quinta-feira, 20 de junho de 2024

Os mais difíceis aprendizados

 

 "Conhece-te a ti mesmo".

 

Qual o significado dessa frase? 

No frigir dos ovos, quer dizer o quê?

Dando uma rápida passeada pelo Google, achei a máxima num artigo de empreendedorismo do Sebrae, noutro de uma fundação vinculada ao espiritismo e também no texto de uma consultoria para "educação corporativa", entre outros URLs.  Pelo visto, o  dito também dá o ar da graça em páginas e perfis do Facebook e do LinkedIn como ponto de partida para mensagens motivacionais. Em comum nessas várias aparições está a ideia de que conhecer-se a si mesmo deve ser algo como um exercício de autoanálise com vistas a fazer do sujeito uma pessoa supostamente melhor - a depender do enfoque, uma pessoa mais equilibrada, ou mais produtiva, ou mais preparada para a liderança, etc.

Na cultura pop, a frase fez algum sucesso graças a Matrix, lançado em 1999. O(a) eventual leitor(a) deve se lembrar da cena em que Neo entra num prosaico apartamento para consultar o oráculo e saber se é ou não o Escolhido. É recebido por uma senhora que assava biscoitos. Ela aponta para uma plaqueta na porta da cozinha em que está escrito Temet nosce. Marilena Chaui faz uso dessa cena em Convite à Filosofia (um livro voltado principalmente para o Ensino Médio¹), explicando que ela "é a representação, no futuro, de um acontecimento do passado, ocorrido há 23 séculos, na Grécia",  no qual figurava Sócrates.

Chaui estabelece outras relações entre o protagonista do filme e o personagem mais destacado dos diálogos platônicos para, algumas páginas adiante, apresentar uma definição:

"Alguém que tomasse essa decisão [de colocar em questionamento os outros e a si próprio] estaria tomando distância da vida cotidiana e de si mesmo, teria passado a indagar o que são as crenças e os sentimentos que alimentam, silenciosamente, nossa existência. Ao tomar essa distância, estaria interrogando a si mesmo, desejando conhecer por que cremos no que cremos, por que sentimos o que sentimos e o que são nossas crenças e nossos sentimentos. Esse alguém estaria começando a cumprir o que dizia o oráculo de Delfos: 'Conhece-te a ti mesmo'. E estaria começando a adotar o que chamamos de atitude filosófica" [grifo da autora]

E complementa: "Assim, uma primeira resposta à pergunta 'O que é filosofia?' poderia ser: 'A decisão de não aceitar como naturais, óbvias e evidentes as coisas, as ideias, os fatos, as situações, os valores, os comportamentos de nossa existência cotidiana; jamais aceitá-los sem antes havê-los investigado e compreendido' ".

Temos então um outro sentido: conhecer-se a si mesmo deve ser parte importante de uma disposição que leve o sujeito a desenvolver uma atitude filosófica (ou seja, uma atitude inquiridora) perante à existência, sem aquiescer pura e simplesmente às convenções e praxes vigentes e, quem sabe, capacitando-o a filosofar  futuramente (claro, se isso for de seu interesse).

Essas duas noções - conhecer-se a si mesmo como parte de uma estratégia de autoaprimoramento  e conhecer-se a si mesmo como "ferramenta" essencial para a adoção dessa chamada atitude filosófica - revelam diferenças, embora tenham a mesma fonte (a inscrição no templo de Apolo, em Delfos, posteriormente incorporada ao legado de Sócrates).

A primeira perspectiva, encontrada em textos relacionados ao discurso empreendedorista, nas dicas de como progredir no mundo corporativo ou simplesmente em mensagens "positivas", "good vibes", publicadas em mídias sociais, é resultado, penso eu, de um entendimento curto, não necessariamente errôneo, do aforismo délfico. Vou reproduzir um trecho do artigo encontrado no site do Sebrae para melhor ilustrar o que estou querendo dizer: "A famosa frase de Sócrates se transformou no que hoje chamamos de autoconhecimento, uma habilidade cujas pessoas que conhecem a si mesmas e sabem o que são e o que representam têm [sic]. A partir do autoconhecimento, é possível identificarmos as habilidades e capacidades que possuímos e o que nos motiva, evidenciando, assim, nosso propósito de vida".

Nesse caso, conhece-te a ti mesmo poderia ser traduzido como: liste suas virtudes e defeitos, seus pontos fortes e fracos, faça uma autoavaliação e veja como tudo isso auxilia ou atrapalha sua profissão/ocupação ou suas decisões financeiras (porque, afinal, essa perspectiva casa muito bem com a conformação capitalista).

