quarta-feira, 5 de junho de 2024

Distanciar-se do embrutecimento

 
"A ciência, com muita poesia,
descobriu que somos feitos
com a mesma matéria
das estrelas,
e até nossos pensamentos
brilham, estelarmente.

Por isso convém andar
com delicadeza e cuidado:
nossos gestos e palavras
- já que também 
somos estrelas -
podem mudar o universo.

Universo, de Roseana Murray - Manual da delicadeza: de A a Z

 

 

Está difícil, cada vez mais difícil, o convívio em áreas urbanas.

Além dos riscos e da violência decorrentes das ações criminosas propriamente ditas (assaltos, extorsões, homicídios, estupros, etc.), sempre se pode acrescentar algo à lista de problemas: montes de lixo e entulho largados onde não se deve; o cheiro insuportável de urina nas localidades centrais; poluição sonora nas mais variadas formas; as vias entupidas de carros estacionados ou tentando se locomover; a descortesia como primeira reação diante de qualquer contratempo, mesmo os menores...

Fomos (e continuamos a ser) condicionados a desvalorizar a ideia do viver coletivamente,  levados a evitar a colaboração uns com os outros. Somos, isso sim, instigados a agir isoladamente: pessoas que precisam levar vantagem e se dar bem sobre os outros em tudo. A (mal denominada) lei de Gerson. Farinha pouca, meu pirão primeiro. A exacerbação do individualismo. No limite, o risco de não conseguirmos reverter os efeitos da atomização social.

Para piorar, há aqueles que sentem dentro de si uma irrefreável necessidade de promover intimidação. Entre estes, eu incluo, sem qualquer receio, os criadores/donos/tutores de cães da raça pitbull.

Não é aconselhável generalizar. Evitarei, contudo, a precaução nesse caso. Duvido muito que a ferocidade e a robustez dessa variedade específica de cachorro não são os principais motivos para que seja comprada (pois também não acredito que os muitos exemplares do animal encontrados por aí vieram de adoção). Quem mantém um pitbull quer aterrorizar os outros, simples assim, ainda que alegue ser para vigilância e proteção (não caio nessa). O sujeito passeando na rua com o bicho ao lado parece almejar uma espécie de mutualismo (perdoem-me os biólogos pelo abuso no emprego do termo), tomando emprestado para si - pelo menos imageticamente - o terror que o cão infunde. O recado dado é: "Também sou uma ameaça. Vai encarar?".

Eu não vou. Se, mesmo à distância, avisto o cachorro e seu acompanhante fanfarrão, retrocedo, mudo de rota, entro em alguma loja, tudo para não me aproximar.

Outro dia estava num bar que frequento aqui em Belo Horizonte e me aparece um tipo desses: senta-se à mesa na calçada, cheio de si, trazendo um pitbull marrom imenso, seguro apenas pela coleira ¹. Foi-se embora a pouca satisfação que estava tendo ao tomar minha cerveja e minha dose de cachaça no balcão. Pedi a conta e saí. Vale dizer que o cidadão foi estudante em uma escola onde trabalhei anos atrás e era o típico aluno-problema (não vou aqui me deter na adequação ou não do termo). Agora que é um adulto, não o tenho como exemplo de pessoa cordial.

O(a) eventual leitor(a) certamente ouviu ou leu a respeito de ataques de pitbull que resultaram em gente morta ou com ferimentos graves. Em alguns incidentes, a vítima era o próprio criador/dono/tutor do cachorro. Para ser honesto, não se tem, até onde eu saiba, nenhum estudo que aponte essa raça como sendo inerentemente mais agressiva do que outras. Como escrevi acima, contudo, não procurarei ser precavido na minha arenga. Esses cães são pavorosos.

Existem cerca de 340 a 350 raças reconhecidas pela Federação Cinológica Internacional e uma parte dessas com certeza é de animais grandes e capazes de fazer um potencial delinquente pensar duas vezes antes de arriscar qualquer coisa. Não é frequente, porém, vermos muitos desses outros cachorrões sendo exibidos por aí. A preferência pelo pitbull não tem a ver com a procura por um cão de guarda ou porque se tem uma afeição particular pelo monstrengo. Escolhe-se, como escrevi acima, para se mostrar como alguém que intimida (a má reputação da fera garante isso) e, portanto, alguém que não deve ser contrariado.

