quinta-feira, 25 de julho de 2024

"As novas tecnologias alteraram em definitivo a textura da ignorância"


A essa altura, dá pra dizer que o recurso veio para ficar aqui no Besta Quadrada.

Apesar de ser um espaço profuso em citações - afinal, faz parte da proposta do blog -, eu não costumava reproduzir integralmente  os textos de outras pessoas. 

Mas isso mudou nos últimos sete anos, mais ou menos. Agora, toda vez que leio um artigo (não tão longo) publicado num veículo jornalístico, num site, etc. e trata de uma questão da maneira que acho que deveria ser tratada, não hesito muito em replicar em meu espaçozinho na web. É o caso deste excepcional escrito que se segue.

 

SOBRE A IGNORÂNCIA ARTIFICIAL *

                                                                                                                                      Eugênio Bucci

Quando alguém tenta imaginar o que seja a ignorância, a primeira imagem que lhe ocorre é o vazio. De fato, enquanto o saber tem para nós o aspecto de casa cheia e feliz, o não-saber é seu oposto: um lugar macambúzio, desocupado e triste. O conhecimento lembra uma constelação de fagulhas inspiradoras, como um salão de janelas amplas, ensolaradas, cheio de gente bonita indo de um lado para o outro; a estultice é sombra e mutismo, um galpão deserto, escuro, sem ninguém e sem utilidade.

O espírito dos sábios cintila em signos vibrantes, representações abstratas e sensibilidade de muitas claves; a massa cinzenta de quem não sabe nada é só um pedaço de carne amorfa, incapaz de qualquer contemplação. Portanto, é com acerto que temos o costume de dizer que as pessoas cultas têm uma vida interior rica e ativa, ao passo que os boçais têm a cabeça oca. Nada mais justo. Nada mais preciso. Nada mais óbvio.

Ocorre que isso mudou drasticamente. As novas tecnologias alteraram em definitivo a textura da ignorância. Ela não é mais o que sempre foi, não é mais uma cabeça oca, e já não decorre da escassez de informação e de conhecimento. Na era digital, ela decorre do inverso: o excesso de desinformação, de bugigangas do entretenimento, de quinquilharias imaginárias e de fanatismos virtuais.

Hoje, a ignorância não é uma casa inabitada, desprovida de ideias, mas uma edificação repleta de baboseiras desarticuladas, uma gosma de densidade pesada que ocupa todos os espaços. E é pisca-piscante: revestida de milhões de luzes feéricas, mais ou menos como um cassino em Las Vegas, e lotada de gente robotizada perambulando aleatoriamente, como a Praça dos Três Poderes sendo depredada no dia 8 de janeiro de 2023.

O que temos agora não é mais a ignorância da vacuidade, mas outra, a da overdose, a ignorância fabricada por algoritmos gelados e por tentáculos de silício. Estamos falando da ignorância artificial, uma forma densa e totalizante que ocupa e vicia o hospedeiro. Ao contrário do pensamento, que liberta e dá a ver, a ignorância artificial aprisiona e cega. Ela é o insumo de maior valor nas estratégias dos autocratas: entregue de graça para cada indivíduo, custa caro, muito caro, para a sociedade.

Por isso, os ignorantes de hoje não são mais como os de antigamente. Não são como a terra bruta ou a flor inculta, que nunca receberam o toque do jardineiro – foram adestrados pela selvageria e andam carregados até as tampas de preconceitos e de estereótipos, destituídos de imaginação própria. Não são um campo aberto à espera da luz e da letra – são corpos fechados e blindados contra qualquer gota de cultura. A ignorância artificial é a maior epidemia do nosso tempo.

E agora? Existirá cura para tamanha enfermidade? Talvez não. Para entendermos melhor essa resposta, voltemos no tempo. Mais exatamente, recuemos até à Grécia clássica. No  Laques, de Platão, o general Nícias, ao tratar do tema da coragem, comenta a hipótese da criança que, por desconhecer o perigo, age com aparente destemor. Nícias argumenta: nesse caso, a ação aparentemente livre de todo medo não traz nada de audácia, é apenas falta de conhecimento.

Com esse raciocínio, sugere que a bravura verdadeira requer consciência do risco: para ser valente de fato, o sujeito precisa ter instrução e juízo, precisa saber o que faz. Quanto aos idiotas, patriotas ou não, a exemplo das crianças pequenas, jamais estarão à altura da virtude da coragem.

Nícias, a exemplo de seus contemporâneos, vê semelhanças entre a falta de ilustração do adulto e a inocência infantil: ambas resultam da carência de saber, e por isso têm cura. Definidas pela ausência, as duas podem ser superadas pela presença – a presença do logos, da educação e da experiência. Em resumo, para essas duas formas naturais de ignorância, existe remédio.

Para a ignorância artificial, porém, o tratamento não tem a menor eficácia. Com sua substância maciça e, ao mesmo tempo, maleável, a ignorância artificial fecha todas as saídas e barra todas as entradas, de tal maneira que para os fanáticos não há educação ou experiência que dê jeito: nenhuma informação de qualidade os alcança; nenhum conhecimento os afeta.

Os novos ignorantes foram abduzidos por uma argamassa de obscurantismo luminescente que os impede de saber de si, de perguntar ao outro, de duvidar do que veem, de repensar o mundo. Eles não têm senso de humor. A ignorância da era digital os ocupa feito uma forma de trabalho que não os deixa trabalhar. É uma forma de torpor que não os deixa gozar – e um bordão hipnótico que não os deixa conhecer a si mesmos.

Ao menos no horizonte imediato, não há esperança. Nesses dias de tantas proezas tecnológicas e tantas máquinas miraculosas, não é apenas a inteligência que se tornou artificial, não é somente a intimidade que pode ser confeccionada pelos chips, não é apenas o espírito que pode ser replicado em laboratório. A ignorância também. A ignorância, quem diria, até ela, agora também é fabricada pela técnica.

 

* O artigo foi publicado originalmente no jornal  O Estado de São Paulo. Como não sou (nem nunca seria) assinante do periódico, cheguei ao texto através do site  A terra é redonda (link)


BG de Hoje

Eis uma das gravações mais impactantes do LED ZEPPELIN: When The Levee Breaks. Como é comum em se tratando do grupo britânico, a inspiração - *cof* roubo*cof,cof* - veio do blues negro norte-americano, embora, nesse caso, Jimmy Page e companhia pelo menos deram crédito a Memphis Minnie como uma das compositoras da canção. Num excelente artigo - Led Zeppelin and the folkloric integrity of the blues -, o musicista e professor Ethan Heine observa que a canção em si é meio boba, mas, graças ao excelente trabalho de engenharia de estúdio, a faixa sobe de patamar. Destaque para a gaita tocada por Robert Plant e a bateria majestosa de John Bonham, numa de suas mais exuberantes execuções, arrisco dizer. OBS: Quando se fala nessa banda é comum destacarmos Bonham, Plant e Page, mas quase nunca realçamos o quarto integrante, o que é uma injustiça. John Paul Jones é um multi-instrumentista no mesmo nível de talento dos outros, apenas mais low-profile.

 

Creio que vale a pena também conferir essa versão dentro do projeto Playing For Change, da qual John Paul Jones participou.

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