícia chegar (AUTORAMAS).
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