Penso que os criadores/donos/tutores desse tipo de cachorro são pessoas embrutecidas. Desconfio que vários desses indivíduos já deviam manifestar uma aptidão para a escrotice desde pequenininhos, mas, ao falar em embrutecimento, quero dizer com isso que houve (e há) escassez de delicadeza na vida desse pessoal.

Aqui vai uma autocrítica. Nunca me vi como uma pessoa especialmente gentil e sensível. Preciso estar sempre vigilante para conter meu primeiro impulso - a rispidez - no trato com outras pessoas no dia a dia. Demoro a identificar refinamentos e perceber o que há de belo em muitos objetos e fenômenos com as quais me deparo. E tenho dificuldade em me enternecer. 

A leitura literária, entretanto, há muito veio em meu socorro e ajudou a atenuar esses traços detestáveis. Falo a verdade: já fui poupado de muitos constrangimentos e embrulhadas nessa vidinha ordinária porque, graças à literatura, consegui atingir certa compreensão - restrita, mas valiosa - do que nos faz ser o que somos, bem como passei a ter um olhar menos obtuso sobre as coisas. A literatura me trouxe delicadeza, posso dizer.

Tenho quase certeza que criadores/donos/tutores de pitbull não tentam se colocar no lugar dos outros. Não ouvem boa música. Não abandonam nem por um segundo sua crença no cada-um-por-si.

Muito provavelmente, claro, também não leem literatura.

Em abril deste ano, a poeta Roseana Murray foi atacada por três cães pitbull numa manhã, quando saiu para fazer atividade física. Bastante ferida, permaneceu 13 dias internada e teve um dos braços amputados. Os animais, provenientes de uma das casas vizinhas, estavam soltos na rua e sem focinheira, descumprindo a legislação do Estado do Rio de Janeiro. Até onde sei, as três pessoas (dois homens e uma mulher) identificadas como responsáveis pelos cachorros estão sendo denunciadas por maus-tratos, não terem guardado com a devida cautela os animais e lesão corporal culposa, mas respondem ao processo em liberdade.

Esse caso é bem ilustrativo do que estou tentando expor hoje. Uma senhora de mais de 70 anos, artista da palavra, sai de casa para se exercitar e - boom! - a brutalidade da vida urbana ² avança sobre ela impiedosamente, devido à negligência e (ouso dizer) a insensibilidade de vizinhos.

Como a grande maioria dos leitores, conheci o trabalho de Roseana Murray através de seus livros voltados para crianças e adolescentes. Classificados poéticos (1984) tornou-se um clássico da literatura infantojuvenil brasileira, mas meu preferido é Casas (1994). Em 2001, a escritora publicou um volume intitulado justamente Manual da delicadeza. Espero que o(a) eventual leitor(a) concorde comigo que ler poemas é uma forma de nos distanciarmos do embrutecimento.

Em 2002, Hebe Coimbra organizou um conjunto de textos de Murray escritos em períodos de tempo diferentes e que tinham como destinatário o público adulto: Poesia essencial (Editora Manati). Dois poemas ali reunidos me deram o que pensar quando estava na preparação desta postagem. Reproduzirei os dois abaixo:

ESCRITA
 
com seus labirintos vazios
o que dói é a vida
o destino desarrumando as esquinas
 
um mistério atravessa 
nossos olhos distraídos
como um barco que invisível
cruzasse as montanhas
 
o que dói é a vida
e sua indecifrável escrita

 

 

ESTILHAÇOS
 
hoje alguma coisa se quebrou
como um cálice atrás do palco
todos os dias alguma coisa se quebra
varrer para debaixo da alma
essa água quebrada
esse silêncio estragado
 

Quem dera que tudo fosse literatura. Mas a realidade, essa escrita que passamos o tempo todo nos esforçando em desvendar, nunca descansa. Não para de despedaçar as coisas, estragar os silêncios. 