Por outro prisma, a segunda interpretação vai além do simples autoconhecimento como competência a ser adquirida para determinado fim: nesse caso, conhece-te a ti mesmo poderia ser traduzido como: busque as razões de suas crenças, de suas convicções e de seus sentimentos e torne-as matéria de reflexão.

Há quem defenda - bambambãs do mundo acadêmico, como Paulo Ghiraldelli Jr, por exemplo - que a incorporação daquela mensagem colocada lá no templo de Delfos séculos e séculos atrás tem pouco ou nada a ver com isso, pois deriva de uma visão vulgarizada de Sócrates, não muito condizente com as circunstâncias históricas. Quem sou eu, porém, para imiscuir-me nesse debate, um reles blogueiro que nem sequer conseguiu terminar a graduação.

Além do mais, o tema do "conhece-te a ti mesmo" me ocorreu por causa de uma canção de Gilberto Gil, lançada há cerca de 51 anos, escutada por mim tantas outras vezes ao longo da vida, mas que só me fez parar para pensar mesmo há apenas algumas semanas. 

E é essa canção que desejo realmente discutir na postagem de hoje. 

Começo reproduzindo a letra:

 

PRECISO APRENDER A SÓ SER
                                                                            

Sabe, gente,
É tanta coisa pra gente saber.
O que cantar, como andar, onde ir
O que dizer, o que calar, a quem querer.

Sabe, gente,
É tanta coisa que eu fico sem jeito
Sou eu sozinho e esse nó no peito
Já desfeito em lágrimas que eu luto pra esconder.

Sabe, gente,
Eu sei que, no fundo, o problema é só da gente
E só do coração dizer não, quando a mente
Tenta nos levar pra casa do sofrer.

E quando escutar um samba-canção
Assim como: 
Eu preciso aprender a ser só
Reagir e ouvir o coração responder:
Eu preciso aprender a só ser.

Sabe, gente,
É tanta coisa que eu nem quero saber.

Como escrito acima, as primeiras apresentações da canção para uma plateia ocorreram em 1973, ano seguinte ao retorno do cantor e compositor baiano ao Brasil, após o exílio. Uma dessas performances foi particularmente marcante: um show na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (mais tarde registrado no disco Ao vivo na USP), realizado após o sequestro, tortura e morte de um estudante da instituição pelo DOI-CODI. Houve participação direta do público, dialogando com o artista sobre variados temas. A apresentação é encerrada justamente com a canção da qual estamos falando.

Segundo Vinícius R. Souto e Almir C. Barreto, em artigo publicado em 2021 ², "apesar de elaborada sob a repressão da ditadura militar que assolava o país, a canção de Gil é também marcada pelos valores libertários trazidos pela contracultura". Entre estes, "destacavam-se a liberdade de expressão das escolhas comportamentais individuais e a investigação de preceitos e práticas das filosofias orientais. Esse último é central em  Preciso aprender a só ser".

Mencionado em duas passagens, "o coração - símbolo do sensível, da intuição, do espontâneo - é a solução para as questões provocados pela mente - símbolo da racionalidade, da lógica, da cultura ocidental". Ainda de acordo com os mesmos articulistas:"Esse modo de ser e estar no mundo, que reconhece os pensamentos em sua abundância e fugacidade como algo a ser moderado e balanceado, está identificado com o que, de maneira geral, as filosofias das culturas orientais propagam"  - por exemplo, o taoísmo (ou daoísmo, como queiram).

O ouvinte, imediatamente a partir do título, sabe que a criação de Gil faz uma conexão direta com outra (Preciso aprender a ser só), cujos autores são Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle, lançada em 1964, e interpretada por vários artistas (minha versão favorita é com Alaíde Costa). Para além do jogo de palavras (ser só - só ser), ambas pertencem ao gênero que se convencionou chamar de samba-canção e "o centro tonal de Preciso aprender a só ser está em Lá maior, assim como na canção referência", observam Souto e Medeiros. O importante aqui, porém, são as distinções. Embora as duas tematizem a solidão e a angústia, os sentimentos expressos no trabalho dos irmãos Valle advêm da desilusão amorosa, enquanto que, na composição de Gilberto Gil, o primeiro estado (a solidão) é proposto "como local de recolhimento, de liberdade" - nas palavras do próprio autor: 'resgate do prazer dessa solidão, como um grande refúgio, igual a um grande casulo onde você é você' -, e o segundo estado (a angústia), por sua vez, "é de caráter existencial, do indivíduo diante das tantas possibilidades e responsabilidades a respeito de como colocar-se no mundo".