Porém, meu texto preferido na coletânea é este:

 
A MESMA FONTE
 
eu quero te contar
a minha vida
espalhar na mesa
os vidrilhos as lãs
com que fiei meus sonhos
e te falarei dos meus infernos
e precipícios
de quantas mortes morri
enquanto me olhava no espelho
eu quero te falar
de longas esperas
em plataformas vazias
te falar de um trem
que nunca chegava
de um navio de areia
escorrendo entre os dedos
eu quero te contar
a minha vida
em suas insignificantes
nuances
sem esconder os fantasmas
nos bolsos internos da alma
eu quero te contar
a minha vida
no que ela tem de náusea
e desejo
amassando as palavras
como se fossem de argila
eu quero te falar
dos ventos que embaralhavam
a casa
das minhas caixas e cofres
das minhas magoadas estrelas
eu quero te falar
da minha vida
como se escrevesse em tua 
pele
e me inscrevesse nela
porque em algum recanto
sombrio
a minha vida tem folhas
que são da tua
e não me pertence apenas
o meu cotidiano
é feito com a mesma
esgarçada renda do teu
e nesse lugar
à beira do imaginário
nos encontramos
e bebemos da mesma fonte

 

É difícil demais encontrar alguém com quem se possa "falar de longas esperas/em plataformas vazias", "de um trem/que nunca chegava", alguém que perceba que nosso cotidiano "é feito com a mesma/esgarçada renda". 

No seu blog (que não é atualizado há anos, é preciso dizer), Roseana Murray anotou numa postagem:

"Logo no princípio do Dr.Fausto, do Thomas Mann, lemos que nem as religiões podem reprimir as forças arcaicas e destruidoras que habitam o homem. Apenas a literatura pode fazer isso. Escrevo sentada num Café e não tenho o livro comigo para fazer a citação exata. Mas é mais ou menos isso. Sabemos que os regimes totalitários sempre queimaram livros. A própria Igreja Católica tinha o seu índice de livros proibidos. Penso que essas forças arcaicas podem sim ser domadas com a literatura, pois é quando nos misturamos com um personagem, assumimos sua vida e suas dores, que aprendemos a compaixão no melhor sentido da palavra e exercitamos a empatia".
 
Talvez seja depositar uma confiança exagerada na arte literária.  

Mas, se a alternativa é o embrutecimento, por que não?

_______________

¹ Aqui em Belo Horizonte, o Decreto Nº 11.215/2002 proíbe a livre circulação dos pitbulls sem o "uso de focinheira e correntes". No nível estadual, a legislação não é tão categórica em relação aos apetrechos exigidos para controlar os pitbulls (e outros cães ferozes) quando saem para a rua. A Lei Nº 16.301/2006 menciona que é "obrigatória a utilização de equipamentos de contenção do animal" (artigo 6º), mas não há detalhamento (basta apenas coleira simples? e quanto à focinheira, não precisa?). Essas regras, contudo, entram para o grupo daquelas incontáveis leis que "não pegam": o artigo 4º  da norma estadual explicitamente proíbe "a adoção, a procriação e a entrada de cães da raça pitbull no Estado", mas esses impedimentos não tem significado quase nada.

² Embora o município de Saquarema (onde reside Roseana Murray) tenha em torno de 90 mil habitantes, não dá para ser considerada uma cidadezinha singela do meio rural, pois não está tão distante assim da capital do Rio de Janeiro.

BG de Hoje

Registros (em áudio ou vídeo) de performances musicais ao vivo raramente me agradam. Entretanto, essa apresentação de TINA TURNER na segunda metade dos anos 1980, interpretando Addicted To Love, de Robert Palmer, é sensacional. Na época, a cantora estava em turnê pela Europa, embora eu não saiba exatamente em que ano e em que cidade ocorreu a gravação abaixo. A interação com o público (e a própria euforia da plateia), a boa disposição dos músicos, os diferentes ângulos da filmagem, o jeito de dançar - meio engraçado, mas bacana - de Turner, a voz poderosa... tudo resulta numa combinação de arrasar!

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