Na conclusão de seu artigo, Souto e Medeiros escrevem:

"Quem esperava que Gilberto Gil exaltasse os ânimos da audiência na USP, abalados pela morte de Alexandre Vannucchi Leme [o estudante sequestrado pelo DOI-CODI], talvez tenha se decepcionado. Cantada como um acalanto, ao final de um show carregado de discussões e reflexões, Preciso aprender a só ser afirmou a necessidade de uma reestruturação pessoal, íntima. A busca proposta era de conciliar os próprios contrários, o oriental e o ocidental de  Oriente, Chiclete com banana - música que se seguiu a  Oriente na apresentação -, o Objeto sim, objeto não, os públicos da música de protesto e os tropicalistas, e [...] o 'ser só' com o 'só ser', a solidão como abrigo. É o contraditório como humano, a pluralidade de opções vista como potência, os opostos como complementares, valores fundamentais de uma democracia subtraída naquele momento [1973]. Nas palavras do próprio Gilberto Gil sobre sua canção, 'é como se ela [Preciso aprender a só ser] colocasse o interlocutor à vontade e fosse feita para humanizar os ambientes' "

Quando se tem em conta o contexto histórico, versos como "O que cantar, como andar, onde ir,/ O que dizer, o que calar, a quem querer" nos fazem pensar num certo patrulhamento com que o artista baiano talvez fosse obrigado a lidar; afinal ele e os tropicalistas não eram vistos, por parte da esquerda da época, como suficientemente engajados na luta contra a ditadura (mesmo Gil tendo sido preso pelos militares e composto, por exemplo,  Cálice, junto com Chico Buarque). 

Analisar a canção contextualmente é bastante enriquecedor, não há dúvida, mas vou me permitir ir um pouco além, mirando-a com os olhos de hoje, sem, contudo, forçar os limites da interpretação. Se concordarmos que  Preciso aprender a só ser  afirma "a necessidade de uma reestruturação pessoal, íntima", tal "conselho" vale em qualquer época.

Há, de fato, "tanta coisa pra gente saber". E há também muita cobrança em torno disso. Junto aos deveres que se espera de um cidadão com um mínimo de escrúpulo no século XXI, existe a avalanche de informação que nos engole todos os dias, chegando até a sufocar. Não sei você, eventual leitor(a), mas inúmeras vezes me pego perguntando: é essa a conduta que devo mesmo seguir em tal ou qual questão? Será que agi suficientemente cônscio nessa ou naquela situação?

Aqui o conhece-te a ti mesmo  e o  preciso aprender a só ser  se encontram. Pouca coisa no mundo é mais difícil do que se investigar - admitir os próprios preconceitos, reconhecer falhas pessoais, dar-se conta das próprias limitações (intelectuais e emocionais) - e do que se aceitar (o advérbio    é pequenininho, tem apenas duas letras, mas assume um significado imenso na letra de Gil). A meu ver, são aprendizados que nunca chegarão a um término.

Diante disso, os dois últimos versos da canção atualmente têm me feito um bem danado:

"Sabe, gente,/ É tanta coisa que eu nem quero saber".

Uma forma de escapismo? Não creio. Acho que é mais a constatação de que, apesar de tanto esforço (e não se pode simplesmente deixar o mundo pra lá, se nos pensamos como indivíduos responsáveis), não conseguiremos compreender o tanto que gostaríamos de compreender.

_______________

¹ Convite à Filosofia (Editora Ática, 14ª edição, 2012) é uma publicação, a meu ver, de introdução à disciplina e, portanto, pode ser lida por qualquer interessado em se iniciar nesse campo do conhecimento, independentemente de ser ou não um estudante secundarista. Aliás, nunca é demais lembrar que, desde a implementação do famigerado Novo Ensino Médio, a Filosofia não tem mais um espaço específico na grade curricular dessa etapa da educação básica, convertendo-se num componente da área Ciências Humanas e Sociais Aplicadas.

² SOUTO, Vinícius Rangel; BARRETO, Almir Cortes. Do 'ser só' ao 'só ser': uma análise da canção Preciso aprender a só ser, de Gilberto Gil, e seus (con)textos. Per Musi : Scholarly Music Journal, n°41, 2021, p.1-21. Disponível em:  <https://doi.org/10.35699/2317-6377.2021.33529>.  Acesso em 09/06/2024

BG de Hoje

Obviamente, Preciso aprender a só ser, de GILBERTO GIL.

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